O gênio e o perdão


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Há muitos anos, em conversa informal, Augusto de Campos declarou que Décio Pignatari era um gênio escarrado a quem quase tudo se perdoa. Quando Pignatari completou 60 anos, Campos lhe dedicou um profilograma: “(…) teu coração carbonário/capaz de pedra/e pedrada/de avanço e de avesso/de pensar o impensável/ler o ilisível/signar o insignável/de quebrar a cara/e pedir perdão (…)”. De fato, em todas as suas multifacetadas práticas e produções, a genialidade de Pignatari irrompia com a força da natureza. Não foi apenas um artista da poesia e da proesia (prosa poética), mas também tradutor, teórico, crítico, professor, jornalista e publicitário. Seguem aqui alguns comentários fragmentados e, ao mesmo tempo misturados, na tentativa de capturar de modo inseparável as distintas facetas criadoras de Pignatari na composição de um todo integrado em que o poeta não se desprendia do crítico, teórico e das práticas enredadas no cotidiano da vida.
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Poesia pois é poesia

A grandeza poética de Pignatari não se expressou apenas na poesia concreta. Ele foi poeta pré-concreto, concreto e pós-concreto. Seus poemas pré-concretos são peças de rara estirpe: “Tosco dizer de coisas fluidas,/Gume de rocha rasga o vento:/Semanas tantas de existir/E de viver um só momento…” (Poema, 1949). “Onde eras a mulher deitada, depois/dos ofícios da penumbra, agora/és um poema…” (O jogral e a prostituta negra, 1949). “O lugar onde eu nasci nasceu-me/num interstício de marfim/ entre a clareza do início/ e a celeuma do fim…” (Eu poema, 1951).

Alguns de seus poemas concretos, verbivocovisuais – TERRA (1956), LIFE (1957), ORGANISMO (1960) – são imortais. Sua produção pós-concreta é uma sequência de experimentos verbais na constituição de sua incomparável proesia, na qual os grãos densos e condensados da prosa transmutam a narrativa.

Para ele, a poesia não precisa dar explicações para existir. Entre as mais sutis e finas flores do potencial humano para a criação, poesia é desafio, rebeldia, guerrilha. Além de risco, poesia é desprendimento, solidão, liberdade. É o supremo gozo do inútil; o mais alto preço espiritual que a psique humana pede e paga para a sobrevivência e perpetuação do seu lado mais sensível, aberto, ambíguo, incerto e enigmático. É desafio porque incansavelmente se rebela contra o fastio dos sentidos já prontos. Guerrilha interminável contra os discursos gastos pelo uso. É risco porque é viagem sem retorno possível. É tudo ou nada: na poesia como na paixão, não há meio termo. É desprendimento, pois exige a entrega sem reservas da alma tanto do poeta quanto de seu leitor.

 

Noosfera: uma cifra epistemológica

Entre suas obras primas, remarcável, no elenco de seus textos de renovação da prosa literária, é Noosfera, pelo modo como cifra uma epistemologia sígnica em proesia. De fato, nessa obra, uma verdadeira teoria do conhecimento sobre o acesso à realidade, que só se realiza pela mediação dos signos, é construída de modo cifrado em uma criatura híbrida entre prosa e poesia, que antecipa, nos nervos tensos da criação, muitos discursos recentes sobre a Semiosfera.

Há uns bons anos, entrevistado por pós-graduandos envolvidos no estudo dessa obra, Pignatari declarou que Noosfera resultou de uma visão cuja realização só se deu depois de muito tempo, quando o insight, o vislumbre interior, encontrou sua tradução em visualização externa. Esta é suficientemente engenhosa para afastar leitores impacientes que, desencantados, não sabem dar à arte a demora perceptiva e reflexiva que ela exige.

De que tenho notícia, há duas leituras à altura da engenhosidade da obra, a primeira realizada por Julio Plaza, na sua tese de doutorado sobre Tradução Intersemiótica, publicada em 1987 pela Perspectiva; a segunda, de Rinaldo Gama, no seu admirável doutorado dedicado especificamente à prosa de Décio Pignatari.

Tanto Noosfera quanto as leituras que dela foram feitas são figuras que se perfilam contra o fundo da fenomenologia e teoria dos signos de Peirce, a demonstrar o partido criador que poetas e artistas sabem tirar de obras filosóficas, abstratas e teóricas.

 

A dialética entre signo e vida

Devido à entrega incondicional ao fazer de sua arte, o criador é levado a ceder o espaço-tempo da vida vivida para fazer viver o signo, única chance para a eternização da vida. Esse era um tema recorrente nas falas de Décio, cujo exemplo exemplar, entre outros, encontra-se em O Retrato Oval, de Edgar Allan Poe. Na ânsia de fazer perdurar, para todo o sempre, a beleza da amada, o pintor se entrega com tal obsessão à tarefa de retratar essa beleza que se esquece da vida. A mulher amada, reduzida a modelo, gradativamente fenece ante a negligência e esquecimento a que o amor se vê relegado, na medida mesma em que a pintura vai ganhando em verdade roubada da vida. Na última pincelada, capaz de recuperar, no artifício da arte, a indiscernível cor do rosado das faces da bela mulher, o pintor celebra a vida do quadro no instante mesmo em que morre a amada.

A sofisticada teoria a que Pignatari recorria para dar voz a essa complexa dialética do signo-vida era a semiótica de Charles Sanders Peirce, de cuja decifração e divulgação Pignatari foi, junto com Haroldo de Campos, pioneiro no Brasil. Com olhar crítico e julgamento afiado, Pignatari submetia os complexos e intrincados conceitos peirceanos a testes em processos artísticos e midiáticos diferenciados: literatura, música, pintura, fotografia, arquitetura, cinema. Com isso, a literatura era colocada no mesmo panteão das outras artes, com elas dialogando, num jogo de espelhos, complementaridades e traduções muito pouco afeito a simplificações e receituários pedagógicos.

