MINHA LÍNGUA


………………….MINHA PÁTRIA É MINHA LÍNGUA


Consta que assessores do Ministério da Educação programam excluir da Base Nacional Comum Curricular dos Cursos Fundamental e Segundo Grau a obrigatoriedade do ensino da Literatura Portuguesa.

Essa exclusão cultural (irmã gêmea da maldita exclusão social ainda existente no país) não pode acontecer, precisa ser vigorosamente contestada e rejeitada através de manifestações públicas dos nossos escritores, professores, estudantes e por suas instituições.

A literatura oral e escrita em nosso idioma é um corpo único, tem história secular a favor da inteligência de todos os países da comunidade lusófona.

Com abençoada satisfação trago sempre na memória o período em que aprimorei, no ginásio de minha cidade no interior do estado do Espírito Santo, os meus conhecimentos de língua e literaturas Portuguesa e Brasileira. Há mais de cinqüenta anos!

Tínhamos uma professora genial, culta, animadíssima.
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Seus ousados e sedutores métodos pedagógicos em sala de aula nos levaram com feliz habilidade a amar nosso idioma, conhecer com bom gosto seus escritores e seus textos, gostar de ler e escrever.
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Estou plenamente consciente de que minha acentuada afeição por poesia, narrativa e dramaturgia em Português – pelo belo uso das palavras e da organização estrutural dos textos – deve muito à eficiência dessa mestra ao longo dos quatro anos de meu curso ginasial. Fator que contribuiu para o desenvolvimento do escritor que sou.

Entendia a professora que Português se aprende lendo e escrevendo, fontes práticas para o conhecimento da lógica do idioma. Jamais nos induziu a decorar regras gramaticais.

Para ela esse saber seria alcançado através da convivência criadora com as obras literárias dos escritores de Portugal e do Brasil. Ciente disto a mestra nos encaminhava à leitura de autores dos dois países para com eles aprendermos a escrever com segurança e devido estilo. (A Literatura Africana em Português infelizmente ainda não chegara ao Brasil. Hoje é extremamente bem-vinda.).

Confiante em seus propósitos associava a Literatura de Portugal à do Brasil, cúmplice da mais justa certeza de Fernando Pessoa que a todo instante ela proclamava entusiasmada: “A minha Pátria é a Língua Portuguesa.” (Sábia consideração do poeta que tempos mais tarde inspirou Caetano Veloso a compor “Língua”, uma de suas mais belas canções, oportuníssima para uso em sala de aula pelos professores de nosso idioma.)

Com divertida teatralização a professora lia para nós e reproduzia na lousa trechos das mais variadas peças poéticas ou narrativas dos diversos escritores dessa nossa mais vasta Pátria que é o Português.
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Igualmente nos fazia ler e reler esses textos durante as aulas, ora em leituras individuais, ora em jogral improvisado por grupo de alunos e alunas, sempre em voz alta, também com a evidente intenção de quebrar nossa timidez de jovens diante das palavras e dos textos de nosso idioma, a favor de seu uso expressivo cotidiano.

Sem temer palavrões ou gírias, o dito Português “errado” costumeiramente condenado pelas idiossincrasias da língua “culta”, ia adiante e não desmerecia quem os pronunciasse ou escrevesse. Assim nos libertava de preconceitos linguísticos. Com sutis e alegres sugestões, crescente naturalidade, quando preciso promovia acertos suficientes para o mais próprio e melhor uso criador de nosso idioma.

No instante devido evidenciava para nós, no que líamos ou escrevíamos, a presença de um advérbio, de uma conjunção, de um objeto direto, predicado ou predicativo. Definia e esclarecia o significado de cada uma dessas classificações gramaticais.

O que era o tempo ou uma comparação, o que significava ligar uma palavra ou uma frase a outra de modo aditivo, coordenado ou subordinado, o que era um objeto e por que às vezes esse objeto na frase era direto ou indireto, por que determinado conectivo tinha presença em “pré-posição” e o que significava ser um conectivo.
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Está tudo nos textos! Basta saber encontrar, compreender o que significam! Não precisa decorar! – repetia com insistência convincente.

Para esse feliz encontro com as palavras e os feitios da linguagem verbal também usava exemplos de canções populares, dos provérbios mais comuns, de trechos publicados nos jornais, das piadas e jargões do dia a dia. Nos incentivava a fazer paródias, plagiar poemas e letras de música. Suas aulas eram uma festa de movimentada afeição pelo idioma Português.

Ela sempre nos surpreendia. Recordo sem esquecer quando, no segundo ano ginasial (hoje, sexta série), certa ocasião essa professora entrou em sala, fez a chamada e em seguida escreveu na lousa:

“Comigo me desavim,
sou posto em todo perigo:
não posso viver comigo
nem posso fugir de mim”

Claro que estranhamos curiosos, estranhamento dimensionado pelo comentário dela:

Tem vez que a gente quer ser outra pessoa e entramos em desavença com o que somos. Quem na sala nunca se sentiu assim? – perguntou em tom enigmático. – Hoje, estou desse jeito! Não posso viver comigo nem posso fugir de mim! – completou, insinuando mistério.

