O esgrimista das Letras


 

Acabo de ler um texto de nosso amigo comum, o grande poeta Ernesto de Melo e Castro. Ele diz: “…editar poesia é também um ato poético, isto é, criador de objetos surpreendentes e cativantes para quem os adquire!” Como estão seus projetos de edição?

Minha ideia de livro é o do objeto-arte. O livro tem de conter todos os elementos que o tornem um objeto de arte, de arte gráfica, que o representa materialmente em seu tempo ou agregue tradição. Não pode ser um produto, desprovido de design. Deve ser pensado para suportar um texto específico.

 

Você que também é tradutor e poeta, além de editor, vê alguma semelhança nessas artes e aquela outra que você pratica, a esgrima?

Sim, para mim são partes de um só ofício. Escrever, traduzir e editar é primeiramente um ato de fé. Depois, um ofício que me coloca numa condição de Ser. A Esgrima é uma fonte de meditação, que eu posso usar alguns princípios para me colocar frente aos desafios. A esgrima ainda mantém algumas tradições do código da Cavalaria, o respeito a quem nos desafia e o cumprimento da ética (a palavra).

.
Fale um pouquinho do evento La Garçonière que você está organizando para este mês.

1917:
Rua Líbero Badaró, 67, no 3º andar, sala 2: endereço onde Oswald de Andrade (1890-1954) manteve, entre 1917 e 1918, no Centro de São Paulo sua Garçonière (quase 100 anos depois de alterações, o número atual é 452). Com algumas telas de Di Cavalcanti e Anita Malfatti nas paredes, o espaço era ponto de encontro entre seus amigos e sua amante, Maria de Lourdes Pontes, uma estudante de 16 anos, do Colégio Caetano de Campos, chamada por Oswald de Miss Cyclone. O fato de ir sozinha à Garçonière regularmente, sendo uma adolescente, fascinava os que mais frequentavam aquela Garçonière: Mário de Andrade, Guilherme de Almeida, Ribeiro Couto, Di Cavalcanti, Monteiro Lobato, Menotti del Picchia, entre outros. No “covil da rua Líbero” (como a Garçonière era chamada pelo autor de Memórias Sentimentais de João Miramar), entre muita discussão, brigas, amores e manuscritos pelo chão, ao som de uma Grafonola Columbia e poucos discos, aconteceu o grande ensaio do que seria a Semana de Arte Moderna de 1922. Parte do que fizeram foi contado num livro de registro de impressões: O Perfeito Cozinheiro das Almas deste Mundo, batizado por Pedro Rodrigues de Almeida, um dos habitués. Relatório de surrealidades, o livro-caixa-de-surpresas (apelidado anos depois por Haroldo de Campos), totalizou 203 páginas preenchidas com ditos e desditos, trocadilhos, piadas, desenhos, recortes, caricaturas, poemas, quase-poemas e uma “troca de correspondências” entre os frequentadores da Garçonière, que usavam apelidos: Oswald era Garoa e Miramar; Deisi era Miss Cyclone, Miss Tufão, Miss Terremoto, Tufãozinho ou Gracia Lohe; Pedro Rodrigues de Almeida era João de Barros); Monteiro Lobato era Frei Lupus Ancilóstomo, Conselheiro Acácio, Chico das Moças, Lobe, Rowita, Constante Leitor, Cuscus, Tutu Lambari e Zé Catarro; Menotti del Picchia era Paulo; o poeta Guilherme de Almeida era Guy e o desenhista Ignácio da Costa Ferreira era Ferrignac, Ventania e Jeroly. Os frequentadores do retiro oswaldiano anteciparam a era modernista, inaugurado naquele livro-objeto, “o cardápio perfeito para o banquete da vida”, como escreveu Guilherme de Almeida. A Garçonière não existiria sem o livro de registro, assim como não existiria sem Oswald. Nas folhas do livro-caixa-objeto, Oswald compôs o primeiro esboço do seu romance “Memórias Sentimentais de João Miramar”, publicado em 1924, a mais experimental obra da literatura modernista. Como todos os transformadores, Oswald de Andrade fundiu vivência e obra na experiência literária: arte & fraternidade. A grande obra é vida.

2016:
Avenida São João, 108, quarto andar, esquina com a Rua Líbero Badaró, num prédio muito parecido ao da Garçonière oswaldiana, o artista Plástico e Curador Luciano Corta-Ruas e o Editor e Poeta Vanderley Mendonça inauguraram uma Garçonière (exatos cem anos depois da inauguração do Cabaret Voltaire, em Zurique) e apenas a cem metros de onde funcionou a de Oswald de Andrade, entre 1917 e 1918.

A Garçonière do século XXI, que tem um leve tempero Dadá, abriga amigos, poetas, escritores, artistas e convidados numa das salas do Estúdio Lâmina (galeria e ateliê que reúne artistas residentes de várias partes do Brasil e estrangeiros). Com o mesmo espírito modernista de paradoxo, fraternidade, arte & vida, os organizadores abrem as portas ao público uma vez por mês.
.

.
Você não vai escapar da perguntinha minada que costumo fazer aos poetas: o que é poesia?

Essa é a mais difícil de todas as perguntas. Eu não gosto de alguns conceitos ditos por poetas, como o de Apollinaire que chamou a poesia de Caligramas, ou o de Marinetti: tavole parolibere. Ou ainda uma série dita por surrealistas: ideogramas líricos, tipogramas, poemas-imagens, aviogramas. O meu é Poesia Vista, mas o mais bonito que já li é uma atribuída a Huidobro: a bala da paz.

 

Por favor, cite-me três poetas e três poemas de sua preferência no momento.

Augusto de Campos: O rei menos o reino

E. M. de Melo e Castro: Soneto nuclear

D. Dinis: Pronçaes soen mui ben trobar

 

Quais as dicas que você poderia dar para alguém que quer publicar seu primeiro livro.

Se não conseguir editor, faça-o sozinho. Edição de autor. Assim foi quase toda a obra inicial de J. Cabral de Melo Neto, das vanguardas catalães do início do século XX e da Poesia Concreta, para citar exemplos.

.
Vem espaço novo por aí nos moldes do Hussardos Clube Literário?

Sim, o Hussardos Clube Literário será reinaugurado em julho, no mesmo prédio onde fica o Estúdio Lâmina (onde já acontece La Garçonière). O novo espaço terá uma pequena livraria dedicada a publicações independentes, um ateliê de acabamentos de livros artesanais e abrigará a Biblioteca Roberto Piva, além claro da redação dos meus Selos Demônio Negro e Edith e a Editora Córrego, do meu parceiro Gabriel Kolyniak.

 

 

Robin Hood of Poetry in São Paulo – 2013 from Videosfera on Vimeo.

 

 

Alguns textos do Vanderley Mendonça, aqui.




Comente o texto


*

Comente tambm via Facebook