Lôro D’agua


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A enchente vai levar tudo, o fim do mundo vai ser debaixo d’água, gritou o doido com os braços estendidos, em cima do banco da praça, girando o corpo como o ator que procura a plateia. Gente na rua não tinha e as casas não responderam, uma janela aqui, uma porta aberta ali, via-se a luz por dentro, as pessoas nas salas assistindo à novela. Assim estava a cidade de Cachoeira, tranquila no início da noite, até o grito do doido, depois de uma hora olhando pro nada, mão no queixo, sacola do lado. Esta barragem vai quebrar, não vai sobrar ninguém, é o castigo de Deus! Continuava seu discurso.

Êta que o doido surtou! Disse a sobrinha de dona Cici, que ainda não tinha reparado aquele homem desde que chegou para passar férias na casa da tia. Não mangue, eu tenho pena do Lourival, dona Cici repreendeu a menina. Porque o doido invocou com a barragem, minha tia? A sobrinha perguntou e a tia respondeu: ele tem as razões dele, minha filha, talvez qualquer um endoidasse no lugar dele. Lourival se acalmou depois de uns gritos, como sempre fazia e se sentou de novo no banco da praça na mesma posição que estava antes. Da janela, as duas olhavam para o lado de fora e a senhora foi contando o caso para a menina.

Dona Cici, de fato, tinha pena do doido Lôro D’água, que era como os moleques o chamavam. Tinha pena, mas também disfarçava o medo que sentia, nem precisava que ele surtasse e anunciasse o apocalipse da cidade num dilúvio. Era só ver Lourival na rua, ou sentado na praça, que ela se lembrava das coisas e o medo lhe tomavam por dentro, não só a ela, mas qualquer um do lugar que tenha vivido o tormento que levou o juízo de Lourival embora e deixou um pavor em todos.

Já faz vinte anos da enchente que quase acabou com as cidades de Cachoeira e São Félix. O governo do estado, recém-empossado, logo depois da vitoriosa eleição, cioso do orçamento público, precisando ajustar as contas, demitiu os técnicos e engenheiros da barragem de Pedra do Cavalo. A confusão se instalou entre o novo governo e o sindicato, enquanto as chuvas de verão caíam e encheram o lago até que mais nenhuma providência pudesse dar conta daquele mar pendurado sobre as cabeças do povo.

Da noite pro dia a água subiu de vez. Parecia obra de Deus, dada a rapidez com que a cidade foi inundada, e melhor que tivesse sido, seria mais fácil para o povo aceitar do que aquilo que se sabia. Melhor a ira do Senhor do que aquela cheia, fruto tão somente da incompetência humana e desvarios da política, sabe-se lá com quais interesses e intenções obscuras. E lá se foram 15 dias de enchente.

Havia uns dois anos que Lourival estava morando em Cachoeira, chegou de São Paulo fugindo da cidade grande, querendo sossego, dizia ele. Com um dinheirinho que trouxe, botou o pequeno comércio, boteco e quitanda, como se tem muito por aqui. Com sua aparência pouco comum na cidade, branco, alto, e com o nome que tinha ganhou logo o apelido de Lôro, o Lôro da venda. A cidade o tratou bem, podemos dizer, o negócio se estabeleceu, fez amizade, casou com Maria Helena, menina de São Félix que atravessava a ponte para ficar de conversa na venda com o paulista. Maria Helena era a preta mais bonita das duas cidades, na opinião confiável do próprio Lourival, que ele dizia e repetia todo dia, antes e depois do casório.

Muita gente se mudou da Cachoeira e de São Félix por causa da barragem, e muito antes da enchente. Quando começou a construção o povo já teve medo, mesmo com o dinheiro, os funcionários, os empregos na empreiteira, os engenheiros, as verbas para as prefeituras, os bons negócios e o progresso trazidos pela novidade. Mas como poderia a cidade viver debaixo daquele mundo de água, perguntava-se o povo. Quem garante que isso não desaba um dia? O governo, é claro, dava certeza da segurança da obra, mas governos em geral não são lá muito confiáveis, nem para promessas de campanha das mais triviais, muito menos para assegurar que aquela montanha de água não viria a cair sobre as cabeças da população. Essa cidade vive a um palmo do seu fim de mundo, o doido está certo, de algum modo.

