A literatura vai a Hollywood


 

 

Cinema e Literatura, criações do imaginário, parceiros na construção da cultura, na era do domínio da imagem visual dividem ainda o desejo comum: fornecer o alimento indispensável à sobrevivência da fantasia, da inteligência, da crítica. E prazer.”

Beatriz Resende

 

“Le roman est un récit qui s’organise en monde, le film un monde qui s’organise en récit”

Jean Mitry, Esthétique et psychologie du cinéma

 

 

 

 

A literatura norte-americana do século XX , a par de seus próprios meios, modos e formas de expressão e circulação, teve e tem no cinema uma de suas veredas de veiculação historicamente mais frequentes, mais atuantes e mais…  polêmicas – sim, muita polêmica pelos próprios elementos acerca da interação, ou dicotomia, entre as duas linguagens artísticas. Interação e dicotomia que sempre existiram em seu relacionamento, muitas vezes complexo, mas intenso – tantas foram as parcerias estabelecidas entre cineastas e escritores, ficcionistas, dramaturgos, até poetas, que a par de terem suas obras adaptadas muitos deles foram roteiristas e trabalharam ‘a troco de nada’ para Hollywood .

Agora mesmo testemunha-se, circulando pelas telas de boa parte do país, um dos exemplos mais concretos e taxativos dessa relação intrínseca , dialógica e dinâmica, entre literatura e cinema – propícia a profundas reflexões e cotidianos julgamentos sob a égide contumaz do ‘filme melhor que o livro’, ou ‘livro melhor que o filme’, com efeito, “O curioso caso de Benjamin Button”, adaptado de conto integrante da coletânea Seis contos da era do jazz; de  F. Scott Fitzgerald, um dos maiores expoentes da literatura norte-americana do século XX – de quem o romance O grande Gatsby gerou filme de grande bilheteria, e foram à tela Tender Is the Night, The Love of the Last Tycoon, This Side of Paradise, além de o filme “A última vez que vi Paris” ter sido baseado em seu conto “Babylon Revisited“,  e que é um exemplo bem-acabado do escritor, como outros grandes, compelido a ter de ganhar a vida trabalhando como roteirista e adaptador, dedicando-se durante os três últimos anos de vida à escrita de argumentos para a MGM – constitui per se excelente espécime a permitir uma reflexão sobre a sempiterna relação literatura-cinema, com suas interseções, confluências e divergências. Poucas formas artísticas estabelecem entre si tantas ilações de sentido mútuo, ainda que sujeitas a entreveros e embates, acusações de “infidelidade autoral”, infindáveis (e insolúveis) discussões sobre liberdades de criação, etc. – até porque são diferenciadas as linguagens e distintos os respectivos códigos e modos de funcionamento: narrativa literária e narrativa fílmica distinguem-se e na maioria dos casos contrastam-se; são sempre  difíceis as transposições de uma para o outro, pois as características intrínsecas do texto literário – originalidade, subjetividade, entrelinhas, elaborações – por princípio não encontram a mesma expressão na narrativa cinematográfica.

Não se pode negar que, nem tanto em suas origens mas desde sua fase de consolidação e sedimentação, o cinema tenha procurado na aproximação com a literatura uma forma de legitimar-se – primeiro de tudo, pelas frequentes adaptações de obras literárias para a tela,que tornaram-se prática corrente; depois, pela contratação de escritores como roteiristas – e saber se os roteiros trazem a marca da criação literária já é uma outra questão, que talvez possa ser analisada a partir da postura de alguns desses escritores-roteiristas: William Faulkner, por exemplo, dizendo-se um “yes, man”, não fazia segredo sobre a natureza de sua atividade em Hollywood: “Faço apenas o que me dizem para fazer; é um emprego, e pronto.”

