O caso de Carolina Maria de Jesus


O CASO (ASSOMBROSO) DE CAROLINA MARIA DE JESUS: “O QUARTO DE DESPEJO” E DEPOIS

 

“Quando fico nervosa não gosto de discutir. Prefiro escrever. Todos os dias eu escrevo. Sento no quintal e escrevo” (C.M.J.)

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Fiquei muito impactado com a nova leitura que acabei de fazer desse livro deveras espantoso. Li pela primeira vez quando estava ainda na graduação, por iniciativa própria, quatro décadas atrás. Guardava muito boa lembrança, porém vaga. Tinha muito medo de relê-lo e me decepcionar – talvez suspeitasse de que o sucesso internacional se devesse a um populismo literário, embora leitoras muito competentes me indicassem que não, de forma alguma. Contudo, há paixões de juventude a que é melhor mesmo não retornar, pois deixaram a marca necessária e definitiva. E também há autoras e autores que amamos numa época e depois perdemos de vista, simplesmente porque a demanda de leituras é enorme e a vida, hélas, curtíssima.

O fato é que as novas publicações em torno de Carolina, bem como as discussões que geraram, me despertaram cada vez mais o interesse. Comecei pela “Casa de Alvenaria” (v. 1), porém logo me dei conta de que o livro é bom, mas representa outra etapa na vida da então “ex-favelada” (com tudo o que esse rótulo implica). Meu primeiro exemplar de O QUARTO DE DESPEJO: DIÁRIO DE UMA FAVELADA se perdeu numa das muitas mudanças de endereço e de cidade, como tantos livros importantes de minha vida – entre as perdas mais dolorosas, uma tradução francesa das “Metamorfoses”, de Ovídio, com ilustrações de Picasso, e um exemplar de “A Maçã no Escuro”, de Clarice Lispector, com dedicatória da autora a Carlinhos de Oliveira, que um amigo havia encontrado num sebo e me presenteado – este último é o que mais me dói. Desconfio que ambos tenham sido “sutilizados”, como se diz em francês…

De modo que adquiri recentemente um novo QUARTO DE DESPEJO. O impacto foi imenso. O livro é de uma beleza extraordinária, difícil de definir. É muito mais do que um simples diário, pois contém algo de fortemente ficcional (e, bem refletindo, qual diário não tem algo de ficção?…). Há muito sofrimento, mas também muita alegria e sobretudo determinação em cada página. É uma personagem romanesca que tenta se salvar da miséria real… lendo e escrevendo quando lhe sobra qualquer tempo, em sua luta diária pela sobrevivência. Isto aqui é só um esboço, tosco, do que gostaria de dizer sobre essa escrita arrebatadora.

Lamento que a memória de AUDÁLIO DANTAS, que a encontrou e editou num primeiro momento, tenha sido atacada ultimamente. É claro que ele cometeu erros, mas não se pode utilizar parâmetros de hoje para julgar, sem um mínimo de cuidado, o comportamento de sete décadas atrás. E, como diz o biógrafo da escritora, Tom Farias, sem Audálio talvez não existisse Carolina como autora publicada – possivelmente seus cadernos permaneceriam inéditos até sua morte e depois iriam parar no lixo, o qual foi sua primeira fonte de sustento…

Assinalo que a transcrição dos manuscritos de forma quase literal não me incomoda nem um pouco, longe disso, pois atesta a força de uma escrita (e de uma vida) que se afirma contra todos os obstáculos. Li algumas das opiniões em contrário e acho que são muito pertinentes. Porém não haverá nunca consenso a esse respeito, pois a questão é de uma complexidade que nenhuma decisão simples jamais resolverá. Sempre haverá críticas a se fazer em relação a qualquer edição, com ou sem revisão gramatical e ortográfica. Como alguns especialistas disseram, o ideal é que as edições convivam e que as leitoras e os leitores possam comparar – e decidir qual preferem, se isso realmente for necessário. Quanto mais variações em torno dos originais, melhor.

Como já disse no comentário de post anterior: num caso raríssimo, o livro dela é maior do que a fama internacional, pois esta sempre guardou um resquício de folclore, por causa do preconceito contra a pobreza da autora – como se o inegável talento fosse incompatível com sua origem social. Só sei que essa nova leitura calou fundo em meu repertório existencial e literário.

Fica a pergunta: o que são, de fato, esses escritos – documento, literatura, autobiografia, autoficção “avant la lettre”? Um pouco de tudo e nada disso apenas. Absolutamente inclassificáveis. Ásperos e lindíssimos, como o cacto de Bandeira. Sobretudo não são domesticáveis por qualquer beletrismo. (A referência a Bandeira nada tem de arbitrária, pois ele foi um dos primeiros a reconhecer, em artigo escrito no calor da hora, a força poética desses diários intempestivos e atemporais. Ele não foi o único: nomes como Rachel de Queiroz, Otto Lara Resende e Alberto Moravia, entre outr’s, também o fizeram.) Algo como a “antiliteratura da coisa” de CLARICE, de quem CAROLINA foi contemporânea, como atesta iconicamente uma célebre foto. As duas estiveram em exposição recentemente no Instituto Moreira Salles de São Paulo, apenas separadas pelos andares. Feliz coincidência, que nada tem de casual – fruto de uma decisão curatorial muito acertada.

