Nordeste pop


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…………………..– 35 anos de um clássico reposto em circulação

 

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Gilmar de Carvalho (Sobral, CE, 1949), não tivesse pago do próprio bolso, em 1977 – neste ano comemorando 35 de efeméride –, a edição de seu primeiro (e até agora único) romance, Parabélum, e provavelmente ia chamar a atenção naquele tempo em que o Brasil era governado por militares excessivamente desconfiados com o que cheirasse a liberdade, esse território amplo fora do qual a literatura, sobretudo a de ficção, não se alimenta. E Parabélum pre-ci-sa-va de liberdade, tanta, mas tanta, que Gilmar, hoje professor aposentado da UFC, pesquisador, ensaísta, especializado em literatura de cordel e na obra de Patativa do Assaré, teve de achar uma casa publicadora à altura do romance radical que ousadamente criou num tempo onde a linguagem necessitava, contraditoriamente, gritar e esconder-se. Tinha, depois da edição praticamente clandestina, de achar esse selo digno, e achou: Armazém da Cultura, responsável por agora colocar no mercado a edição enfim merecida do romance (264 pág., R$ 55,00), obra saudavelmente ambiciosa, inadiável naqueles tempos e atualmente recuperadora de uma época e um imaginário indissociáveis da História do Brasil e de um caldo cultural convergente: o do Nordeste, não aquele clássico, cristalizado, sobretudo a partir de Os sertões, de Euclides da Cunha. Bem diferente, Parabélum é um romance pós-romance, pré-romance, antirromance e o que mais quisermos colocar-lhe como selo.
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A nova edição, saída ao anoitecer do ano que recém findou, completando 34 anos de silêncio crítico (uma vez circulando pouco, isto é, mal, a recepção à obra ficou comprometida: azar da literatura brasileira), dá-nos agora finalmente a oportunidade de nos defrontarmos com uma narrativa que ousa em todos os níveis, uma ficção que em termos de arquitetura romanesca mais que ousa, ultrapassa o possível ainda que pensemos em superação máxima quanto ao gênio criativo em terras nordestinas. E sejam que terras forem, o grito primal foi dado e o narrador desdobra-se em autor onisciente e em protagonista em busca do romance ansiado, necessário.
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E era, por demais, necessário. E, no entanto, tivemos de esperar 35 anos para, neste 2012, ficarmos cara a cara com a arma – a parabélum 67 de Lampião, o modelo criado pelos alemães? – que saiu da cabeça inquieta e ousada do escritor, a cuspir linguagem como balas mortais, a fazer da ciência eternamente renovável do quanto e do como se pode narrar num sem-fim de soluções.
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Ora Jesus, o Salvador, ora Lampião, ora o personagem quase típico da poesia de cordel (sem os recursos daquela, usada, sim, como elemento estimulador da atmosfera dramática, dos temas sociais, dos tipos extraídos do sertão mais ermo), mas, naturalmente, embebida, essa ficção embriagada em desespero por remissão em prosa, uma prosa bárbara, uma prosa profana e simultaneamente eletrificada pela força da récita. Uma prosa poetizada por um escritor que se sabia sob a mira das armas políticas de então. E que se pretendia – como pretendia e o fez – realizar um romance de denúncia, e denúncia a mais funda que se podia imaginar, então precisava sacrificar uma certa legibilidade, pagando com isso o alto preço de perder leitores.
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Perdeu-os. O livro não era fácil. Parecia (e creio que com inteira razão) a Gilmar de Carvalho que se ele fosse curto e grosso acabaria preso, torturado, morto. Vá lá se saber… Então escondeu-se justamente onde a literatura mais se expõe: na linguagem. E assim realizou uma obra-prima no que se refere à densidade linguística, ao apuro da expressão, ao fundo abismo no qual só a palavra conhece o eco.
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Não por outra razão, Armazém da Cultura preparou uma edição luxuosa, à altura da importância do livro, com orelhas de Ana Miranda e um estudo introdutório de fôlego e argúcia crítica de João Silvério Trevisan, que igualmente conhece bem aquele período, e que se deparou com problemas semelhantes.
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Um livro, em suma, que definitivamente não cabe numa resenha. E que, lançado no fim de 2011, se não frequentou a lista dos melhores lançamentos do ano, que seja desde agora redescoberto, lido enfim, reconhecido como um dos grandes acontecimentos da literatura nos anos 1970, e que vire o que já é – um destaque editorial neste 2012, que recém começa a mostrar a que veio.
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O passado ainda tem muita surpresa a revelar.