O elenco é significativo, quer em quantidade quer sobretudo em qualidade . Começou por buscar nos mais antigos – e nada desprovidos de qualidade – fonte para suas produções: assim foi, por exemplo, com Henry James, um dos primeiros grandes escritores norte-americanos (ainda no século XIX, pois nascido em 1843 já se tornara reconhecido na década de 1870), embora naturalizado britânico ao fim de sua vida, autor de alguns dos romances, contos e críticas literárias mais importantes da literatura de língua inglesa, teve adaptado para o cinema: “Taça de ouro”, “Os inocentes – adaptação do romance  Turn of the Screw (A volta do parafuso), “As asas do amor”, de The wings of the dove (As asas da pomba). Da mesma forma com Edith Warthon, cujo romance The Age of Innocence (A idade da inocência) foi filmado por Martin Scorcese. Caso interessante é o de Ellery Queen  –  um dos heterônimos coletivos criado em 1929 por  Frederic Dannay e Manfred B. Lee,  escritores norte-americanos de romances policiais; e também um personagem fictício por eles criado – foi levado ao cinema com o filme “Ellery Queen, Master Detective”, de 1940. Outro dos criadores de histórias policiais, o excepcional Raymond Chandler, que em 1939 publicara The Big Sleep, teve sua obra cinco anos depois adaptada para o cinema,com roteiro – um dos “mais complexos de todos os tempos”, confessou o diretor Howard Hawks  – escrito por ele próprio e por  Faulkner, ambos já iniciados em suas atividades “a serviço de Hollywood”: Chandler desde 1943 trabalhava na Paramount como  escritor assalariado, debutando na roteirização, com o diretor Billy Wilder , de nada menos  que “Double Indemnity” (no Brasil, “Pacto de sangue”) – uma das obras-primas do cinema noir – a partir do  romance de James M. Cain; deu-se tão bem que, além de  suas histórias renderam nada menos do que dez filmes, trabalhou como roteirista na última década de sua vida, inclusive fazendo no mesmo ano de 1950 com Wilder outra obra-prima, o filme “Sunset Boulevard” (“Crepúsculo dos deuses”) e com Alfred Hitchcock e parceria de Czenzi Ormonde o magistral “Strangers on a Train” (Pacto Sinistro), do romance de Patricia Highsmith.

Faulkner, por sua vez,  tornou-se um roteirista profissional, por necessidade de sobrevivência: adaptou, além de histórias próprias, escritas especialmente para o cinema,  obras de outros autores, como o citado  “À beira do abismo” e “Uma aventura na Martinica”,   baseado em Ter e não ter, de Ernest Hemingway ,  e dele mesmo  foram para a tela “Levada à força” baseado em Santuário; “O mundo não perdoa”, baseado em O intruso; “O mercador de almas”, baseado em A aldeia e nos contos “Cavalos malhados” e “Barn Burning”; “A fúria do destino”, baseado em O som e a fúria; “Santuário”, baseado em Santuário; “Os rebeldes”, baseado em Os desgarrados. Mario Puzo é outro exemplo de escritores que enveredaram pela trilha de roteirista (a rigor, todas suas obras, desde o primeiro livro, The Dark Arena, de 1955, inscrevem-se naquele rol de textos ficcionais que parecem mesmo terem sido escritos para serem filmados…), fosse adaptando  suas obras, caso da trilogia cinematográfica “O poderoso Chefão”, dirigida por  Francis Ford Coppola, fosse criando roteiros específicos .

John Steinbeck, ele mesmo adaptou a versão de sua novela O pônei vermelho e teve no cinema As vinhas da ira, A leste do Éden, Ratos e homens (cujas duas versões fílmicas, de 1939 e 1992, foram roteirizadas por mulheres).

Ernest Hemingway, cujo nascimento completa 113 anos neste 2012, foi um exemplo insofismável, pela temática, estilo, linguagem e enfoque de seus textos ficcionais,de um escritor essencialmente ‘voltado’ para o cinema,  as histórias já nascendo como filmes  – tantas delas ,como não poderia deixar de ser, transpostas para o cinema: os romances The Sun Also Rises [O sol também se levanta),  A Farewell to Arms [Adeus às armas],  For Whom the Bell Tolls [Por quem os sinos dobram], The Old Man and the Sea [O velho e o mar], The Garden of Eden [O jardim do Éden], os contos “The Snows of Kilimanjaro” [As neves de Kilimanjaro] e “The Killers” [Os matadores – que gerou o filme “Assassinos”].

