Ecos do Modernismo em Cabo Verde


Não é por acaso que neste ano de efeméride da Semana de Arte Moderna em São Paulo, um marco incontornável do Modernismo brasileiro, o tema que nos interesse seja a sua influência na formação da literatura em Cabo Verde.

Nosso Modernismo marca um momento no qual a consciência de nossa múltipla identidade, multiétnica e multicultural, a memória de identidades marginalizadas como os indígenas e os afro-brasileiros, a busca de uma ruptura em relação às poéticas e modelos europeus se fez presente como em nenhum outro momento de nossa história literária e artística. Talvez não tenha sido ainda satisfatório, do tamanho da necessidade histórica que urge, mas já foi um começo.

O Modernismo brasileiro ensaiou uma ruptura com o passado e com o comportamento de sujeição eurocêntrica que grassava entre intelectuais, literatos e artistas brasileiros.

Esse sentimento de brasilidade e seu visível empenho para a elaboração de uma literatura nacional com características próprias atravessou o oceano e sedimentou o anseio de construção de uma literatura cabo-verdiana que, a partir da década de 1930, gestou-se em torno da importantíssima revista Claridade: Revista de Artes e Letras (São Vicente, 1936-1960) e a influência do grupo claridoso (também nas gerações posteriores) em seu esforço de construir uma identidade crioula que questionava o panorama colonialista e ditatorial vivenciado em Cabo Verde.

Conta-se que o diplomata, jornalista e escritor brasileiro Ribeiro Couto citou alguns autores modernistas em uma palestra em Portugal por volta de 1930. Uma nota informativa dessa palestra saiu em jornal de Cabo Verde que, por sua vez, foi lida por Jorge Barbosa, um dos articuladores da revista Claridade juntamente com outros dois jovens escritores: Baltazar Lopes e Manuel Lopes.

A partir dessa centelha, a busca e as trocas com a literatura brasileira da época serão intensas e, à maneira proposta por Oswald de Andrade, antropofágica. Deglutirão os poetas modernistas e os prosadores denominados por nós de regionalistas.

No frontispício de seu primeiro número, em março de 1936, a revista Claridade ostentou a bandeira de seu regionalismo trazendo três textos poéticos da tradição oral em língua crioula – “lantuna & 2 motivos de ‘finaçom’ (batuques da ilha de Sant’iago)” e, em seu número seguinte, a morna “Vênus”, de Francisco Xavier da Cruz.

O escritor português Manuel Ferreira (1987) anota, em um de seus textos sobre a literatura caboverdiana,[1] que os três jovens escritores citados acima afirmaram várias vezes que a leitura dos escritores brasileiros modernistas, principalmente os poetas Manuel Bandeira e Jorge de Lima, mas também os prosadores José Lins do Rego, Jorge Amado e Graciliano Ramos, foi fundamental para as transformações gestadas na literatura cabo-verdiana a partir do divisor de águas capitaneada pela revista Claridade.


Da esq. para dir.: Jaime de Figueiredo, António Aurélio Gonçalves, Guilherme Chantre, Manuel Serra, Jorge Barbosa e Baltasar Lopes.

Os autores de Cabo Verde leram a literatura que chegava do Brasil na perspectiva de uma cultura própria, que havia se distanciado de sua matriz europeia e evidenciado todos os seus tons de pele, cores e dicções. O anseio de duas culturas marcadamente mestiças que se encontram e se apaixonam (talvez não muito correspondido pelo Brasil).

Conforme escreve a professora e pesquisadora Simone Caputo Gomes (2008),

Ao assumir a afinidade com o Brasil e sua cultura mestiça e autônoma, os escritores claridosos – em processo de emergência da consciência cultural e nacional, como os irmãos africanos de Angola, Moçambique, São Tomé e Guiné Bissau – evidenciaram a sua determinação em refletir-se em (e por meio de) outros espelhos, mais próximos porque detentores de um itinerário histórico igualmente colonizado.[2]

Em outro artigo, Simone Caputo Gomes (2011) arremata:

