Memória do teatro paulista


A Crítica de João Apolinário memória do teatro paulista de 1964 a 1971 é documento importante


Foto: Arquivo pessoal

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A Crítica de João Apolinário – memória do teatro paulista de 1964 a 1971, volume I e II, editada pela  Imagens Conteúdo & Forma, com o patrocínio do Programa  Petrobras Cultural, organizado por Maria Luiza Teixeira Vasconcelos, pesquisadora, professora de história e viúva do crítico e mais uma equipe de especialistas em tratamento de imagens, editoração e design gráfico, foi lançado em São Paulo no dia 15 de maio de 2013, no teatro do TUCA.

O livro em dois volumes reúne 332 críticas de João Apolinário, feitas entre 1964 e 1971, no jornal Última Hora de São Paulo, tem 1200 páginas e 329 imagens, mais um apêndice que reúne os principais artigos e críticas de 1972 a 1974: na verdade balanços das temporadas do teatro paulista desses anos. É um precioso material de pesquisa para diretores, atores e estudiosos do teatro brasileiro, além de um projeto gráfico de primeira qualidade realizado por uma equipe afinada.  A Imagens, dirigida por Isis de Palma também foi a proponente do projeto junto ao MinC e a Petrobras.

Esclareça-se que o livro contém apenas parte da produção intelectual de Apolinário, que escreveu mais de 500 críticas e deixou cerca de 1200 fotos e 250 programas de espetáculos. Mas os pesquisadores vão poder ter acesso a este material já que o acervo foi doado pela Maria Luiza Vasconcelos ao Arquivo Edgard Leuenroth (AEL), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “Os textos que ele escreveu”, diz a Lucilene Reginaldo diretora adjunta do AEL, “nos permitem ter uma ideia do cenário político e cultural daquele período. Impressiona a profundidade e a qualidade da crítica que ele escrevia.” Segundo Lucilene o acervo deve abrir novos campos e cenários de investigação sobre a história política e cultural brasileira. Além disso vai complementar o cruzamento de dados com outros acervos do AEL, como os do Teatro Oficina e de Vanda Lacerda, fontes importantes para a pesquisa da história social e política do teatro brasileiro.
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Intelectual engajado crítico contundente

Jurista, poeta e jornalista João Apolinário veio exilado para o Brasil em dezembro de 1963. Nasceu no dia 18 de janeiro de 1924 em Belas, Sintra e tinha apenas dois anos de idade quando Portugal começou a viver um longo período (48 anos) de austeridade social, política, econômica e cultural. Frequentou as Universidades de Coimbra e de Lisboa onde se graduou, aos 21 anos em Direito. Foi correspondente de guerra tendo participado, como tenente do exército francês, em 1945, do primeiro contingente de jornalistas que viu na sua extensão real, física e humana, a devastação causada na Europa pelas forças em conflito na Segunda Guerra Mundial e os horrores dos campos de concentração, o que marcou sua trajetória.  De volta a Portugal em 1949, se opôs ao salazarismo e a todas as formas de opressão.  Depois de 12 anos de exílio no Brasil voltou a Portugal e, no início de 1975, viveu a liberdade que a Revolução de 25 de Abril de 1974 permitiu.

Até outubro de 1988, com 64 anos, em Marvão onde vivia com sua mulher, Maria Luiza Teixeira Vasconcelos, João Apolinário preocupou-se muito com sua poesia produzida nos últimos catorze anos de vida: Apátridas, AmorfazerAmor, Poemas Cívicos, O Poeta Descalço, Eco Humus Homem Lógico e deixou inéditos os Sonetos Populares Incompletos. João Apolinário morreu em 22 de outubro de 1988 sendo que do seu primeiro casamento tem dois filhos: o músico João Ricardo, criador do grupo Secos & Molhados, e Maria Gabriela professora da PUC São Paulo.

