O bem-aventurado


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O entardecer tinge de escarlate a Praça do Champ-Herm, em Clermont, França. Uma onda de expectativa varre a multidão quando uma plataforma se ergue no meio da platéia. Sobre ela, sentado numa cadeira de encosto alto, encontra-se um homem com vestes brancas resplandecentes à luz dos holofotes. Tem a cabeça descoberta e a fronte alta e vermelha emoldurada por cabelos brancos. O Papa.
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A cidade de Clermont fervilhou ao longo da semana, prenunciando um evento novo. Porque, nestes 27 de novembro, para a capital da Auvergne, acorreram pessoas de todos os climas do mundo, de todas as línguas e nações, a convite do Vaticano. Não havia idiomas nem dialetos cujas vozes ali não soassem. Cuidou-se, com os mais avançados meios eletrônicos, para que a imagem do Sumo Pontífice fosse vista de qualquer ângulo da esplanada, e suas palavras traduzidas e bem compreendidas por todos os ouvidos. E em todo o mundo.
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O vento frio corta toda a esplanada como açoite.  O papa se levanta da cadeira e ergue os braços. Tem a gola do longo sobretudo levantada e a aragem agita as labaredas de cabelos brancos que cingem-lhe a cabeça majestosa. Silêncio. Fisionomia serena, seu olhar percorre com carinho a imensa plateia, que nenhum salão poderia abrigar. E, em francês, tom brando de voz, inicia suas palavras. Assim: “Escutai: bem-aventurados os pacíficos. Bem-aventurados os que semeiam a paz. Ouvi: aqui nesta cidade, nesta mesma praça, em novembro de 1095, passados mais de nove séculos, meu antecessor, o Papa Urbano II, como o chefe da Cristandade, proferiu, para uma plateia composta por prelados em traje de gala, monges vestidos de burel, guerreiros de cotas, senhores e damas, o discurso de maior influência medieval e que, ainda hoje, afeta as vidas e os destinos de milhões. E o que propunha o Papa ao entardecer daquele dia tão friorento como o dia de hoje? Eu vos direi, sem nada omitir e aqui começa a minha expiação. Urbano II, num discurso inflamado, exortou a conquista de Jerusalém, utilizando-se de palavras como estas: ‘Ó raça dos francos! Raça amada e eleita de Deus. Entrai para o caminho do Santo Sepulcro. Arrebatai aquela terra de uma raça perversa’  – e aqui ele se referia aos turcos muçulmanos – ‘e submetei-a a vós próprios…’ Propunha guerra. ‘Ó raça eleita de Deus, resta-vos cumprir uma obra pia: deveis acudir aos vossos irmãos que habitam o Oriente. Por que não tomardes providência, a raça maldita levará adiante suas devastações e passará a ameaçar a todos nós, toda a Cristandade’. (Pausa. O Papa respira fundo. Retoma). ‘O fatídico discurso despertou considerável entusiasmo na plateia: muitos choraram enquanto outros exultavam de alegria. E um grito Dieu li volt – Deus o quer, brotou do seio da massa tornando-se o grito de guerra. ‘Tomai a cruz’, incitou Urbano! ‘Que seja ela o vosso sinal. E uma vez colocada no peito, entre os vossos ombros, a cruz vos transformará em soldados de Cristo…’
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Ai do mundo…
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Milhares aderem à jornada. Homens cansados da pobreza e sem esperança. Aventureiros ambiciosos e também muitos espíritos tímidos fugindo ao escárnio de covardia juntam-se a almas sinceramente religiosas para libertar a terra de nascimento e morte de Cristo. Os primeiros a partir de França e da Alemanha, hostes populares, bandos desorganizados, iniciam suas devastações ainda na Europa, pilhando os campos e lares, atacando e assassinando os judeus, por ódio religioso, uma vez que era o judeu visto como o autor da morte de Cristo.
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(O Papa faz outra pausa. Bátegas de suor cobrem-lhe a fronte. A fisionomia perde os traços de serenidade. Pensa: ‘Oh! O Senhor vos mostre a sua face e tenha piedade de vós.’ Prossegue.)