(…) leitores dos nossos modernistas e encantados pela independência política e cultural brasileira, os claridosos fundadores (Manuel Lopes, Baltasar Lopes-Osvaldo Alcântara e Jorge Barbosa) tomam para si o mote da Semana de Arte Moderna de vinte e dois: representar a “arlequinal” raça brasileira (no caso, representar o mundo que o mulato cabo-verdiano criou, como ressalta Gabiel Mariano), dar visibilidade às identidades que compõem o mosaico cultural, representar a fala do povo no discurso literário culto, democratizar a literatura e as artes. A construção de uma “identidade nacional” em Cabo Verde afirmava-se assim, nos anos trinta, à luz do espelho brasileiro, numa relação de afastamento e diferenciação do cânone português.[3]

O poema de Manuel Bandeira, “Vou-me embora pra Pasárgada”, retumba no coração de várias obras cabo-verdianas. Motiva, inclusive, a criação de uma vertente literária denominada “pasargadismo”[4] que agrega feições do “evasionismo” e relê o “terralongismo”[5] vigente nas ilhas. As diversas leituras feitas do poema de Bandeira celebram Pasárgada em contextos africanos como uma tradição alheia e ao mesmo tempo de todos os falantes de língua portuguesa.

Um trecho do poema para relembrarmos:

Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada

Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconsequente
Que Joana a Louca de Espanha
Rainha e falsa demente
Vem a ser contraparente
Da nora que nunca tive

(…)

Em Pasárgada tem tudo
É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone automático
Tem alcaloide à vontade
Tem prostitutas bonitas
Para a gente namorar

(…) (BANDEIRA, 2007, p. 146-147)

“Pasárgada” surge como o locus ideal, uma possibilidade de evasão para um ‘mundo ideal’ no qual a realidade e os sofrimentos advindos dela possam ser esquecidos. Tal sentimento se enxaixa perfeitamente com o anseio de expansão física e lírica buscada e celebrada pelos claridosos, que o acolhem pelo tom evasionista que dele emana.

Osvaldo Alcântara, pseudônimo de Baltasar Lopes, por exemplo, inspira-se diretamente no poema de Manuel Bandeira criando o seu “Itinerário de Pasárgada”:

Itinerário de Pasárgada
Saudade fina de Pasárgada…
Em Pasárgada eu saberia
onde é que Deus tinha depositado
o meu destino…
E na altura em que tudo morre…
(…)
Na hora em que tudo morre,
esta saudade fina de Pasárgada
é um veneno gostoso dentro do meu coração.

O desejo de inventar um outro lugar, uma outra terra, manifesta-se explicitamente em “Itinerário de Pasárgada”, assim como o desejo de fugir a situação colonial que estreitava o horizonte e os destinos possíveis para aqueles jovens que repensavam e interrogavam o país.

Por outro lado, os vários poemas inspirados de Osvaldo Alcântara se configuram mais políticos e sociais do que o de Bandeira, embora ele e outros claridosos tenham sido acusados de querer fugir dos problemas do arquipélago.

Novamente recorremos a Simone Caputo Gomes (2016) que diz:

A imagem de Pasárgada fecunda seus textos, não mais motivada pela doença, como nos poemas do brasileiro, mas pela pobreza do arquipélago. A nova Pasárgada não se resume a um espaço único, mas propõe-se, por meio da evasão, sempre como transposição de limites: “Eu vou-me embora, / não vou mais ficar / avassalado pela Astral Inferior” (Rapsódia da ponta da praia. Claridade, n. 5, p.13.)[6]

Ou, talvez, a um espaço já perdido, e não um lugar a conquistar como em Bandeira, pois Alcântara fala de uma “saudade fina de Pasárgada”. No entanto, a evasão proposta será rechaçada pelas gerações seguintes que trará a tona o sentimento de anti-evasão e, com o mote “Não vou mais para Pasárgada”, proporão a permanência em Cabo Verde como resistência e forma de ação.