Foi um reboliço entre nós, seus alunos, com as mais variadas fantasias presentes na imaginação de cada um, o que não menos nos sossegou quando a professora pediu que naquele dia escrevêssemos destemidas cartas – “evidente com toda a liberdade, inclusive de inventar” – confessando as desavenças que trazíamos nas nossas identidades.

Assim fizemos, uns ressabiados e outros animados com a encomenda da mestra que não recolheu nossas cartas. Apenas pediu que as guardássemos conosco, sugerindo que desde aí também passássemos a escrever um diário secreto contando o que de mais íntimo sentíamos de nossas vidas. Uns seguiram o conselho. Outros, não.

Escrever essa carta foi um precioso exercício. Tenho a carta comigo, estimada relíquia de minha formação emocional.

Antes de encerrar a aula avisou que a estrofe escrita na lousa era de autoria de um poeta português chamado Sá de Miranda, de quem contou passagens da vida, da época em que viveu, sua importância nas letras lusitanas.
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– Uma boa pessoa, não duvidem! Por sinal, ancestral do Doutor Geraldo Miranda, esse médico daqui de Mimoso que todos conhecem – revelou, com a tranquilidade de quem diz a mais sacrossanta verdade.

A surpresa nos trouxe crenças e descrenças, ambas acentuadas quando a mestra selecionou três alunos e três alunas para que entrevistassem o médico a respeito desse seu famoso parente de tão longa data e de sua importante árvore genealógica. Foi um entrevista inesquecível.

Solícito, Doutor Geraldo contou detalhes da vida de Sá de Miranda, mostrou outros poemas do escritor, algumas de suas famosas “Cartas”, trechos de suas sátiras, falou de seus filhos e netos, dos demais descendentes do escritor, de toda a árvore genealógica de sua família até chegar a ele em Mimoso do Sul, no Posto de Saúde da cidade.
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Em aula posterior nos inteiramos das revelações do médico.Sá de Miranda fez-se íntimo de todos nós.

Assim também passamos a conhecer com maior curiosidade certo recorte da história de Portugal, desde a proximidade do poeta com Dom Manuel I, o Venturoso, o rei lusitano que encaminhou Cabral às praias de Porto Seguro. Fartos conhecimentos.

(Tempos depois, já cursando o segundo grau em Campos, no Estado do Rio, papai me esclareceu que a bem da verdade Doutor Geraldo fora cúmplice da professora na farsa do parentesco. Que o Miranda dele não era lusitano, sendo de origem espanhola. Fora porém uma farsa por boa causa. Não discordei. Hoje, quando lembro dessa história com colegas de ginásio, rimos a valer, sem jamais nos esquecermos de Sá de Miranda, bem mais se nos percebemos com alguma desavença íntima.)

Encerrada a bem sucedida apresentação da entrevista com o médico, a professora, no decorrer de outras duas aulas dedicadas ao poeta e à sua obra, destacou nos textos de Sá de Miranda as diferenças existentes entre o Português de sua época e a situação do idioma em nosso tempo. Ressaltou que todo idioma é vivo, tem história em progresso, palavras novas nascendo, outras morrendo, modos de expressão e construção diversificados.

Acrescentou que toda comunidade regional ou social tinha o seu Português, idioma único e assim multiplicado, o que é fundamental para sabermos falar e escrever com liberdade e sem preconceitos. Voltou a Sá de Miranda e à entrevista de Doutor Geraldo:

– São armas e barões assinalados, bem diz o poeta! – pontuou e nos encarou à espera de alguma reação.

Moleque tagarela e exibido fui eu quem reagiu:

– Professora, essa história de armas e barões assinalados não é de Sá de Miranda! É de Camões! – já conhecia um tanto de “Os Lusíadas” e abusei caindo na armadilha da mestra.
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Ela retrucou satisfeita:
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– Pois é! Luis Vaz de Camões! Veio mais tarde e muito aprendeu com Sá de Miranda, que nem vocês! Vamos conhecê-lo melhor nas próximas aulas. Aguardem e guardem o nome dele na memória, pesquisem em casa quem foi esse sujeito, quais são os seus predicados, qualidades e objetos diretos de sua vida impressionante – ao concluir escreveu na lousa em letra de forma com bom tamanho LUIS VAZ DE CAMÕES.

Nos deixou intrigados.

Na aula seguinte, leu sonetos de Camões para nós, contou histórias de sua biografia, do Portugal de então, de Dom Sebastião e do trono português passando às mãos de Espanha, enfim chegou a “Os Lusíadas”.

Explicou o que era o poema, nos mostrou os mais empolgantes trechos do épico, teceu apaixonadas e assanhadas referências à Ilha dos Amores, cantos da epopeia em que os marinheiros lusitanos se esbaldaram nos braços das ninfas de Vênus.