Muito organizado, Apolinário tinha um arquivo de todas as suas críticas, fotos de muitos dos espetáculos, mais os programas das peças. Para realizar este projeto, ou seja, preencher as lacunas de dados, Maria Luiza pesquisou largamente nos arquivos da Folha de São Paulo e no Arquivo Público do Estado de São Paulo onde está a coleção do jornal Ultima Hora. Assim todo o material que foi reunido ao longo dos últimos cinco anos compreende: recortes de jornais e fotos da coleção pessoal do crítico mais as fotos cedidas gentilmente pela Folha de São Paulo e Arquivo Público do Estado de São Paulo. Além do resgate da obra do jornalista, projeto não realizado por ele, Maria Luiza recuperou imagens da época organizadas de forma cronológica em ambos os volumes, vinculadas a cada texto das críticas de forma a ser possível ler e construir na mente as principais cenas do teatro paulista naqueles anos citados: 1964 a 1971, em que corria plena a ditadura militar.
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Exilado da ditadura de Salazar em Portugal, Apolinário acaba enfrentando outra no Brasil. Assim é que os sete anos abordados pela obra coincidem com duro período da repressão a artistas, fruto da ditadura militar que grassou no Brasil durante trinta anos, com um saldo lamentável de mortes e torturas e, no teatro, com peças censuradas e atores agredidos. Sempre com um viés crítico ao capitalismo, o jornalista ficou marcado por textos contundentes e corajosos em um cenário em que a cultura brasileira efervescia e militares levavam inimigos para os escuros porões. Sem papas na língua e dono de uma cultura vasta, Apolinário era contundente em suas críticas e não hesitava em detonar um espetáculo quando o considerava carente das qualidades básicas para ser considerado teatro. Mas sua crítica era sempre embasada em sólidos conhecimentos de técnicas teatrais e, por isso, ele era temido e respeitado. Para dar uma prévia do livro vou citar trechos dos prefácios assinados por Cesar Vieira, nome artístico de Idibal Pivetta, advogado de presos políticos, fundador e diretor do Teatro Popular e União e Olho Vivo, Regina Helena Paiva Ramos, jornalista, crítica de teatro e autora de vários livros, Oswaldo Mendes, jornalista, ator e dramaturgo e escritor, além de um artigo da organizadora Maria Luiza Vasconcelos. Estes escritos podem dar uma idéia mais precisa do caráter e da postura crítica do João Apolinário.

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Realidade teatral no contexto da globalidade

Cesar Vieira assina um prefácio intitulado João Apolinário, precursor e profeta, onde afirma logo de inicio: “Apolinário é, sem dúvida, o responsável pelo surgimento, no Brasil, de uma crítica que analisa a realidade teatral dentro do contexto amplo da globalidade. O texto e o espetáculo mantidos dentro dos acontecimentos do dia a dia. Não sendo os seus praticantes estrelas ou semideuses a pairar num Olimpo de privilegiados. Foram seus artigos, crônicas e críticas que fizeram com que os artífices do que fazer teatral mantivessem os pés no chão e mostrassem, nas suas obras, que o teatro verdadeiro mostra o homem comum nas suas dores e alegrias, e não figuras ou produtos inatingíveis e incompreensíveis. ”

“A publicação das mais de trezentas críticas de João Apolinário, abrangendo longo período é um milagre dentro do campo editorial. Um milagre que, como o da multiplicação dos pães, frutificou e frutificará mais ainda com amor, dor e beleza. Com a sua verve, ironia, poesia e visão, Apolinário transformava reuniões convocadas para apenas discutir assuntos meramente acadêmicos em autênticos debates sociais e ideológicos. Suas colocações calavam fundo e marcaram gerações.”

Cesar Vieira termina dizendo que o Teatro Popular União e Olho Vivo, com 47 anos de resistência, ativo até hoje, recebeu, nos seus primeiros passos, ensinamentos do crítico, que servem para a arte e para a vida. Para ilustrar cita trecho de crítica de João Apolinário em Ultima Hora, 1973, analisando o espetáculo Rei Momo do grupo. “E a função do Rei Momo se realiza com a simplicidade e a graça dos grandes acontecimentos, que só são grandes quando deles participa ativamente o povão, e esse milagre, o Teatro Popular União e Olho Vivo conseguiu. ”

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Veículo de comunicação de ideias

