‘Minha pátria é a língua portuguesa’


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Encontra-se em discussão este mês, no âmbito do Ministério da Educação e Cultura, a eliminação da obrigatoriedade do estudo da literatura portuguesa na nova Base Nacional Curricular Comum (BNCC). A medida, caso aprovada, será posta em prática em junho.

Não sou da área pedagógica e não tenho as informações necessárias para avaliar o que levou nossos administradores a propor tal caminho.

Como cidadão e escritor, acredito na força da literatura, no sentido amplo, como instrumento de formação de indivíduos plenamente capazes para o exercício da vida em sociedade. Somos movidos por ideias, memória, afetos, razão, que dependem fundamentalmente da palavra para serem expressos e bem expressos.

Deste modo, acredito que o ensino da literatura universal, desde os primórdios da alfabetização por meio da literatura infanto-juvenil, seja fundamental na formação do leitor. Dado que vivemos no Brasil, entendo que a aproximação com a literatura possa iniciar-se via de regra por obras de autores nacionais, mas sem se restringir a eles. Seduz-me além disso a ideia de que a leitura deva partir de textos contemporâneos, aos quais aparentemente seríamos mais sensíveis, e, com o tempo, retroagir a autores clássicos, como uma forma de compreensão do sistema literário. Narrativas ameríndias também deveriam compor nosso paideuma.

Não foi assim no meu tempo, quando a escola pública ainda era tida como de bom nível (fim dos anos 1960 e início dos anos 1970). Aprendíamos primeiramente autores portugueses modernos (Camões e Gil Vicente, sobretudo) e, a seguir, literatura romântica brasileira (José de Alencar – O Guarani, Lucíola, Senhora –, Visconde de Taunay – Inocência –, Machado  de Assis – A mão e a luva, Helena, Iaiá Garcia –, Joaquim Manuel de Macedo – A moreninha). Alguns autores de língua não portuguesa, como o escritor francês Alexandre Dumas – O conde de Monte Cristo e O homem com a máscara de ferro (O Visconde de Bragelonne) – eram dados no Ensino Fundamental 2 (antigo Ginásio). Raramente fomos muito além disso. A exceção foi a leitura de Vidas secas, de Graciliano, por conta e risco da professora do último ano do Ensino Médio (antigo Colegial).

Amigos meus que frequentavam a escola privada, no ensino médio, liam Dürrenmatt, Dostoiévski, Eça de Queiroz, o Machado de Assis realista – Dom Casmurro, Memórias póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba –, Aluísio de Azevedo, Graciliano Ramos, Fernando Pessoa, Guimarães Rosa. Num esforço autodidata, eu tentava correr atrás…

Como fazemos parte de uma comunidade de quase trezentos milhões de falantes da língua portuguesa, envolvendo dez países – Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné Equatorial, Guiné-Bissau, Macau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe, Timor-Leste – penso que jamais deveríamos sequer imaginar a possibilidade de desfalcar o currículo escolar dessas literaturas, embora entenda que, para fins práticos, seja necessário formular manuais de orientação pedagógica com algumas escolhas.

Com Fernando Pessoa, por meio de seu heterônimo Bernardo Soares, digo: “Minha pátria é a língua portuguesa”. Sugiro, aliás, reouvir esse belo texto, “Gosto de dizer”, que fala da importância da literatura, lido por Yuri Vieira:

 

 

 

 

 

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Ruy Proença, 1957, São Paulo. Autor dos livros de poesia A lua investirá com seus chifres (Giordano, 1996), Como um dia come o outro (Nankin, 1999), Visão do térreo (Editora 34, 2007) e Caçambas (Editora 34, 2015). Traduziu Boris Vian: poemas e canções, coletânea da qual foi também organizador (Nankin, 2001), Histórias verídicas, de Paol Keineg (Dobra, 2014) e Dahut, de Paol Keineg (Espectro Editorial, 2015).

 




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