O espantoso FENÔMENO Carolina de Jesus é facilmente explicável: ao contrário de inúmeros negros pobres talentosíssimos que morrem sem o direito básico à escolarização, ela teve acesso suficiente para ler e escrever quando lhe sobrava tempo, e assim desenvolver sua capacidade literária. As frases que aqui destaco mostram como sua relação com a leitura e a escrita era obsessiva, tal como acontece com os grandes escritores e escritoras, em qualquer parte do mundo.

E ela lançou mão de todos os recursos a seu alcance para expropriar a norma dita culta e o cânone oficial, tornando-os seus e devolvendo-os à sociedade de que também fazia parte, em sua condição marginal e com sua linguagem gramaticalmente inadequada mas por isso mesmo (e não apesar) potente. Não deixa de ser fascinante que, na época da favela do Canindé, antes de assumir o estrelato mundial, sua principal atividade fosse de CATADORA DE PAPEL, permitindo-lhe matar a própria fome e a de seus filhos pequenos. FOME que é tanto a carência alimentar que a tortura todo o tempo quanto a potência mesma que a faz lutar para sobreviver e escrever. Fome de comida e de cultura nela se igualam, e as ficções que traça sobre a própria vida, com arguto e implacável olhar político, são o resultado dessa voracidade existencial e literária.

O PAPEL também é seu duplo suporte: nutritivo e escritural. Como ele mesmo conta, foi com vinte cadernos encardidos que AUDÁLIO trabalhou para extrair o “Quarto de Despejo”. “Quarto de despejo” é como ela chama a favela onde vive, segregada pelo “Palácio”, a urbe que a rejeita para sua PERIFERIA, embora naquela época a periferia estivesse bem próxima do centro da cidade. Desde então a chamada periferia (designação questionável) se ampliou desmesuradamente e as favelas explodiram em São Paulo e em todas as nossas capitais. Não aprendemos nada com o sucesso de Carolina e com seu grito faminto por uma existência melhor para os pobres. Se ela teve o direito de adentrar nossos palácios pela porta da frente, a uma imensa massa da população miserável continua sendo negado, hoje mais do que nunca, o direito a um simples barraco em zona dita periférica – destinados que estão a viver nas ruas, sem proteção alguma.

A literatura de Carolina é para ser adotada em todos os níveis da formação escolar no Brasil, quiçá também noutros países: do ensino básico à graduação universitária, passando pelo ensino médio, até chegar à pós-graduação e ao pós-doutorado. Item obrigatório em qualquer curso de Letras, de Humanidades em geral e mais além. Seus livros deveriam ser um kit básico de sobrevivência num mundo inacreditavelmente ainda cheio de miséria, violência e GUERRA. Triste humanidade que nada aprende com suas próprias catástrofes…

Carolina, como você faz falta num mundo tão belicosamente armado!

“E depois, um homem não há de gostar de uma mulher que não pode passar sem ler. E que levanta para escrever. E que deita com lápis e papel debaixo do travesseiro. Por isso é que eu prefiro viver só para o meu ideal” (C.M.J.) Discordar, quem há de?…

P.S.: quem conhece minha ficção sabe o quanto os diários são nela importantes – diários “verdadeiros” ou inventados, aos montes. Era então fatal que, após tantos anos, me reencontrasse com a escrita carolina (o nome próprio agora, para mim, definitivamente convertido em qualificativo).

P.S. 2: é pena que a exposição “Carolina Maria de Jesus: Um Brasil para os Brasileiros”, no IMS/SP, sob curadoria de Hélio Menezes e de Raquel Barreto, tenha tido menos repercussão do que merecia. Amei tanto quanto a de “Constelação Clarice”, sob curadoria de Verônica Stigger e Eucanaã Ferraz, embora qualquer comparação seja fútil. São duas estrelas maiores da literatura mundial, cada uma com sua singularidade, brilhando intensamente na Linha do Tempo.

 

Abraços fraternos & sororais,

Evando Nascimento Camacã

(Sou um Camacã tangendo um teclado.)

 

 

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[Publicado originalmente em seu mural do Facebook]

 

 

 

 

 

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Evando Nascimento é ensaísta, professor universitário, escritor & artista visual. Publicou os livros de ficção Retrato DesnaturalCantos do Mundo (finalista do Prêmio Portugal Telecom), ambos pela Record, Cantos Profanos (Globo), e A Desordem das Inscrições (Contracantos, 7Letras) e Diários de Vincent: impressões do estrangeiro (Circuito). Ensinou na Universidade Federal de Juiz de Fora e na Université de Grenoble. Realizou cursos e palestras em diversas instituições nacionais e internacionais, como USP, Manchester University, Université de Paris e PUC de Valparaiso. É considerado um dos maiores especialistas de Jacques Derrida, de quem foi aluno na E.H.E.S.S., bem como de Sarah Kofman na Sorbonne, nos anos de 1990. Autor de Derrida e a literatura (É Realizações, 3ª. ed.) e de Clarice Lispector: uma literatura pensante (Civilização Brasileira), bem como de diversos outros livros e ensaios publicados no Brasil e no exterior. Desde 2015, desenvolve também trabalhos de artes visuais. Email: evandobn@uol.com.br




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