No seu prefácio O crítico João a jornalista e escritora Regina Helena Paiva Ramos, autora dos livros de contos Isso é Definitivo, As Duas Noras, Mata Atlântica, vinte razões para amá-la e Mulheres Jornalistas, a Grande Invasão, vai dizer que “além de poeta, jornalista e crítico teatral Apolinário, era também um animal político que enxergava as coisas de longe e previa como elas aconteceriam. Meio bruxo? Talvez. Mas com toda a certeza, um bruxo que gostava de teatro. E que o via como veículo de comunicação de ideias, como alimento cultural importante e como transformador das gentes. Já naquela época reclamava que as subvenções governamentais eram esmolas e se vivesse hoje arrancaria os cabelos ao ver a situação de indigência não apenas do teatro, mas da cultura brasileira. Ele que insistia tanto que teatro – bom teatro – deve ser para todos, se indignaria ao ver os grandes empresários de teatro, de cinema, de áudio visual recebendo polpudas quantias enquanto o teatro popular, o teatro que sabe dizer coisas, difundir ideias, mostrar os problemas, tem ficado a ver navios.”

Ressalta que em geral suas críticas aos espetáculos eram precedidas de conceitos. “O que era teatro popular, como o teatro popular devia ser tratado, o que o Estado deveria fazer pela cultura. Nessas ‘ introduções’ ele dava sua opinião, sempre, admoestando os que não faziam teatro a sério – não teatro sério, mas teatro feito a sério! – aplaudia as boas intenções e tendências seguidas por determinados grupos, elogiava as companhias que visavam levar teatro ao povo e os que perseguiam o ideal da formação de novas plateias. Além de muito bem escritas, bem fundamentadas, não raras vezes Apolinário colocava aqui e ali alguns traços de humor e de ironia nem sempre sutil.”
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Teatro repercutia inquietações coletivas

No seu Rascunhos da memória Oswaldo Mendes, jornalista, ator e dramaturgo, autor de Bendito maldito – Uma biografia de Plínio Marcos (Ed. Leya), prêmio Jabuti 2009, e Ademar Guerra, o teatro de um homem só (Ed. Senac)  coloca para o leitor o contexto da situação do teatro brasileiro quando o jornalista e poeta português chega ao Brasil e assume o cargo de crítico de teatro além de editor de Variedades no Jornal a Ultima Hora em São Paulo já que fora colega de trabalho neste jornal e de certa forma  seu discípulo.

“Em dezembro de 1963, o poeta João Apolinário Teixeira Pinto chegava a São Paulo e logo, em 31 de março de 1964, rompeu-se a ordem institucional e foram suprimidas as liberdades públicas no país. Empregou-se na Última Hora, que ao nascer na década anterior apresentava-se como “um jornal vibrante, uma arma do povo”, com fortes vínculos com a classe operária e movimentos da esquerda nacionalista. Com o golpe militar, o seu fundador Samuel Wainer partiu para o exílio e o jornal foi vendido ao grupo Folhas. Na Última Hora Apolinário assumiu a crítica de teatro e, em seguida, tornou-se editor de Variedades, abriu espaço para surgir o cronista Plínio Marcos e me deu emprego. No jornal ele cumpriu todo o período de exílio até retornar a Portugal em 1975, depois da Revolução dos Cravos. E se destino houver, ele reservou ao poeta participar da fase mais renovadora do teatro brasileiro, em especial o que se produzia em São Paulo, onde se concentravam propostas ousadas de pesquisa estética e debate apaixonado das questões nacionais. Foi o período de maior intervenção do teatro na sociedade, repercutindo no palco as inquietações coletivas.”

“Herdeiro da profissionalização iniciada na década anterior com o TBC – Teatro Brasileiro de Comédia e a vinda dos diretores italianos, que estimulou a formação de companhias e a criação dos teatros de Arena, por José Renato Pécora, e do Oficina, o teatro em São Paulo se estabelecia enfim como uma presença consequente, e de fato, na vida cultural e política. Liderado por uma brilhante geração de diretores – entre eles, Antunes Filho, Ademar Guerra, José Celso, Osmar Rodrigues Cruz, Augusto Boal, Flávio Rangel e Antonio Abujamra – o teatro buscava sua identidade nacional. Seja na definição de uma estética própria, seja na discussão de temas urgentes. Colocando o homem brasileiro em cena, graças a uma geração igualmente brilhante de novos autores, como Gianfrancesco Guarnieri, Oduvaldo Viana Filho, Chico de Assis e Plínio Marcos, seguidos de Leilah Assumpção, José Vicente e Consuelo de Castro, que se somavam a Nelson Rodrigues, Ariano Suassuna e Jorge Andrade para ficarmos em alguns nomes.”

