Manifestos (segunda parte)


Uma segunda instância da força de invenção materializada através dos movimentos de ocupação das ruas, seja pelo ataque aos símbolos (através das ações  da dimensão  chamada Bloc destas forças)  ou pela ocupação das vias públicas por grupos em um fluxo organizado de outro modo, esta segunda instância que chamo de ‘refluxo e criação de uma cartografia conceitual’ que irá desembocar em novas estratégias de organização da  revolta  está em pleno vigor  no momento em que escrevo este texto, mas é necessário não associar tais forças a um grupo x ou y, elas são o resultado de um processo que se iniciou entre 2000 e 2010, da criação de um pensamento autônomo  e deliberativo como prática possível, este pensamento se emancipou  em todas as direções para longe da cristalização que ocorre de seus entusiasmos dentro dos organismos coletivos, sejam eles conselhos municipais, grêmios, sindicatos ou coletivos, se emancipou para agir fora de certos determinismos dicotômicos, existe um entrelaçamento entre as ações destes fluxos que são como que amplificações dos fluxos de viciados em crack ou de moradores de rua  expulsos de certas zonas urbanas e da  passeata infinita dos viciados em crack ao rês do chão ou da passeata infinita  de pessoas invisíveis composta essencialmente por moradores de rua, estas manifestações constantes ao se configurarem como extremos de uma violência absoluta são os átomos paradigmáticos destes fluxos e operam em sinergia com eles.

 

(continua na próxima coluna)

 

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Meditações sobre a morte e o amor

O amor e o horror, ambos superestimados e subestimados simultaneamente são colados um no outro  pelo inexistente sorriso dos mortos, não se fabricam caixões para dois, como diz Ademir Demarchi num poema. O fato é que somos a soma dos nossos mortos e se não morremos de um modo ôntico para nós mesmos o amor se torna uma incompletude ou uma impossibilidade limitada pela forma ou pelo objeto do amor, no amor cortês essa morte é regulada por ritos de cortejo e a idéia do amor é sempre renovada, talvez resida neste tipo de abordagem pragmática do amor, sua primeira mitificação funcional, soterrada hoje pela velocidade, sofreguidão e ansiedade com que os afetos são “vividos”. Quando escrevi meu livro ‘Teatrofantasma’ que terá uma nova e ampliada edição pela Pharmakon de Daniel Kairós com o titulo ‘Viver a vida como um poema para cancelar o teatrofantasma’, esta expressão teatrofantasma, foi por mim pensada como um sinônimo do eu ou da atividade egocêntrica, que opera em oposição a ideia de comunidade.

 

(continua na próxima coluna)

 

Abaixo um roteiro para dança que escrevi por encomenda para duas dançarinas de Santos, desde que conheci o trabalho de Takao Kusuno, um dos gênios da dança brasileira, que trouxe o dançarino Kazuo Ohno ao Brasil, penso em escrever roteiros para dança, este é o primeiro deles:
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O Sagrado

Peça para dança performática em um ato

Para ser encenadao\dançada ao som de Jan Garbarek

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Ela entra

(Vestida de Branco, representa Lázaro)

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Ela se move

Por isso o sagrado existe

Ela se deita

E diz

Eu sou além do tempo minha respiração é luz e silêncio

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(Ela se deita)
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Ela se deita e dorme por isso a morte existe
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A outra entra

(vestida de branco representa Cristo)

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realiza sobre a outra uma dança com as mãos sobre o corpo dela

como se das mãos saíssem raios de luz, depois calmamente passa as mãos pelos cabelos ou os penteia

enquanto ela passa as mãos ou penteia os cabelos ouvimos a voz dela separada do corpo dizer :

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Que eu não seja Real

que só tu o sejas

que vc sinta o mar

dentro do Sol

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A outra se levanta bem devagar como um peixe que volta para a água

As duas realizam um improviso onde um corpo que se levanta segue linhas finíssimas e invisíveis que saem de outro corpo, até que as duas estejam de pé uma de frente para a outra, permanecem em silêncio uma olhando para a outra.

Atrás das duas devem estar dispostas uma bacia e uma cadeira, Ela dá um passo para trás bem suave e coloca os pés na água e se senta ao mesmo tempo, com lentidão e sem tensão.

A Outra dá um passo para frente e se abaixa, como se houvesse um pássaro morto em sua cabeça , que pesasse muito, enquanto se abaixa, apanha uma lanterna que deve estar amarrada na cintura e assim que seus cabelos tocarem na água, ela acende a lanterna e a aponta para a água.

Essa dança da luz na água deve durar alguns segundos, logo após A outra deposita a lanterna acesa na água, a única luz deve ser a dessa lanterna na água. Ela se levanta e a outra também se levanta, em tempos quase simultâneos, uma segura as mãos da outra.

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Ela: Volto a ver em uma única direção

A Outra: Posso estar em todos os lugares

Ela: Porque a morte e o morrer são como dia e noite

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Todas as luzes devem se apagar

 

Escuridão

 

Fim

 

 

 

 

 

 

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Marcelo Ariel nasceu em Santos, 1968. Poeta, performer e dramaturgo. Autor dos livrosTratado dos anjos afogados (Letraselvagem 2008), Conversas com Emily Dickinson e outros poemas (Multifoco,2010), O Céu no fundo do mart ( Dulcinéia Catadora,2009), A segunda morte de Herberto Helder (21 GRAMAS, 2011) entre outros… E-mail: marcelo.ariel91@gmail.com




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