Enfim, ambiciosa, propôs seu desafio:
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– Se os lusitanos têm “Os Lusíadas”, que tal, em Mimoso do Sul, termos o nosso “Mimosíadas” ? Topam?

Foi uma gargalhada geral na sala de aula, o que não nos afastou do desafio.

Num primeiro passo, orientados pela mestra, pesquisamos a história da cidade em documentos e com as famílias de Mimoso, município capixaba dedicado à cultura do café e à criação de gado leiteiro, com significativo contingente populacional de origem imigrante.
Uma descoberta sem fim para nós.

Isto feito, principiamos a parodiar o poema camoniano, enquanto era lido por nós, decifrado pela professora. Lembro bem de trechos da paródia.
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Vamos lá, exemplificar:

“Sem armas ou barões assinalados,
Neste cantão da terra capixaba,
Gente simples, povo de outros povos,
Mais do que prometia a própria força humana,
Com trabalho duro e sem vara de fada,
Mostra cafezais e gado bem tratados.”

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Não chegamos a escrever todo o nosso sonhado Mimosíadas, mas nos aproximamos bastante de Camões, de sua obra, seu modo de escrever, seu tempo histórico.
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Parodiamos também alguns de seus sonetos, alargamos nossos horizontes e aprimoramos o gosto por ler, por nossa escrita, nossa fala, nossa vida, desafiadora identidade de adolescentes em formação.

No semestre seguinte fomos a Gil Vicente com encantamentos similares, leituras em voz alta, paródias de seus autos sacros e profanos, criativas sugestões da mestra a respeito da vida do escritor.

Montamos uma apresentação teatral divertida com trechos do Auto da Barca do Inferno, ora levando à sério o texto, ora brincando e satirizando suas passagens, com passagens pelo Auto da Barca do Purgatório, sem nos esquecermos das promessas de um inventado e gostoso Paraíso com plena liberdade, espetáculo que apresentamos ao ar livre num tablado defronte à igrejinha ao lado do ginásio.

Foi bom! Muito bom! Uma festa!
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Uma bela festa com a Literatura de Portugal:

“À barca, à barca, mortais,
Barca bem guarnecida,
À barca, à barca da vida!”

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Barca da vida de Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial, Macau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe, Timor Leste, mais outras tantas regiões associadas…
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…barca que é a nossa mais vasta Pátria, o idioma Português entrelaçado na Comunidade Lusófona a que pertencemos precisamente irmanados com múltipla e expressiva grandeza cultural.

Fraterno abraço,

 

 

 

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[Texto publicado inicialmente no blogue: http://josearrabal.blogspot.com.br]

 

 

 

 

 

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José Arrabal é professor universitário, jornalista, e escritor, autor de contos, novelas e romances. Lecionou por muitos anos na PUC de São Paulo, na Universidade Metodista, UNIP e FAAP, em áreas de Letras e Comunicação Social. Jornalista, trabalhou em revistas, jornais e agências de notícias do Rio de Janeiro e de São Paulo, onde exerceu atividades de redator, articulista e editor de Assuntos Internacionais, Crítico de Literatura e de Teatro, editor de Cultura e correspondente estrangeiro em países da América Latina. Traduziu obras literárias, coordenou coleções, analisou e preparou originais para muitas empresas editoriais paulistas. É autor de livros de ficção para crianças, jovens e adultos, assim como de ensaios, biografias, peças de teatro, poemas e roteiros para cd-rom. Tem cerca de 50 títulos publicados por editoras nacionais e estrangeiras. E-mail: josearrabal@uol.com.br

 




Comentários (1 comentário)

  1. Eliana Bueno Ribeiro Vianna Santos, Delicioso texto, como todos os de José Arrabal. Quanto à reforma curricular proposta, no entanto, discordo do autor . A escola hoje dirige-se a umnumero de cidadaos imensalmente superior ao que frequentava a escola de 50 anos atras. E esses alunos vêm de horizontes culturais muito diferentes daqueles que norteavam a classe média intelectualizada de ha meio século e que constiryia a clientela privilegiada da escola. Hoje o desafuio do professor é fazer com que seus alunos dominem a norma culta e um corpus literario basico que permita a integraçao cultural nacional. Assim, penso que é preciso reduzir o conteudo obrigatorio para que se possa verticalizar o ensinamento. Se os alunos conhecerem de Anchieta a Adriano Espinola ja estara de muito bom tamanho. A literatura brasileira tem raizes portuguesas e francesas e inglesas e alemaes ( A cançao do exilio) , qualquer literatura é sempre traduçao, empréstimo, influência, contagio, ruptura, invençao e é uma falacia dizer que nao se pode ensinar a literatura brasileira sem a portuguesa. Deve-se sim, apresentar a literatura estrangeira aos alunos porque o ensino de literatura , mesmo da literatura nacional é sempre ensino de literatura comparada. Mas sem a obrigatoriedade da sistematizaçao.
    21 abril, 2016 as 15:50

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