Conta que João Apolinário “se identificou com esse teatro e as suas críticas, como se comprova aqui, nunca esconderam a opção política e ideológica por um teatro engajado nas lutas dos homens do seu tempo. O que não o impedia de defender a necessidade de uma profissionalização cada vez maior do fazer teatral. Logo nos primeiros tempos de São Paulo, e antes de impor-se como crítico, ele foi pioneiro na área de comunicação voltada ao teatro, que só se disseminaria décadas depois. Em 1966, o maestro Cláudio Petraglia produziu um dos maiores sucessos de público e crítica, o musical “Oh, Que Delícia de Guerra”, que consolidou o diretor Ademar Guerra entre os mais talentosos e influentes da sua geração. Cláudio Petraglia elaborou um projeto de marketing, que incluía outdoors espalhados pela cidade e uma ampla estratégica de divulgação, para o qual chamou Apolinário, que abriu depois uma empresa para oferecer assessoria de imprensa e de promoção para o teatro. Era algo até então impensável. Essa empresa durou pouco e, tudo indica, não prosperou como se imaginara – talvez estivesse fora e à frente do seu tempo. Seja como for a iniciativa resultava de uma percepção muito clara da importância de o teatro se apropriar de todas as formas de comunicação e de diálogo com o público.”
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APCA congrega críticos de todas as áreas

Mas se a contribuição das suas críticas ao estudo do teatro que se produziu nesse período está documentada para a história, relata Oswaldo Mendes, “a influência de Apolinário ultrapassou os limites do jornal Última Hora. Quando, a partir de dezembro de 1968, com o Ato Institucional número 5, o AI-5, a repressão e a censura policial fecharam o cerco sobre a sociedade brasileira e em especial sobre os seus artistas, Apolinário subverteu a cômoda tarefa da APCT – Associação Paulista de Críticos Teatrais, de distribuir prêmios e consagrar ou enterrar carreiras ao fim de cada temporada. No início dos anos de 1970, Apolinário percebeu – ele percebeu ninguém mais – que os jornalistas da área, incluindo os críticos, não podiam silenciar, quais vestais, diante de uma nação encurralada pela repressão, pela censura e o obscurantismo. Não podiam ser meros espectadores, ainda que indignados, passivos e omissos. Não bastava lamentar e ser contra a censura, era preciso tornar isso público. Apolinário percebeu mais, que sozinha a APCT não faria a menor diferença nem seus atos alcançariam a mínima repercussão na sociedade. Era preciso congregar os críticos de arte de todas as áreas, do teatro ao rádio e à televisão, do cinema à música popular, da literatura à música erudita, do rádio às então chamadas artes plásticas, enfim reunir um número expressivo de vozes que pudessem ser ouvidas também como resistência à censura oficial. O caminho mais curto para esse objetivo seria transformar a APCT em APCA – Associação Paulista dos Críticos de Arte.”

Contornados os problemas desta mudança, Apolinário segundo registra Oswaldo Mendes “se juntou a Eva Wilma, John Herbert, Raul Cortez e Antunes Filho – ainda lembro encontros na redação do jornal Ultima Hora – para criar uma entidade que defendesse os artistas-produtores, em tempos sem patrocínios de leis de incentivo e sem políticas públicas. Assim nasceu a Apetesp – Associação de Produtores de Espetáculos Teatrais do Estado de São Paulo, para propor estratégias comuns de produção, divulgação e proteção do seu trabalho.”

“No campo teórico, João Apolinário formulou um Ensaio geral sobre uma ideia nova de teatro, que circulou em folheto mimeografado pelo cursinho Capi Vestibulares por volta de 1973, em que propunha ‘uma opção e um desafio’ aos artistas do palco. Em síntese, queria quebrar a passividade do espectador que seria chamado a intervir diretamente no espetáculo, ao ponto de mudar o desenvolvimento da narrativa. Para tanto, desenvolveu um conjunto de sugestões técnicas que anos depois, talvez alguém se lembre, a televisão usaria ao pedir que o público escolhesse o fim de uma história. A ideia nova não prosperou, mas eu a menciono porque ela resultava da inquietação de João Apolinário naquele momento, resumida no final do ensaio: ‘Como crítico de um teatro morto, o ofício para mim terminou’.