O próprio autor modernista Mário de Andrade comenta sobre a temática da evasão em um de seus textos:

Os escritores do movimento Claridae, condicionados pela sua formação ideológica, adotaram um ângulo de visão de “classe” para abarcar o universo insular. Não se atacaram ao fundamento dos dramas da terra (a seca, a fome e a emigração) e muito menos perspectivaram a superação das atitudes resignadamento contemplativas. A sua poesia, dominada pelo tema da evasão, afastou-se do inquérito aos sentimentos populares. Como produto esteticamente acabado do elitismo, ela passou ao lado do clamor das massas das ilhas. (ANDRADE, Prefácio, 1980, p. 5)

Deve-se ressaltar que a importância do modernismo brasileiro no processo de formação da literatura cabo-verdiana não deve ser vista como um processo de descaracterização da originalidade da literatura produzida no arquipélago. A presença da literatura modernista brasileira aliou-se a outros fatores que fortaleceram as reflexões e ampararam as temáticas desenvolvidas pelos autores claridosos. Por exemplo, podemos citar a presença de autores portugueses que viveram em Cabo Verde e a influência da revista portuguesa Presença (publicada em Coimbra, 1927) que também prezava por uma literatura mais pujante, oposta ao academicismo e por um jornalismo mais crítico.

 

 

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[1] FERREIRA, Manuel. O texto brasileiro na literatura caboverdiana. In: Literaturas Africanas de Língua Portuguesa. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1987, p. 81-104.

[2] GOMES, Simone Caputo. Cabo Verde e Brasil: um amor pleno e correspondido. In: ______. Cabo Verde: literatura em chão de cultura. Cotia, SP: Ateliê Editorial; Praia, CV: Instituto da Biblioteca Nacional do Livro, 2008. p. 111-124.

[3] GOMES, Simone Caputo. Cabo Verde e as pérolas do Atlântico: literatura como meio de resgate e preservação do patrimônio cultural. In: Revista Estudos Linguísticos. Disponível em: < https://revistas.gel.org.br/estudos-linguisticos/article/view/1307/853>. Acesso em: 15 jun 2022.

[4] No “pasargadismo”, além do diálogo com o poema de Manuel Bandeira, encontra-se a presença do mito Hesperitano e a insularidade que marcam um período de afirmação duma identidade literária, que emergiu nos anos 30 do século 20, e que mais tarde desembocará no movimento da caboverneidade.

[5] O conceito do “terralongismo” presente no sentimento do cabo-verdiano e expresso na literatura representa o sentimento de que o cabo-verdiano é um ilhéu distanciado do mundo pelo mar.

[6] GOMES, Simone Caputo. Rostos, gestos, falas, olhares de mulher: o texto literário de autoria feminina em Cabo Verde. In: Chaves, Rita e Macedo, Tânia. (Orgs.) Marcas da diferença: as literaturas africanas de língua portuguesa. São Paulo, Alameda, 2006.

 

 

 

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Bibliografia

ANDRADE, Mario de. Antologia temática de poesia africana v. 1 – Na noite grávida de punhais. 3. Ed. Lisboa: Sá da Costa, 1980.

BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2007.

FERREIRA, Manuel. Aventura Crioula. Lisboa: Plátano, 1985.

________________. Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa. São Paulo: Ática, 1987.

GOMES, Simone Caputo. Rostos, gestos, falas, olhares de mulher: o texto literário de autoria feminina em Cabo Verde. In: Chaves, Rita e Macedo, Tânia. (Orgs.) Marcas da diferença: as literaturas africanas de língua portuguesa. São Paulo, Alameda, 2006.

____________________. Cabo Verde e Brasil: um amor pleno e correspondido. In: ______. Cabo Verde: literatura em chão de cultura. Cotia, SP: Ateliê Editorial; Praia, CV: Instituto da Biblioteca Nacional do Livro, 2008. p. 111-124.

 

 

 

 

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Edson Cruz (Ilhéus, BA) é poeta e editor do site Musa Rara (www.musarara.com.br). Fundou e editou o histórico site de literatura, Cronópios. Estudou Música, Psicologia e, ainda estuda, Letras (USP). Seus textos críticos aparecem no Jornal Rascunho e no site Musa Rara. Lançou em 2020, Pandemônio (poemas) pela Kotter Editorial e, em 2021, Fibonacci blues – uma novela fractal, pela mesma editora. Apresenta todos os sábados o programa CONFRARIA DA PALAVRA na Kotter TV. E-mail: sonartes@gmail.com




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