Na leitura original que soube extrair da semiótica peirceana, Pignatari criou, de cunho próprio, sua teoria da poesia como ícone, paralela à teoria do quase-signo, cujas formulações podem ser encontradas em Semiótica da literatura. Seu “breve aceno à teoria do quase-signo” é um hino verbal que celebra as filigranas de sentido, as suspensões dos significados consumados, a heurística das significações abertas em que os signos, quase roçando a experiência fenomenológica, no cerne inacessível do real, ficam a meio caminho entre ser e não ser signos, entre o signo e a vida.

 

O mestre desconcertante

Não apenas poeta e “proesador”, Pignatari foi também crítico, decifrador semiótico de qualidades literárias que se engendram nos jogos dos significantes. Além disso, foi um teórico que se movimentava a passos largos entre a história e os conceitos, pousando sua atenção em pontos luminosos, selecionados por sua apreensão aguda e segura. Tudo isso se misturava em relâmpagos de incandescência mental nas suas aulas e palestras para o encantamento intelectual e espanto sensório de seus ouvintes.

Com uma fluência verbal invejável, sua bela voz dava vazão à inextricável mistura de um intelecto iluminado, incomparavelmente agudo, desconcertantemente inovador, com um humor poético por vezes escancaradamente corrosivo, a léguas de distância da hipocrisia das modas atuais do politicamente correto. As verdades quase sempre doem. A Pignatari nunca faltou a sensibilidade finamente rara para captar verdades recônditas e a coragem para dizê-las em alto e bom tom. Nada ensaiado, nada pré-concebido. As descobertas lhe vinham de chofre, ao sabor de um dom que a natureza lhe deu de descobrir a si mesmo e a suas próprias ideias enquanto falava ou escrevia.

 

A multiplicação dos signos da comunicação

A par dos cursos de poesia e prosa, foi também responsável por disciplinas de teoria da comunicação com a qual tinha familiaridade não só teórica como também prática, na empresa de publicidade que dirigiu, nos projetos de criação que realizou, nas colunas de jornal que assinou.

Seus cursos de comunicação colocavam ênfase na revolução industrial como marco decisivo para o nascimento da área. Foi a industrialização que proporcionou a advento das primeiras máquinas multiplicadoras de signos: telégrafo, fotografia, jornal, cinema, responsáveis pela aceleração da vida moderna e de todas as outras mídias que viriam a seguir. De maior interesse em tudo isso é a maneira como Pignatari sempre entrelaçou a literatura com as mídias, em interpolações e complementaridades que poucos são capazes de enxergar.

Já no final dos anos 1960, seus pontos de vista sobre a comunicação eram antecipatórios das emergências atuais de que somos partícipes. Autores cuja paternidade é hoje reconhecida pelos teóricos da cibercultura, tais como Wiener, Benjamin, McLuhan, Flusser eram matéria de discussão obrigatória em seus programas de curso.

A incomparável habilidade de Pignatari para a penetração nas entranhas das linguagens faz hoje muita falta, nesta era de midiamania, em que os signos ocupam o ponto cego das retinas, negligenciados nas sombras dos bastidores, enquanto as falas sobre as mídias tomam conta de todas as cenas, como se nas veias das mídias não corressem os signos.

Quem aprendeu com Pignatari as diferenças aparentemente banais, mas agudamente sutis que fazem de “Pedro leão” uma metáfora e de “João leão” um ícone, não pode se iludir com as fosforescências de discursos midiáticos que ignoram o cerne da questão: sem signo não há comunicação. Portanto, como os signos são produzidos nas diferentes mídias, como se comportam, como significam, como são percebidos, interpretados, traduzidos, transformados, transpostos de uma mídia a outra, tudo isso faz parte da matéria vertente da comunicação.

Enfim, esses comentários são apenas pontinhas extraídas de um iceberg criador, notas evidentemente filtradas por minhas predileções, pelo modo como li, escutei e, sobretudo, pelos remelexos da memória que, como disse Riobaldo, faz balancê no vivido. Não passam, portanto, de flashs que estão muito longe de poder capturar a magnitude do talento e a grandeza de uma obra a que só o tempo pode fazer mais plena justiça. “A morte-beija flor sugou-lhe o mel/Do sopro, mas soprou-lhe um outro encanto”. O pensamento de Peirce sobre a grandeza dos homens aplica-se com justeza a Décio Pignatari: — quem me julgará, caro leitor, não são vocês meus contemporâneos, mas o futuro dos tempos.

 

 

 

 

 

 

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Lucia Santaella é professora titular da PUCSP com doutoramento em Teoria Literária na PUCSP, em 1973, e Livre-Docência em Ciências da Comunicação na ECA/USP, em 1993. É Diretora do CIMID, Centro de Investigação em Mídias Digitais, da PUCSP. É também coordenadora do lado brasileiro do projeto de pesquisa Probral (Brasil-Alemanha) sobre relações entre palavra e imagem nas mídias. E-mail: lbraga@pucsp.br




Comentários (1 comentário)

  1. Omar Khouri, Lúcia Santaella é, hoje, uma das maiores inteligências do Brasil (inteligência é coisa que se cultiva). Foi, na PUCSP, com algumas outras mulheres admiráveis, das primeiras pessoas a estudar com seriedade, na Academia – movidas pela retidão intelectual e amor pela Poesia – o Concretismo. Santaella, em especial (que foi aluna e colega de Décio Pignatari), fez de seus poemas análises das mais belas e sabe, de fato, do valor da obra deixada pelo mestre.
    21 janeiro, 2013 as 11:51

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