Reza a lenda – e Hollywood é pleno delas – que John Fante, um dos ‘enfant terrible’ da literatura norte-americana moderna, morto em 1983, intentava “chegar a ser o melhor escritor que o mundo conheceu”, mas para ganhar a vida, e sustentar seus vícios, aceitava roteirizar filmes B, “vendendo alma ao Diabo” e publicando apenas quatro livros em quase 40 anos – mas dois chegaram com relativo sucesso ao cinema:  Pergunte ao pó e Full of Life. Por sinal, Fante tinha como admirador incondicional outro dos ‘marginais literários’ contemporâneos: Charles Bukowski, cuja adaptação do  conto “A mulher mais linda da cidade’, do  primeiro volume de Ereções, ejaculações e exibicionismos, gerou o filme “Crônica de um amor louco”  –  além do caso específico do filme “Barfly”, com roteiro de Bukowski, experiência que depois  transformou na novela Hollywood, numa espécie de contramão do caminho usual. Aliás, a sedução exercida pela meca do cinema como meta e cenário da própria realização pessoal é exemplarmente retratada, entre outros aspectos, por Nathanael West em seu romance, com o mesmo título fílmico, The Day of Locust (O dia do gafanhoto).

Paul Auster, dos contemporâneos, é um daqueles que mais clara e substancialmente incorporam a duplicidade sinérgica, por assim dizer, entre as duas expressões artísticas – homem da literatura tanto quanto de cinema: respeitado ficcionista, roteirizou a versão fílmica de Smoke e Blue in the Face, além de ele próprio dirigir  “Lulu on the Bridge” e o recente “Kimera”, adaptado de sua novela  The winner life of Martin Frost. Philip Roth, embora um dos maiores, quiçá o maior escritor norte-americano do presente, teve apenas duas obras levadas à tela, Fatal (no filme de mesmo título) e The Human Stain (A marca humana, que deu no filme “Revelação”). A mesma ‘limitação’ sofreu Norman Mailer, que teve apenas seu Os degraus do Pentágono posto na tela.

No precioso elenco, somente duas mulheres: Dorothy Parker, que da famosa Round Table no Hotel Algonquin, em Nova York, deve ter saído inspiração tanto para as inúmeras críticas literárias que publicou, quanto para suas novelas, contos ,poemas e especificamente roteiros cinematográficos, caso de “Suzy” , “Nasce uma estrela” (às duas versões, de 1937 e 1954), “Canção de amor”, “O cowboy e a grã-fina”, “Pérfida”, “Sabotador”  ,“Desespero”; e a contemporânea Annie Proux , que teve adaptados para a tela o romance The Shipping News [Chegadas e partidas] e o conto que gerou o premiado filme “O segredo de Brokenback Mountain”.

Para o pesquisador e professor do departamento de espanhol e português da University of California (UCLA), Randal Johnson – com quem tive oportunidade de conversar quando de sua estadia no Rio de Janeiro, em 2008, convidado pelo Programa de Pós-graduação da Escola de Comunicação (ECO-Pós) da UFRJ para ministrar uma disciplina compactada sobre Cinema, Literatura e TV– as relações entre cinema e literatura não se limitam às adaptações do texto escrito para a tela, apontando três outros importantes pontos de encontro: o uso estrutural ou incorporação de textos literários no discurso cinematográfico – esta indubitavelmente a ocorrência maior, de que o cineasta Stanley Kubrick, p. ex., foi um dos maiores artífices; depois, os filmes feitos sobre escritores – de que gradativamente proliferam os exemplos: agora mesmo o diretor/ator Clint Eastwood confirma seu projeto de uma biografia fílmica de Mark Twain e anuncia-se um filme sobre Ernest Hemingway, baseado no livro Papá Hemingway, de  A.E. Hotchner; terceiro, por meio de alusões literárias nos diálogos e citações implícitas ou explícitas, visuais, orais ou escritas diretamente na tela – um expediente cada vez mais recorrente na produção contemporânea. Por outro lado, Johnson critica enfaticamente a valorização do texto literário sobre o discurso cinematográfico, sustentando ser muito comum entre os espectadores uma exigência de fidelidade do filme ao livro. A insistência na fidelidade da adaptação cinematográfica à obra literária originária pode resultar em julgamentos superficiais que frequentemente valorizam a obra literária em detrimento da adaptação, sem uma reflexão mais profunda. Os filmes são julgados criticamente porque, de um modo ou de outro, não são “fiéis” à obra modelo. O conceito, de ‘fidelidade’ assume conotação crucial, tornando-se na discussão/reflexão do relacionamento entre cinema e literatura, no chamado xis da questão: tudo, a rigor, gravita em torno disso.

