Marulho


“Marulho” de Cildo Meirelles

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O escritor vive no centro da cidade, mas quer se mudar. Além da perturbação que o ruído urbano lhe causa, tem dificuldades para pagar o aluguel. O dinheiro que a prefeitura lhe paga para fazer uma pesquisa sobre as diversas maneiras de como se pratica o sexo na cidade não é suficiente. As economias que tem dão só para os próximos meses. Por essa razão, começa a percorrer diferentes ruas suburbanas em busca da mais adequada para morar. Quer viver longe do barulho, mas não está disposto a ultrapassar as pontes que delimitam a cidade. Pensa que uma distância desse tipo pode modificar de forma profunda suas atividades, principalmente as relacionadas à pesquisa que deve apresentar dali a poucos meses.
(Trecho do conto Jacinto, em Flores, de Mario Bellatin)

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I
Gigante ressonando

Mauro acionou o dial e a música reverberou pelas montanhas chiando nas antigas caixas de som. Da varanda não se ouvia mais pio de passarinho, grilo, farfalhar das árvores, avião. Mauro abriu uma lata de cerveja que, seguida do estalido, derramou espuma entre os dedos grossos e sujos. Acomodou-se na cadeira de balanço e fitou o céu limpo. As ondas sonoras elevadas, batidas eletrônicas, sincopadas e acompanhadas por uma melodia fanha, impediam que ele escutasse o zumbido infernal do mar. O mar amargo que teimava em não sair da sua cabeça.

Mauro nasceu na praia. Era filho de Jorge, um pescador esquisito, conhecido por sua misantropia ameaçadora: desde que Soraya foi engolida pelo mar, ele não se dirigia quase a ninguém do vilarejo. Abandonou a igreja, o resto de parentes e os poucos amigos que tinha.

Jorge era diferente antes da tragédia. Ria, jogava baralho, dançava. Amava Soraya; os cabelos lisos de índia e o sorriso molhado. Com os peitos morenos e as ancas fartas, a moça lhe deu cinco filhos: Maria do Carmo, Mauro Roberto, Moisés Juvêncio, Maura Aparecida e Marcondes Felipe. Os nomes compostos dos filhos se deviam ao comum acordo: ela escolhia um — sempre com a letra M — e ele escolhia outro, “para combinar”.

Soraya ainda era uma menina quase sem peito: os gemidos da sanfona reboavam noite adentro quando se atracaram no escuro. Poucas palavras foram necessárias para que Soraya abrisse as pernas e Jorge metesse nela, agachado no chão encardido do forró. Soraya gostou, respirava forte e pedia “mais fundo”. Casaram em cerimônia simples; engravidou poucas semanas dali.

Depois vieram mais filhos e redes a cruzar as paredes da pequena casa. Comida na panela, louça suja, barulho de tosse, de espirro, de riso. Foram tempos felizes, que passaram como uma aragem, ao longo de dez anos.

Agora Soraya estava morta. Entrançada pelas algas. Servindo de abrigo aos peixes, às esponjas, aos corais. Seus cabelos permaneciam compridos, obedecendo às direções cíclicas das marés. De tanto tempo no fundo do mar, mais parecia uma alga, um pedaço de árvore desgarrado e levado mar adentro. Aquelas mesmas mãos magras, as unhas redondas, agora são tocos úmidos, os finos ossos da mão transformados em latadas de minúsculos musgos.

Diante da tragédia, Jorge cultivou o olhar fundo, franziu para sempre o cenho e nunca mais foi o mesmo. Deu pra beber e trabalhar pouco. Para garantir o almoço do outro dia os filhos tinham de vender o balaio dos pescados angariados na madrugada. E quem não vendesse tudo levava um safanão na cara que deixava um rastro de zumbido, daqueles de besouro cascudo, tevê quebrada, mar bravo e onda crespa.

Os peixes que Jorge pescava eram pequenos e, sem conquistar clientela, apodreciam no fim do dia. O zunzum das moscas por cima do balaio era um prenúncio do zumbido maior que infernizaria seus ouvidos, vibrando pelas têmporas até que o sono o derrubasse. O zumbido se misturava com o mugido do mar e o mundo virava um barulho só, ruim.

Mal cresceu, Mauro partiu para a cidade em busca de trabalho, para ficar longe do pai e do mar.

(…)

II – Humilde ajoelhação de Estela

Quando A. me contou essa história triste e polissêmica, eu reclamava justamente da falta de educação do vizinho do andar de baixo que me obriga, todas as tardes, a escutar suas músicas de gosto duvidoso. As batidas eletrônicas, em volume altíssimo, entram nos meus ouvidos e me acordam um espírito guerreiro, desconcentrado e revolto. Já discutimos e fui ameaçada covardemente aos brados: “Estela, você é uma praga! Estela, você tem problemas mentais!”. Restaram-me a humilhação, a resignação e a reflexão insistente das possíveis causas de seu desajuste comportamental.

A. me contou a história de seu vizinho Mauro — o nome é fictício — e de como um segundo vizinho, escultor, entrou na peleja com o filho do pescador. A música, tonitruante, entrava em suas propriedades e lhe impossibilitava de investir na suas esculturas. Mauro não cedeu em abaixar o volume e o artista acabou morrendo de infarto por causas desconhecidas. Como A. é psicanalista, ele ofereceu a Mauro um acompanhamento clínico em troca de um pagamento simbólico.

Na primeira sessão, o vizinho barulhento contou que escutava música alta para parar de ouvir o zumbido de mar — possivelmente uma sequela neurológica dos incontáveis safanões que levou. Narrou as suas dificuldades na infância e de como se sujeitava à violência do pai, que, como já foi dito, obrigava o filho a vender o balaio inteiro sob a ameaça de apanhar na cara. Não houve mais segunda sessão: Mauro achou a psicanálise um troço muito esquisito e nunca mais voltou ao consultório de A.

A história de Mauro arrefeceu um pouco o meu sangue — o que me permitiu compreender mais do pior dos outros. Os excrementos emocionais, os gritos mudos, os zumbidos fantasmagóricos que carecem de significação, são enfeitiçados e surgem fantasiados de flechas sonoras, bolhas, quedas de cabelo, safanões, espinhas.
É isso. Desde então eu me ajoelho e em seguida deito no chão, em posição fetal, à procura dos meus zumbidos. Essa minha nova caçada calou um pouco os ecos de fora da casa, as batidas da música estúpida do vizinho, o caminhão do lixo, um passarinho louco, latidos. Não me irrito mais. Escuto o marulho e fico em paz.

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Natércia Pontes é cearense e tem 31 anos. É autora de “Az Mulerez” (edição do autor) e organizadora de “Semana” (Hedra). Publicou contos nos jornais Folha de S.Paulo, O Globo, O Povo, Diário do Nordeste. Escreveu para as revistas piauí, Aldeota, Ocas, O Casulo, Cronópios, Caos Portátil, Sítio (Portugal), entre outras publicações. Há 10 anos edita o blog natercia.blogspot.com. E-mail: naterciapontes@gmail.com




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