Monica Youn: costurando imaginários



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Em meio ao super intelectualizado universo da nova poesia americana aparecem vozes que dispensam explicações e guias externos— você abre o primeiro livro de uma poeta como Monica Youn, e está tudo ali: poesia pura, inteligente, sensorial,  uma complexidade que— por tocar acordes reconhecíveis— se faz sincera. “Ignatz” (Four Way Books, 2010, finalista do National Book Award), o primeiro livro de Monica Youn, é esse tipo de poesia, estranha e ao mesmo tempo reconhecível, que te carrega para algum lugar irresistível, nunca antes visitado.

O arco criativo de Ignatz é extraordinário: o livro é inspirado de forma quase aleatória na tira de quadrinhos “Krazy Kat”, de George Herriman, publicada a partir da Primeira Guerra Mundial, em que “Ignatz”, um rato, passa a vida fugindo do amor obsessivo de um gato. Monica Youn desenha um universo em que Ignatz funciona como mera obsessão poética, sonora, experimental, conceitual. Todos os títulos dos poemas contém a palavra-emblema “Ignatz”, significando o que quer que se queira significar –  como “trigger”, “gatilho” para um novo exercício poético.  Ignatz morre algumas vezes ao longo do livro, por exemplo, sob ângulos diferentes. Uma abordagem lírica com toques surrealistas e uma arquitetura impecável ligam todos os poemas, e a sensação é de constante surpresa.

Fascinada por esse universo circular que atira precisão para todos os lados, entrei em contato com Monica Youn e começamos uma conversa, que se estenderá numa entrevista que fiz com ela para a próxima edição da revista americana Rattapallax, e com a possibilidade de traduzir um dos poemas dela para esta coluna na Musa Rara. Monica Youn é a segunda poeta do trio de novas poetas americanas que apresento neste espaço. O poema que escolhi para traduzir apresenta uma relação mais metafísica com Ignatz,  e sua construção, baseada em variações sobre uma mesma matriz, é uma aula sobre FORMA em poesia contemporânea.  Nesta tradução, optei por privilegiar estrutura e cadência sonora, tendo de abrir mão de algumas precisões descritivas, de palavras que não encontram significado ideal na nossa língua. Mas traduzir poesia bem costurada é assim – difícil de disfarçar os remendos.

 

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PAISAGEM COM IGNATZ

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As coxas de couro do cânion escancarando a nodosa coluna azul do céu.

Os calcanhares esporados do cânion cutucando a delgada costela azul do céu.

A boca queimada do cânion mordendo a inchada língua azul do céu.

Os dedos esfolados do cânion enosando o emaranhado cabelo azul do céu.

Os polegares calosos do cânion traçando veias na garganta azul do céu.

As pálpebras seladas do cânion de repente se abrem… o seu olhar suave, cerúleo.

 

Tradução: Flávia Rocha.

 

 

LANDSCAPE WITH IGNATZ

 

The rawhide thighs of the canyon straddling the knobbled blue spine of the sky.

The bone-spurred hells of the canyon prodding the gaunt blue ribs of the sky.

The sunburnt mouth of the canyon biting the swollen blue tongue of the sky.

The hangnailed fingers of the canyon snagging the tangled blue hair of the sky.

The blistered thumbs of the canyon tracing the blue-veined throat of the sky.

The sleep-crusted lids of the canyon blink open… your soft, your cerulean eye.

 

 

“Landscape With Ignatz”, de Ignatz © 2010, de Monica Youn. Republicado com permissão da Four Way Books. Todos os Direitos Reservados.

“Landscape With Ignatz”, from Ignatz © 2010 by Monica Youn. Reprinted by permission of Four Way Books. All rights reserved.

 

 

 

 

 

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Flávia Rocha nasceu em São Paulo em 1974. Jornalista, trabalhou nas redações das revistas Bravo!, República e Carta Capital, e  Casa Vogue, entre outras publicações. É autora dos livros de poemas A Casa Azul ao Meio-dia (Travessa dos Editores, 2005) e Quartos Habitáveis (Confraria do Vento, 2011). Tem mestrado em Criação Literária pela Columbia University e é uma das editoras da revista literária americana Rattapallax. Editou antologias de poesia brasileira para as revistas Rattapallax (EUA), Poetry Wales (País de Gales) e Papertiger (Austrália). Fundou, com Steven Richter, a Academia Internacional de Cinema, onde desenvolveu o curso de Criação Literária coordenado pela escritora Veronica Stigger. E-mail: flavia@aicinema.com.br




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