Pode perfeitamente ocorrer de a mais fiel das adaptações gerar o pior dos filmes, o material literário na forma como escrito não funcionar na tela, por mais forte que seja a história no original e melhor o roteirista: os componentes de um grande romance podem ser impróprios para a realização de um filme baseado nele – a corroborar a sentença do cineasta (excepcional) Stanley Kubrick: “livro é livro, filme é filme”. Kubrick, um estudioso respeitado das relações entre as duas linguagens, fez praticamente todos os  seus filmes adaptados de matéria-prima literária, uma predileção que o levou a formar produtivas parcerias com diversos autores, a quase totalidade norte-americanos (apenas três exceções em sua carreira: Lolita, de Vladimir Nabokov, russo de nascimento mas estabelecido nos Estados Unidos em 1934; Laranja mecânica, do inglês Anthony Burgess;  De olhos bem fechados, do austríaco Arthur Schnitzler): o escritor policial Jim Thompson , por exemplo, escreveu os diálogos de “O grande golpe”, baseado em livro de Lionel White,e com o próprio cineasta e do também escritor Calder Willingham  assinou o roteiro de “Glória feita de sangue”, baseado em romance de Humphrey Cobb;  Terry Southern  foi parceiro de Kubrick em “Dr. Fantástico”, inspirado em romance de Peter George; o conto “O sentinela”, de Arthur C. Clarke, deu origem a “2001 – uma odisséia no espaço” – cujo argumento foi criado especialmente para o cinema por Kubrick e Clarke e depois, num movimento de contra-mão, transportado para livro pelo escritor; Kubrick mesmo escreveu o roteiro de “Barry Lyndon”, adaptação do romance de William M. Thackeray; Gustav Hasford e Michael Herr o ajudaram a roteirizar “Nascido para matar”, baseado em livro de Hasford.

Na década de 1960, McLuhan chamava a atenção para o fenômeno de interpenetração entre diferentes mídias, destacando que, para a indústria cinematográfica hollywoodiana, um best seller era como um “jorro de petróleo ou indício de ouro”, isto é, os banqueiros de Hollywood farejavam, neste tipo de livro, grandes lucros para o cinema, uma garantia de sucesso de bilheteria. Além de já ter sido aprovado pelo gosto popular, o best seller ainda emprestaria ao meio cinematográfico a “superioridade do meio livresco” – uma ‘cultura’ que atravessa os tempos, chegando hoje a ‘blockbusters literários e cinematográficos’ como John Grishan, Michael Crichton, Sidney Sheldon, Stephen King, e outros igualmente fazedores de sucessos. O cinema não poderia mesmo desprezar, no caso de Grishan, o sexto escritor mais lido nos Estados Unidos, apontam algumas estatísticas, cujos livros girando sempre em torno de questões de advocacia,  geralmente criticando nuances do sistema judiciário americano e das grandes firmas de direito tornaram-se manancial quase inesgotável para filmes – todos tendo ele como roteirista: A firma, O Dossiê Pelicano, O cliente, Tempo de matar, O segredo, O homem que fazia chover, Até que a morte nos separe, O júri, A casa pintada, além de The Innocent Man – a ser lançado neste ano nos Estados Unidos –  e O sócio, em cujo roteiro Grishan está trabalhando. Michael Crichton talvez seja um daqueles que mais clara e substancialmente incorpora a duplicidade sinérgica, por assim dizer, entre as duas expressões artísticas:  homem da literatura tanto quanto de cinema , de múltiplo fôlego, escreveu e dirigiu quase uma dezena de filmes  e teve adaptado O enigma de Andrômeda, Dealing: Or the Berkeley-to-Boston Forty-Brick Lost-Bag Blues, Um caso de necessidade, O homem terminal, Sol Nascente, Jurassic Park – parque dos dinossauros, Revelação, Congo, Esfera, O 13º guerreiro, Linha do tempo. Sidney Sheldon é outro exemplo  bem acabado, na contemporaneidade, dessa simbiose: fértil produtor de bestsellers – são mais de 300 milhões de livros vendidos, em 181 países, traduzidos para 51 idiomas , um nome usado ad nauseam pelos estúdios para promover um filme, como sinônimo de sucesso –  produziu 250 roteiros para televisão, 25 filmes e 6 peças para a Broadway e tem entre suas obras adaptadas para a tela grande  A ira dos anjos, O outro lado da meia-noite e Se houver amanhã.