“Hoje sabemos, até pela leitura de suas críticas, que o teatro que ele julgava morto se volta cada vez mais para reencontrar o seu destino de ser o único espaço vital, em meio a tantas novas tecnologias, para refletir sobre a condição humana. Afinal foi nesse teatro que Apolinário me fez acreditar. Foi pouco mais de cinco anos de convivência e aprendizado diários na redação do jornal Última Hora. Poeta, ele me ensinou a olhar a vida com a paixão das santas utopias. Poeta, ele me ensinou a buscar o rigor e a insatisfação sem abdicar da coerência e da autocrítica permanente. Poeta, ele me ensinou a perseguir, como queria Brecht, o sonho possível de um dia ver o Homem amigo do Homem. João não viu esse dia. Certamente eu também não o verei. Mas ele me ensinou a acreditar. Só assim vale viver. E foi assim que ele viveu e me ensinou a viver. Aqui, cuidei de revisitar fatos. Mas há fatos que não podem ser revisitados, pois o seu único documento de autenticidade é o coração de cada um que conviveu com João Apolinário. Falo por mim.”
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Conjunto documental importante e de caráter social

Na apresentação do primeiro volume, em artigo intitulado Uma escrita livre Maria Luiza Vasconcelos escreve: “É alegria que sinto ao ver editada a obra de crítica de João Apolinário, publicada no jornal Última Hora de São Paulo nos anos de 1964 a 1971, depois de tê-la organizado durante quatro anos seguindo o projeto original de meu marido quando criou o seu acervo. As críticas, fotografias e programas de espetáculos, ensaios e análises suas, de críticos, dramaturgos e estudiosos de teatro, acrescentadas à informação imprescindível para realizar-se um trabalho comprometido com a realidade de que surgiu, formam um conjunto documental importante e de caráter eminentemente social visto que sua opção foi escrever com liberdade, sem possíveis e reais restrições determinadas pelas direções do jornal. Prescindiu assim de qualquer remuneração pelo seu exercício. Produzida num período duro da nossa história recente, essa memória do teatro paulista é ousada e objetiva na expressão das ideias que estavam em contradição com a ordem estabelecida naquele momento histórico: a de não se permitir a continuidade da criação e afirmação da cultura brasileira. No teatro houve quem fizesse uma oposição frontal a esse atentado e assim foi reconhecido e valorizado pelo crítico.”

“Tem sido recorrente em nossa história que poderosos interesses econômico-financeiros nacionais e internacionais sejam identificados com movimentos nacionalistas pseudo revolucionários e sem nenhuma relação com o que é autenticamente brasileiro. Impostos pelas armas como fatos históricos irreversíveis, imutáveis, definitivos, durante décadas de opressão e repressão aviltantes para nós todos, são processos de atualização histórica, com a consequente descaracterização cultural e domínio político e econômico estrangeiro, aqui endêmicos. A ditadura militar instalada em 1964 agiu de acordo com suas leis sem obter na íntegra, porém, todos os resultados pretendidos. João Apolinário, identificado com a cultura brasileira, viveu a experiência da oposição às ordens dos ditadores nacionais. Não era principiante na função de escrever para a censura sem alterar suas idéias. ”
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Significado do projeto para seus realizadores

E como foi desenvolver este trabalho, qual o significado da realização deste projeto para Maria Luiza e Rafael Vasconcellos? Como foi o processo de produção de um livro de críticas que vai ser tão importante para a história do teatro brasileiro? Para Maria Luiza foi uma chance inédita de “poder tornar conhecida a obra de crítica do João, passados 38 anos de sua saída do Brasil e 25 anos de sua morte; trabalhar com a minha gente, principalmente com Rafael (Vasconcellos) num projeto concebido e gerido por ele; retomar e alargar um trabalho único sobre a história do teatro brasileiro; reviver momentos muito agradáveis de minha vida com o João, em São Paulo, os estudos que fizemos sobre o teatro que se viu naquele período: o brasileiro, o inglês, o francês, o russo, o norte-americano, o norueguês, o alemão e as vanguardas que chegaram a nós: a francesa, a inglesa, a norte-americana.”