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Para as populações dos Balcãs, o nome cruzado torna-se sinônimo de bandido. Esta fatídica expedição, comandada por um homem nomeado Pedro, o Eremita consegue, após causar estragos de toda ordem, chegar a Constantinopla, cidade aliada. E esse exército de estropiados é atravessado pela frota imperial para margem oriental do Bósforo onde reinicia as pilhagens e devastações. E são dizimados pelos turcos. (Outra pausa. Seu olhar perscruta a multidão) Eis o resultado catastrófico da chamada Cruzada Popular: milhares de peregrinos mortos e centenas de judeus chacinados. O testemunho, violento e confuso, do entusiasmo suscitado pela palavra de Urbano II, proferida aqui, em Clermont.
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(Um secretário se aproxima e enxuga o rosto do Papa, que bebe também um pouco de água.)
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E o pior estava por vir: os cavaleiros prepararam-se e assim munidos de todas as suas armas de guerra, dirigem-se à Constantinopla, por terra e mar, a fim de embrenhar-se na Ásia Menor, incumbidos que foram de libertar a Terra Santa. Uma guerra, acreditavam, destinada a dilatar e a glorificar a Cristandade.
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E muitos julgaram necessário matar os judeus da Europa antes de ir para tão longe a fim de combater os turcos em Jerusalém. Em congregações pacíficas de judeus, a notícia da Cruzada, e as ameaças de seus chefes provocaram terror e pânico justificados. Iniciou-se uma matança em Worms, Metz, Regensburg, Praga… Estes pogrons começaram uma longa série de assaltos violentos, de sangrentos episódios, que continuaram até nossos tempos. Milhões de mortes, de insultos e ofensas. As primíciasdo grande holocausto.
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(Outra pausa. A tela mostra o rosto de Sua santidade crispado de dor. Os olhos se fecham. O que estará pensando? ‘Oh! O Senhor volva o seu rosto para vós e vos dê a paz.’ Reabre os olhos e prossegue)
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E o grande exército de Cristo cruza o Bósforo. A primeira cidade, Nicéia, cai, mas é poupada da pilhagem indiscriminada pela ação da hábil diplomacia do imperador do Bizâncio.
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Os cruzados avançam: vencem a batalha de Doriléia e reencetam a marcha rompendo avante por uma terra erma e inóspita. Em 21 de outubro de 1097, após uma jornada de sofrimento, o exército bivaca diante das muralhas da cidade de Antióquia. E durante o longo sítio, coisas espantosas foram ali praticadas pelos peregrinos-guerreiros. As notas da época são impressionantes. O cemitério dos muçulmanos, situado fora das muralhas, teve seus túmulos violados, os cadáveres exumados e arrastados para fora de suas sepulturas, decapitados e cargas de cabeças foram levadas para o acampamento nos lombos de burros. E, em seguida, à força de catapultas, entre gritos e gargalhadas, lançadas para dentro da cidade. Muitos cavaleiros cristãos, selvagemente excitados, desfilavam com troncos humanos empalados e erguidos em suas lanças, como se fossem estandartes.
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Alguém poderia medir essa dor, essa tristeza insuportável? Quando Antióquia caiu, à custa de traição, no interior da cidade perpetrou-se horrenda a matança. Bastou? Não! Pois os nossos estavam ainda longe de saciar-se de carnificina. (Pausa longa, a cabeça abaixada. Quando retoma o tom de voz é baixo.) Transformaram-se em canibais.
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(Senta-se. O secretário oferece água que ele recusa. Ergue-se novamente)
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Os habitantes da cidade de Maara não podiam supor o destino quase inimaginável que lhes foi reservado. Pois em Maara os cristãos fazem ferver os muçulmanos em caldeira, fincam as crianças em espeto e as devoram grelhadas.