Hollywood não poderia jamais esquecer do ‘mestre do suspense’, Stephen King – o campeão absoluto das transposições cinematográficas: Carrie (“Carrie a estranha”), Salem’s Lot (“A hora do vampiro”), The Shining (“O iluminado”), Firestarter (“A incendiária”), Different Seasons (contos que deram origem aos filmes “Conta comigo”, “O aprendiz”, e “Um sonho de liberdade”), Christine (“Christine, o carro assassino”), Pet Sematary (“Cemitério maldito”), Cycle of the Werewolf (“Bala de prata”), It (“A coisa”, Misery (“Louca obsessão”), Desperation (“Desespero”), Sleepwalkers (“Sonâbulos”).

De Thomas Harris, transformaram-se em filmes O silêncio dos inocentes, Dragão vermelho e Hannibal; de Tom Clancy, seu primeiro livro, Caça ao Outubro Vermelho, Jogos patrióticos, Perigo real e imediato, A soma de todos os medos; de James Ellroy, Dália Negra –  caso típico em que uma determinada obra e o filme dela derivado tiram um escritor de certa obscuridade e o transformam em ‘astro’.

Sucesso na tela, em maior ou menos grau, de autores e suas obras somente possíveis graças ao indispensável  roteirista. Gore Vidal, um dos expoentes da literatura norte-americana contemporânea, reconhecido por seus 30 romances, uma coletânea de contos, seis peças de teatro e diversos ensaios, não vacila em apontar o roteirista como “o verdadeiro gênio insubstituível por trás de um filme”, defendendo no ensaio “Who makes the movies?”(Quem faz os filmes?), que “os diretores de cinema são meros técnicos, facilmente substituíveis e que não podem ser levados lá muito a sério como autores”. Gore escreveu 24 roteiros de filmes e séries para cinema e TV, entre eles “Ben Hur” – do romance (que é de 1880) de Lew Wallace – “Myra Breckinridge” – de  sua novela  com o título – e, para quem não sabe, até como ator atuou : em “Roma”, de Felini.

A galeria dos imprescindíveis mediadores/intermediadores entre escritores e cineastas, entre literatura e cinema abriga Ben Hecht, responsável pelo roteiro de E o vento levou, adaptado da obra de Margareth Mitchell; Dalton Trumbo, que dirigiu “Johnny vai à guerra”, de seu próprio romance, e roteirizou  Exodus, de Leon Uris;  Spartacus, de Howard Fast;  O homem de Kiev, baseada na novela de Bernard Malamud; o escritor de ficção científica Ray Bradbury, que fez o roteiro do clássico Moby Dick, de Herman Melville, e de seu livro Blade Runner veio o filme, assim como de Farenheit 451; Horace McCoy roteirizou seu romance Mas não se mata cavalos?, que deu no filme “A noite dos desesperados”; Arthur Miller adaptou seu Os desajustados; Sam Shepard fez o roteiro de sua obra Full of Love; John Agee roteirizou “The African Queen”, baseado no romance de C.S. Forestier; James Poe fez o roteiro de “A volta ao mundo em 80 dias”, baseado na obra de Julio Verne; Richard Matheson teve seu romance Em algum lugar do passado adaptado ao cinema por ele mesmo; Michaell Wilson fez o roteiro de “Um lugar ao sol”, baseado no livro Uma tragédia americana, de Theodore Dreiser; dos quadrinhos, Jules Feiffer, escreveu os livros Ânsia de amar e Pequenos assassinatos e roteirizou os respectivos filmes, e Frank Miller, que revolucionou os comics, roteirizou “Batman”; e entre as mulheres,  Eugene Solow adaptou para o cinema a primeira versão de Ratos e homens (1939), de John Steinbeck, e Horton Foote fez a versão de 1992.