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………………….Gilmar de Carvalho

 

 

 

 

 

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Paulo Bentancur (Santana do Livramento, RS, 1957; mora em Porto Alegre há 45 anos) é escritor de diversos gêneros. Instruções para iludir relógios (prosopoemas, 1994), Bodas de osso (poemas, 2005), A solidão do Diabo (contos, 2006), Três pais (infanto-juvenil, 2009), além da coleção Brincando de pensar (2001), sobre gênios do conhecimento humano tanto na filosofia quanto na arte, recontados para pré-adolescentes. Crítico literário, colabora na imprensa cultural do País desde o início da década de 1980. Teve textos publicados na Argentina, México e Itália. Ganhou cinco vezes o prêmio Açorianos de literatura, nas categorias infantojuvenil, poesia e especial (livros de gênero inclassificável). Ministra oficinas de criação literária on line e individual em seis gêneros (conto, romance, crônica, poesia, infantojuvenil e ensaio). Foi jurado de diversos concursos entre os quais o Prêmio Jabuti na categoria romance. Site: www.artistasgauchos.com.br/paulob. E-mail: bentancur@uol.com.br




Comentários (8 comentários)

  1. Gilberto Abrão, Excelente resenha, Paulo! Com um texto desses, vapt-vupt, o desejo de ler o livro está imediatamente criado, como num movimento mágico. Quero empunhar o Parabélum e por isso vou atrás dele. Um forte abraço.
    5 fevereiro, 2012 as 14:29
  2. Adriane Garcia, Paulo, a crítica mais que nos aguça o desejo de ler o livro. Tanta história que precisamos ler, tantas descobertas desses outros olhares e formas de escrever. Grande abraço.
    5 fevereiro, 2012 as 16:13
  3. Haroldo Castro, Caro crítico: impressiona como pode um livro tão importante ficar esse tempo todo à margem, como o senhor mostra com clareza. Com seu texto tomamos consciência que a crítica literária pode exercer um duplo papel: o de analisar as qualidades ou defeitos de uma obra (no caso, qualidades) e também a biografia desse livro, a maneira como ele foi recebido – muitas vezes ignorado. Tudo isso o seu artigo nos mostra. Belo trabalho.
    5 fevereiro, 2012 as 19:58
  4. líria porto, recomendado por ti, paulo bentancur, e o desejo de ler o livro brota como água na grota – obrigada! parabéns à editora pela escolha e publicação, ao professor gilmar de carvalho pela obra essencial.
    5 fevereiro, 2012 as 21:15
  5. Mônica Vico, Excelente crítica. Realmente, dá vontade de sair correndo procurando o livro. Parabéns! Abraço!
    6 fevereiro, 2012 as 15:45
  6. Betzaida, Faço coro com a Mônica: excelente crítica, Paulo. Mostrou o quanto é urgente a leitura deste livro: pela temática, pela lida com a linguagem, pela situação histórica em que foi escrito. Vou já providenciar um exemplar!
    6 fevereiro, 2012 as 17:28
  7. Carmen seganfredo, Fiquei curiosa para ler! Você, Paulo, é quem sempre revela muita surpresa literária do passado! Antes de ler tua resenha “Parabelum” para mim, era apenas uma expressão latina “si vis pacem, para bellum” e a pistola Luger. Agora sei que há bem mais que isso! Parabé(lum)ns a você e a editora Armazém da Cultura por desencavar esta raridade! Forte abraço!
    7 fevereiro, 2012 as 13:26
  8. Flavio Braga, Valeu, Paulo. Vou ler o romance com a bela expectativa que a tua resenha levantou.
    7 fevereiro, 2012 as 13:37

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