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(Nova pausa. O Papa esfrega demoradamente as têmporas com as pontas dos dedos. Tem o rosto banhado em lágrimas. ‘Oh, tenha piedade de nós… ’)
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Finalmente, ao entardecer do dia 7 de junho de 1099, quase três anos depois da partida, o exército de Cristo chega aos pés dos muros de Jerusalém. Escutai: por um capricho da História, os turcos, aos quais eles tinham vindo combater, haviam sido expulsos da cidade pelos fatimidas do Egito, um ano antes. O califa ofereceu a paz em termos de segurança para os peregrinos e adoradores de Cristo. Em vão. Exigiu-se a rendição incondicional. Foram quarenta dias de cerco. Em 15 de julho o assalto à muralha logra em êxito e coisas horrendas acontecem. A carnificina não teve limite: os muçulmanos são decapitados, torturados, queimados nas chamas. Setenta mil ali morrem e tamanha é a matança junto ao pórtico do Templo de Salomão que os relatos afirmam que por ali se cavalgou com sangue até o joelho do cavaleiro e até as rédeas do cavalo. Nas ruas vêem-se pilhas de cabeças e mãos e pés. As mulheres são mortas a punhaladas, crianças de colo arrancadas pelas pernas do seio da mãe e lançadas contra postes ou sobre as muralhas. Os judeus, que haviam se unido aos muçulmanos em defesa da cidade, são levados a uma sinagoga e queimados vivos…
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(Senta-se, aturdido. Agora aceita a água que lhe é oferecida. Permanece sentado, quando conclui.)
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Estava feito: o objetivo fixado pelo Papa Urbano havia sido alcançado e os vitoriosos juntaram-se na igreja do Santo Sepulcro e ali, abraçando-se uns aos outros, choraram de alegria e alívio, agradecendo a Deus as mercês pela sua vitória. Por aquela morte na cruz, quantas crucificações!(Pausa)
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O poder das palavras! “Ordenastes, obedeci, Santo Papa.”
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(Levanta-se e ergue os braços. A noite caiu sobre Clermont. O céu encontra-se, agora, polvilhado por um manto primitivo de estrelas. O Papa ajoelha-se. Permanece longo tempo de cabeça abaixada, como em oração. Então ergue o rosto.)
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O poder das palavras! Escutai: é com este poder da palavra e no mesmo local que o meu antecessor lançou-se à guerra que eu venho vos suplicar o perdão por tantas e tamanhas atrocidades cometidas. Essa história sombria não admite, até o fim, nenhum conforto, nenhuma reconciliação, nenhuma transfiguração. E por ser absolutamente imperdoável é que vos imploro a concessão do perdão. Porque eu aqui vim para transmitir-vos o lamento de Deus em face da perdição do Seu mundo, esse lamento que se assemelha a um aflito, escutai-o: “Eu não queria isso, Eu não queria isso.”
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(Sua cabeça volta a abaixar. Tem o rosto banhado de lágrimas. A fisionomia, no entanto, recobrou a serenidade)
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Da mais profunda desgraça poderá germinar a esperança. Se aquelas palavras de Urbano II puderam provocar tanta dor, tanta carnificina, tanta loucura, desejo veementemente que estas, agindo no sentido inverso e por intermédio de vosso perdão, obtenham força extraordinária para promover, no coração de todos, o sentimento mais elevado de humanidade – a fraternidade universal.
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Cumpre-me assim evocá-las do fundo da alma e pretendê-las capazes de transformar esta expiação dos crimes, dos erros, dos desvios do passado, que se têm repetido no presente, em esperança. Imploro-vos o perdão pelo passado e se este for concedido, que se projete no futuro como fraternidade entre os povos, sem distinção de raças e credos.
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(Ergue-se, amparado pelo secretário)
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Ele não queria. E o vosso perdão, concedido, estará solidificando, na essência mais profunda da Humanidade, a palavra sentimento – Fraternidade – que erguendo-se como luz na escuridão da noite arrematará a aflição, a dor e o sofrimento, mudando o sentido da existência dos homens.

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Sérgio Mudado nasceu em Belo Horizonte e reside na rua onde nasceu. Formado em Medicina – na mesma faculdade por onde passaram Pedro Nava e Guimarães Rosa. Publicou os romances O quarto selo – A origem secreta da AIDS (1989); Uma vez ontem (1997); Vassalu – A saga de um cavaleiro medieval (2006) e Os negócios extraordinário de um certo Juca Peralta (Crisálida, 2010), finalista do Prêmio São Paulo de Literatura. Blogue: http://sergiomudado.blogspot.com/ E-mail: smudado@uol.com.br




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