A par das diferenças, porém, entre a página e a tela há laços estreitos – em forma de ‘mão e contramão’: a página contém palavras que acionarão os sentidos e se transformam na mente do leitor em imagens; a tela abriga imagens em movimento que serão decodificadas pelo expectador por meio de palavras. Entre a literatura e o cinema, há um parentesco originário, um diálogo que se acentuou sobremaneira após a intermediação dos processos tecnológicos. Optando pela modalidade narrativa, o cinema roubou da literatura parte significativa da tarefa de contar histórias, tornando-se, de início, um fiel substituto do folhetim romântico. A narratividade continua a ser o traço hegemônico da cinematografia, apesar de experimentações mais ousadas (como a Avant-garde francesa da década de 1920,  o surrealismo cinematográfico, ou mais recentemente a Nouvelle vague,também francesa), que buscaram fugir dessa linha e ultrapassar  as limitações formais, “não procurando  ordenar o caos”, ao contrário, o caos tornando-se o princípio da criação – o romancista  Kurt Wonnegut disse certa vez que a sua escrita trazia o caos à ordem: Wonnegut teve adaptado para o cinema, ele mesmo como roteirista,  Slaughterhouse 5 (“Matadouro 5”) e Mother Night (no filme “Vítima do passado”).

O frequente discurso da fidelidade, no processo de adaptação da página para a tela, sustenta o professor Randal Johnson,  “carrega insinuações de um pudor vitoriano e se baseia na crença difundida de que a literatura é superior ao cinema, um preconceito devido ao fato da literatura ser anterior no tempo ao cinema, o que pode levar à ideia de que o livro é historicamente mais nobre e o filme secundário, além do parasitismo que seria a crença na ideia de que o filme adaptado suga e destrói o que é essencial no livro”. A dicotomia, portanto, não existiria, “não sendo uma arte melhor nem pior que a outra”, conclui. Até porque muitas vezes é o filme que ilumina e enriquece a obra literária quando da adaptação, que atinge assim, sentencia o pesquisador norte-americano Robert Stam, autor de A literatura através do cinema: realismo, magia e a arte da adaptação (ed. UFMG, 2008). Para Stam, que viveu muitos anos no Brasil, quem melhor entendeu a estrutura narrativa de Dom Quixote foi Orson Welles ao transpor para a tela a monumental obra de Cervantes e nem o autor Daniel Defoe pressentiu muito menos externou a misoginia colonialista presente em Robinson Crusoé como Jack Gold no filme que dirigiu.

No final – e afinal – talvez  uma conclusão possa ser  refletida na apreciação sobre o cinema formulada pelo excepcional escritor norte-americano Saul Bellow :

Não queremos nos aborrecer com problemas sérios levantados por um livro como Crime e castigo. Questões como: alguém tem o direito de matar? Um homem jovem, de inteligência superior tem o direito de matar duas velhas? E se ele estiver morrendo de fome, se sua família estiver em desgraça e com problemas? E assim por diante. Bem, essas são perguntas sérias. Não vejo esse tipo de questionamento em filmes, pelo menos não com frequência. Talvez até certo ponto. Mas além desse ponto, muito raramente. Portanto, ainda temos necessidade desse tipo de refinamento e desse tipo de inteligência culta que só podem surgir da leitura de certos textos. E se você estiver a fim de se livrar desses textos, existe, possivelmente, algo errado na sua apreciação do todo… Na verdade os números não provam muita coisa (o numeroso público do cinema em relação à literatura). Não é preciso ir aonde os números são maiores. É preciso ir aonde as mentes são treinadas e adaptaram-se a esses trabalhos de literatura altamente refinados. Se aprender a lê-los, nunca mais ficará satisfeito com um filme C. Não sei o que o futuro nos reserva. Talvez a literatura seja ultrapassada e surjam novas e melhores formas de arte em seu lugar. Se isso acontecer, para satisfação geral, e se o mesmo trabalho for realizado por meios diferentes, ninguém fará objeção. Porém, não me parece que os filmes tenham esse efeito sobre as pessoas“.

 

 

 

 

 

 

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Mauro Rosso é autor de São Paulo, a cidade literária (2004), ora em processo de edição atualizada; prepara também as obras “Futebol, a cidade e os intelectuais de São Paulo” e “Machado de Assis na Imprensa Acadêmica, de São Paulo”, que se quer publicada em 2012. E-mail: rosso.mauro@gmail.com




Comentários (1 comentário)

  1. heloisa, Um belo ensaio erudito e irretocável! Bravo!
    29 fevereiro, 2012 as 15:13

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