Lourival ainda não era doido quando a enchente aconteceu, em 1989, disse dona Cici para a sobrinha curiosa, e continuou a contar, quando a água subiu, mais gente foi embora, era de se esperar. Maria Helena se desesperou, foi pra Muritiba, a mãe morava lá, foi uma que se mudou no tempo da construção da barragem. Pelejou para o marido ir também, chorou, ameaçou separação, ele não foi. É verdade que não se dava muito bem com a sogra, mas também não queria sair de perto do seu comércio, pois tinha ladrão se aproveitando da enchente para saquear as casas e os estabelecimentos. Os homens montaram uma guarda, se revezavam à noite e, de canoa, vigiavam o movimento na parte alagada, lanternas em punho, facões e revólveres, quem os tivessem. Soavam um alarme, disparavam tiros, se necessário, para espantar os ladrões. Lourival participava da ronda, e, com a casa alagada, dormia no sofá de algum amigo que morava na parte mais alta. Além disso, ele dizia que escolhera esta cidade pra viver, e que dela não ia sair.

A enchente começou no dia 16 de dezembro e foi até o ano novo. Aquele Natal foi do lado de fora das casas, o povo se juntou para que os desabrigados não ficassem sem festa. Em cada praça e rua havia reuniões de várias famílias em grandes mesas arrumadas do melhor jeito que a calamidade permitia. Talvez a alegria tenha sido até maior que o possível para aquela situação. Lourival estava lá, a nossa ceia de Natal foi aí em frente, fizemos comida, teve brinde, teve reza, presentes e tudo. Ele estava preocupado e meio triste como todo mundo, mas estava bem, confiante que aquele tormento ia acabar logo, brincou com as crianças, tentava manter a animação, disse dona Cici.

Depois que água baixou, tão ligeiro quanto subiu, a tristeza ainda enchia a cidade. Foi muita gente que perdeu tudo, o povo chorava na rua, nas portas das casas, uma lama danada. Lourival também teve muito prejuízo no comércio, mas dizia que ia recomeçar, era um otimista. Ele não tinha se dado conta que tinha perdido Maria Helena pra enchente. Foi atrás dela na casa da sogra, mas ela disse que não voltava, não ia mais morar numa cidade sempre em perigo, não queria trabalhar pra ver a vida ser levada na água. Lourival esperou, achou que era medo da barragem, mas um mês depois ficou sabendo que Maria Helena já estava de namorado lá em Muritiba, e, diga-se de passagem, era um engenheiro da hidrelétrica, veio de Salvador, ela parecia que gostava de forasteiros.

Aí Lourival mudou, ficou triste de dar pena, dona Cici contava para a sobrinha, que ouvia atenta. Ele chegou a reabrir o comércio, mas foi por pouco tempo, pois o homem foi ficando amuado, não queria mais saber de coisa nenhuma, a venda foi se acabando, não tinha mais mercadoria pra vender nem nada. Danou a beber, foi vendendo tudo o que tinha, o pouco que sobrou depois da enchente, até que ficou só ele na casa e o povo, os amigos e conhecidos é que davam comida.

Um ano depois da enchente, Lourival surtou pela primeira vez, bem na véspera do Natal. Começou a gritaria na praça, assim como fez hoje, dizendo que o mundo ia se acabar. É claro que quando ele fala do mundo está falando somente da cidade da Cachoeira, mas pra ele é a mesma coisa. O mundo dele já acabou faz é tempo. O povo se assustou, as pessoas tentavam acalmar o Lourival. Ver alguém endoidar já é coisa assombrosa, alguém a quem se julgava dentro da maior normalidade, que fazia de tudo dentro dos conformes da sociedade, inclusive considerado boa gente, um trabalhador, marido, educado e alegre. Alguém como qualquer um de nós, que se pensa com a cabeça no lugar. Quando se vê uma coisa assim, é impossível não pensar que a todo mundo isto pode acontecer, um dia você é certo e no outro pode despirocar. Se isso já mete medo, Lourival ainda trazia outro tão terrível quanto, que era lembrar ao povo que estava se vivendo com uma enxurrada o tempo todo ali, guardada atrás daquele muro de pedra que agora não parecia muito forte, um murozinho mequetrefe, que se quebra com qualquer espirro do Diabo ou com qualquer cochilo de Deus.

