No galinheiro


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Para ajustar nossa visão ao mundo real, encaixamos na cara os óculos multifocais. Visto ao longe, o modelo de sociedade comparece como a opção possível à obtenção de conforto e segurança oferecidos num só pacote, e assim parece que se logrou a façanha incrível de conciliar a velha e ingênua, precária e duvidosa ordem humanista do mundo com a nova (des)ordem mundial que estabelece a era da pós-verdade no Vale do Silício (misto de silêncio com suplício). A uma distância média, porém, o aparato transforma-se numa prisão de alta segurança, em que pagamos condomínio para termos observados e controlados todos os nossos movimentos. Contudo, se passamos ao terceiro estágio do grau aproximativo, o que vemos é um horripilante galinheiro em que bípedes cegos se movem cacarejando ao vento e bicando-se de quando em quando.

Mas todo sistema tem regras, por mais esdrúxulas ou estapafúrdias que sejam, e o galinheiro pós-humanóide não foge à regra de ter regras. A regra básica dessa organização social, adaptada ao feitio de cada recanto geopolítico planetário, é a seguinte: todo indivíduo tem o direito de cacarejar e de disputar a posse do milho (transgênico) e do lugar onde o grão (sintético) é atirado pela mão invisível do administrador do galinheiro, mas para isso terá que se encaixar num dos micro quadrados que compõem o macro, nomeando em seu cacarejar os demais membros do seu próprio quadrado, num código partilhado em que esteja implícita a conjugação de três sucessivos verbos, em ordem crescente: respeitar, reconhecer e promover. O grau ético máximo de tal conduta é este: eu te promovo, tu me promoves, nós nos promovemos. Admite-se, no entanto, que se permaneça no grau inicial da conjugação, que se limita ao savoir faire de jamais pronunciar o seu cocorocó sem antes – com vênias formais de quem se desculpa da ousadia de ocupar a cena – referir-se aos seus símiles, em frases que, sejam quais sejam, remetem a um único sentido: não me biquem, compadres e comadres, confrades e confreiras, pois se me bicarem perderão um bico que sempre se abrirá em vosso proveito.

A razão desse código é que a cena já não incide sobre a coisa-em-si que é objeto da arte, e o prazer que deriva de percebê-la, mas sim sobre a coisa como mero degrau para instaurar o culto de seu próprio genial cacarejo; daí que o performer, temendo a luz que lhe exponha a vaidade, recorra ao truque consensual, que neutraliza os possíveis adversários. Agindo dessa forma, o bípede cacarejante terá assegurado trânsito livre, portador que será de um salvo-conduto para cacarejar os mais espantosos disparates sem que uma só voz se disponha a corrigi-lo. Assim prolifera a malandragem mais rapidamente que a reprodução dos caramujos, para bem da gandaia e grande mal da poesia e filosofia, as quais doravante não poderão citar Baudelaire, Lacan ou Benjamin sem que logo compareçam em hipertexto os seus galináceos satélites.

O pior desse galinheiro, porém, é que ele, como todas as comunidades sistêmicas, além dos malandrecos, tem os seus delinqüentes, rufiões praticantes do delito, desde o mais primário dos furtos até a mais deslavada velhacaria. Dá-se então a comédia, ou melhor, a ópera-bufa, em que até um galo velho de crista arriada desfila inflando o que lhe resta de peito, proclamando que achou um grão de ouro, na verdade a pepita arrebatada a um visitante inadvertido que adentrara naquele dia o galinheiro.

E aí é a festa. Com as lentes para perto, um cacarejar sem fim de acólitos que seguem o galo gatuno, de galinhas matronas a frangotes e franguinhas cocoricando em decibéis e aos cochichos; a distância média, presidiários que cercam o traficante-mor em demanda de nem que seja uma guimba; e à maior distância, personagens kafkianos orbitando em torno do que supõem ser um castelão com acesso ao enigmático e supremo conde de West-West, plenipotenciário soberano do império em que se fundem o Reino da Fama e o Vale do Silício.

 

 

 

 

 

 

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Luiza Nóbrega é escritora (poeta, ficcionista e ensaísta) e pintora, professora de Artes e Literatura recém-aposentada pela UFRN. Graduada em Direito com medalha do Mérito Universitário. Estudou Artes Plásticas no CPA (Rio de Janeiro), com Ivan Serpa, praticou com Nise da Silveira em seus grupos de estudos e foi discípula de Rolf Gelevski. Mestre em Literatura Brasileira na UnB, Doutora em Letras Vernáculas-Literatura Portuguesa na UFRJ e Universidade Nova de Lisboa e com dois posdocs (o primeiro, sobre Os Lusíadas, nas Universidades de Évora e Nova de Lisboa; o segundo, sobre Lêdo Ivo, na Università degli Studi di Perugia). Especializada na leitura dos discursos poéticos, dedicando-se especificamente a Camões e Lêdo Ivo. Membro de três Centros de investigação: dois em Portugal (Centro de Literatura Portuguesa da Universidade de Coimbra e Instituto de Estudos Portugueses, da Universidade Nova de Lisboa) e um na Itália (Centro di Studi Comparati Italo-Luso-Brasiliani/Universidade de Perugia). Em novembro de 2015 coordenou o evento internacional POESIA SEM FRONTEIRAS: PAUTA E CENA COM LÊDO IVO, realizado na UFRN. E-mail: luiza14@gmail.com

 




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