Rafael Vasconcellos, o gestor do projeto, lembra que quando a Maria Luiza falou da sua disposição em organizar a edição das críticas de 1964 a 1971, seguindo a ideia original do Apolinário, ele sugeriu a elaboração de um projeto mais abrangente, envolvendo também a organização e a doação do seu acervo. “Achamos que essa contrapartida estaria à altura do apoio do governo federal através de Lei Rouanet. Em 2008 inscrevemos o projeto no MinC com essa proposição, isto é, obtermos autorização para captar um determinado valor de imposto federal e em troca doar o acervo a uma universidade pública. Essa estratégia foi bem sucedida: fomos informados pela Petrobras, muito depois, que o principal fator que levou à escolha do projeto, na nossa segunda tentativa em 2010, foi justamente a doação do acervo para o AEL UNICAMP.   Sugeri o Arquivo Edgard Leuenroth por duas razões: primeiro, por ser uma instituição importantíssima construída ao longo das últimas décadas por profissionais altamente comprometidos com a memória do país. Segundo, porque tem um dos mais importantes acervos de teatro: o arquivo do Teatro Oficina. ”

“Particularmente contribuí para que esse arquivo estivesse lá: nos anos 80 eu era ligado ao Diretório Central de Estudantes – DCE Unicamp – e organizei vários eventos com o Zé Celso (José Celso Martinez Correa) em Campinas, destacando o relançamento do filme O Rei Da Vela. Na ocasião apresentei o Zé ao Marco Aurélio Garcia, um dos meus professores no curso de História e diretor do Arquivo Edgard Leuenroth. Eles se articularam com o Carlos Vogt, reitor na época, e a Unicamp comprou o arquivo do Teatro Oficina. Acho que o acervo de João Apolinário não poderia ficar em companhia melhor. Maria concordou com essa doação; a Elaine Zanatta, minha colega no IFCH e diretora técnica do AEL, deu o maior apoio e nos enviou uma carta de interesse. Pronto, a coisa toda estava articulada e o patrocínio aconteceu: o projeto foi contemplado no Petrobras Cultural de 2010 e começamos a produzi-lo em 2012. Logo caímos na real: que o orçamento estava defasado (foi feito em 2008) e que não haveria alternativa de obter mais recursos. Sendo assim, otimizamos a produção, contratamos jovens profissionais e demos liberdade à criação, fazendo exatamente o que Apolinário gostava de fazer: trabalhar com a juventude e valorizar a criatividade. Tivemos excelentes surpresas: a diagramação do livro é arrojada; a aplicação das imagens não é nada convencional; a recuperação das fotografias pareceu um milagre. Tudo isso porque as pessoas que trabalharam no projeto se envolveram com o conteúdo das críticas, com o contexto daqueles anos. Isso significa que as críticas de Apolinário resgataram a memória de um teatro que ainda produz ressonância quase cinquenta depois. O trabalho na reta final foi uma experiência emocionante: parecia uma redação naquela correria para fechar a edição do dia. Quando chegaram os textos de Oswaldo, Idibal e Regina Helena, que juntos com o texto inicial da Maria constituíram o prefácio do livro, percebi a dimensão daquele trabalho que consumiu o meu tempo livre durante a noite e nos finais de semana ao longo de meses. Os livros estavam completos, coerentes em todas as suas partes, trazendo à tona a reflexão de um crítico ativista, de um jornalista manifesto, de um promotor incessante da palavra. É como se trouxéssemos o Apolinário e toda aquela gente de volta para bater um papo inteligente, inquieto e divertido.”

 

 

 

 

 

 

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Ana Lúcia Vasconcelos é atriz, jornalista, escritora e tradutora, licenciada em Ciências Políticas e Sociais pela PUC de Campinas, Mestre em Filosofia da Educação, pela Unicamp, e acaba de preparar um livro ainda inédito sobre Hilda Hilst que o MUSA RARA publica em partes. E-mail: analuvasconcelos@globo.com




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