De quando em quando Lourival dispara suas profecias, que talvez sejam mais memórias do passado que previsões do futuro. Ele fica pior quando chega o fim do ano, uns dizem que é por conta da chuva, outros que é por conta do Natal, as músicas, os enfeites, e o anúncio do apocalipse é quase todo dia. Os moleques da cidade, impiedosos como só os meninos podem ser, trataram de lhe dar um novo apelido e o Lôro da venda virou Lôro D’água. A molecada faz algazarra, gritam-lhe na rua, mas o homem não liga, parece nem ouvir, com o olhar sempre distante, aquela cara de doido que parece que está sempre tentando ver alguma coisa no horizonte, algo que se vai inalcançável, lá longe na última curva do rio, como um barco, uma mulher, um resto de sanidade.

Maria Helena se casou com o engenheiro, teve filho com ele, já tem é neto, disse dona Cici, para terminar a história que contava à sobrinha. Bem, ela tinha o direito de dar rumo na própria vida, o problema foi dele que não aguentou o juízo. Nunca mais ela apareceu aqui, nem pra visitar ninguém. Tomou raiva da cidade, pavor da enchente, como muita gente que foi-se embora. Na certa, ela também ficou sabendo da situação do Lourival, e aí é que sumiu mesmo.

A verdade é que nesta cidade todo mundo vive com medo de outra tragédia, que pode até vir maior que a que se passou. Pode ser católico, de santo, ou mesmo os crentes, que vivem dizendo que o mundo vai se acabar é no fogo, assim está escrito na Bíblia, mas todos sabem que pode dar um problema de novo na barragem, ou coisa pior, como ela vir abaixo, e aí não vai sobrar é nada mesmo. Este lugar dorme ao lado do desastre. Uma imensidão de água, escorada na barragem até quando ninguém sabe, aquela água toda, ali à espreita, esperando a má sorte, a ira de qualquer deus, ou outra burrice de governos e engenheiros.

Lourival parou de gritar, sentou de novo no banco da praça. Dona Cici fez um prato com carne, arroz, salada e farofa. Pegou um copo de plástico e colocou um café, pôs açúcar, mexeu. Levou o prato e o café para o homem na praça, que recebeu o prato calado, não olhou pra dona Cici, não agradeceu, mas começou a comer. Assim Lourival vivia, da compaixão de qualquer pessoa da cidade que sofreu aquela enchente e conhecia bem a história do Lôro D’água. Do jeito que se pode, tratam bem o homem, pois sabem que ele foi a maior vítima daquele momento ruim, foi quem perdeu mais, perdeu a mulher e o juízo. Dona Cici entrou em casa, chamou filhos, filhas, sobrinhos e sobrinhas que ali estavam e falou, vamos continuar o trabalho, amanhã é Natal, temos que preparar a ceia, avia, meu povo, temos mais o que fazer, não pode ficar tudo pra amanhã. Vem gente de Salvador, vão querer chegar e ter comida e bebida, Natal é assim.

Lourival se acomodou no banco da praça, ia dormir por ali mesmo. Futucou a sacola cheia de bugigangas, achou a pequena caixa de madeira. Tirou a aliança da caixa, aproximou-a dos olhos para ler o nome gravado no ouro e colocou no dedo médio da mão esquerda, olhando a rua para ver se ninguém o observava. Guardaria a aliança na manhã seguinte, como fazia todas as noites, desde que a enchente levou Maria Helena.

 

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[Este conto faz parte do livro Ponte Estreita em Curva Sinuosa publicado em 2012, Editora UFRB.]
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Aquilino Paiva nasceu em Ilhéus, Bahia e é docente da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB); cursa mestrado em literatura pela UEFS e publicou Ponte estreita em curva sinuosa, pela Editora UFRB.

 




Comentários (4 comentários)

  1. jai alves, “Tá chegando o fim das era, vai pegar fogo no mundo de o pior que os vagabundo toca música estrangeira”, em vez de ouvir o mestre ambrósio e o cascabulho
    25 dezembro, 2012 as 17:41
  2. Heli, Foi um dos que selecionei para ser lido em sala de aula: meus alunos adoraram!!!
    26 dezembro, 2012 as 3:02
  3. Gloria Sousa, Ao terminar de ler o texto, não consegui controlar a enchente de meus olhos… senti a dor de Lourival e entendi a escolha de Maria Helena. Não é fácil perder quem amamos. Não é fácil viver com medo.
    27 dezembro, 2012 as 4:12
  4. Rosi Oliveira, Não pude conter as lágrimas. Perder o amor da vida pode mesmo levar a loucura. Maria Helena teve suas razões. Foi-se para uma vida melhor (?), se é que sem um amor tão lindo pode existir melhor.
    27 dezembro, 2012 as 4:35

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