Música, poesia e outras baladas russas


Música, poesia, rap e uma canção que não me sai da cabeça

 

“Dou aulas de música por comida”. A mesa, de onde tremulava a folha com letras de forma onde estavam escritos estes dizeres, havia sido colocada no fim de uma passarela subterrânea, na confluência de duas entradas, nas imediações do Museu da Rússia, próximo à estação de metrô Parque Gorki. Não saberia descrever a fisionomia do homem que sentado ostentava uma dignidade e fé no seu ofício, não apenas pela postura altiva com que se apresentava ante os transeuntes. Chegou a recusar com veemência quando uma senhora tentou lhe ofertar uma cédula de cem rublos.

Caminhava por ali fazendo hora. Havia comprado ingresso para o Museu instalado no apartamento em que viveu Marina Tsvetáieva (1892-1941). Uma guia nos conduziria pelos cômodos, nos mostraria, por exemplo, onde a mãe da escritora tocava piano. Eis um dado curioso entre os grandes poetas da Era de Prata. Ossip Mandelstam (1891-1938) e Boris Pasternak (1890-1960) tinham algo em comum com Tsvetáieva: amavam a música e tinham mães musicistas. Em épocas diferentes, ambos se enamoraram da poeta, mas esta é outra história.

Embora alguns nomes da música sejam estudados, sobretudo os chamados bardos, a exemplo do magistral Vladimir Vysotsky (1938 -1980), trata-se de um acréscimo, não há nem de longe a ideia que cantores possam substituir os poetas. Desde o primeiro ano, nas escolas, as crianças têm de decorar poemas e se apresentar na sala de aula. Terminei meu mestrado há poucos meses e meu objeto de estudo foi a obra de um poeta russo, Valério Pereliéchin (1913-1992), que morou quase quarenta anos no Brasil. Na defesa, um dos membros da banca examinadora perguntou se eu poderia recitar a minha “estrofe” preferida. Foi indulgente. É muito difícil decorar poemas em outra língua. O russo tem um sistema poético um pouco diferente do nosso. Imaginei que este tipo de pedido poderia ser feito e decorei um poema todo e pude recitá-lo perante a banca.

A defesa se dá de forma coletiva. Depois de mim, minha colega Masha fez sua apresentação. Ela escreveu sobre o grupo de poetas vanguardistas OBERIU, criado por Daniil Kharms e Alexander Vvedensky. “Se vocês quiserem, posso recitar alguns poemas”, ela se prontificou. “Não. Não precisa. Para quê? Um estrangeiro recitar nossa poesia, sim, é motivo de admiração, mas um russo?”.

Uma professora nossa nos contou de sua malfadada experiência de tentar “modernizar” com ensino dos poemas de Aleksandr Pushkin (1799-1837), glória absoluta da literatura russa e orgulho nacional, a ponto de ser chamado amiúde de “O nosso tudo”. Ao apresentar os textos por meio de gravações de rap, as crianças se recusaram a trabalhar pedagogicamente daquela forma. Em tom de lamentação, a educanda não se conformava com a posição dos pequenos de Pushkin não deveria se misturar com um gênero musical, cujas raízes eram alheias à cultura do país.

Muitas das canções que me encantaram vieram do gosto musical de um cineasta, Aleksei Balabanov (1953-2013). É possível dizer que haja alguma semelhança entre seu estilo e o de Quentin Tarantino, embora este tipo de alusão o reduza e muito. Uma vez, em sala de aula, afirmei que ele era meu cineasta favorito e indaguei a razão pela qual ele não era tão conhecido fora daqui. “Ele é russo demais”, arriscou explicar um dos meus colegas, por coincidência, xará do diretor, Aliocha, diminutivo de Aleksei.

Uma das cantoras pop de que mais gosto na Rússia é Zemfira. De raízes tártaras, o que risca seus olhos verdes de beleza, a diva é muito reservada, raramente faz apresentações e mantém um relacionamento com uma das atrizes e diretoras mais inteligentes e belas daqui, Renata Litvinova, cuja figura deslumbrante tive o prazer de ver em cena no palco do teatro de Arte de Moscou, o mesmo onde pisaram Stanislavski e Tchekov.

Tenho para mim que foi para sua amada que ela escreveu a canção “Procurei”, que ficou na minha cabeça por vários dias e cujos trechos traduzo abaixo. Infelizmente, os versos perdem muito da graça e da garra ao serem vertidos para outro idioma que não seja esta língua cheia de cacos de vidro e sons de ferraria.

 

Te procurei por tantos longos anos

procurei por ti na escuridão dos pátios

nas revistas, no cinema, no meio dos amigos,

e no dia em que te achei, o juízo eu perdi

 

Tu és como um sonho

igual como nos álbuns

onde eu te desenhava a guache

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Astier Basílio é poeta e dramaturgo. Autor de mais de uma dezena de livros, entre os quais poesia, conto e teatro. Vencedor do Prêmio Funarte de Dramaturgia, 2014. É mestre em ensino de literatura russa pelo Instituto Estatal Pushkin, de Moscou. E-mail: astierbasilio@gmail.com




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