Ler é brincar ou copular?



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Provavelmente muito irão ler (ou não) este ensaio por acharem uma heresia comparar a literatura (coisa séria e de “gente grande”) com a brincadeira, ou, pior ainda: com a cópula! Palavra tão estranha para definir o ato sexual ou para exprimir a “relação entre o sujeito e o atributo” (segundo o dic. Michaelis). Mas pretendo fazer uma reflexão baseada em alguns estudiosos da literatura além, é lógico, de minha própria experiência com brincadeiras e relações com o atributo-livro.

Em um primeiro momento, para falar do brincar ou jogar, vou trazer alguns referenciais de jogo do livro Homo Ludens e tentarei promover um diálogo com a literatura. Em um segundo momento irei para a cópula propriamente dita. Não que a relação não traga o brincar e o jogo nela, ao contrário, mas por uma questão didática faço essa separação neste artigo.

O jogo. O sentido do jogo foi apresentado e analisado por Johan Huizinga em seu livro já citado, em seus aspectos sociais, antropológicos, psicológicos e culturais, fazendo um rápido diálogo com a poesia, mas não com a literatura da forma que intento aqui. Ao falar de jogo, Huizinga salienta a relação dele com a ilusão, mostrando que a palavra ilusão significa literalmente “em jogo”, como revela sua etimologia: illusione, ou seja, in-lusio, illudere ou inludere. Assim, quem entra em um jogo aceita as regras deste e se permite uma ilusão. Na literatura, como vemos em Eco, no seu livro Seis passeios pelos bosques da ficção também o leitor aceita determinadas regras: “Um texto que começa com ‘era uma vez’ envia um sinal que lhe permite de imediato selecionar seu próprio leitor-modelo, o qual deve ser uma criança ou pelo menos uma pessoa disposta a aceitar algo que extrapola o sensato e o razoável” (p. 15). Ou seja, se permite uma ilusão. E esse é apenas um exemplo, de vários outros, de leitor-modelo, pois como afirmou Eco, “cabe (…) observar as regras do jogo, e o leitor-modelo é alguém que está ansioso para jogar” (p. 16).

A ilusão no jogo tem como objetivo um divertimento que etimologicamente vem de divertere, que significa desviar. Assim, o objetivo do jogo é desviar a atenção da “realidade” do mundo circundante, para fazer penetrar em outra “realidade”, desta vez ilusória. Com o livro se dá o mesmo, o leitor se deixa abandonar na/pela leitura (tanto é assim que esse abandono também já foi associado à viagem. O leitor viaja na leitura – “Não há melhor fragata que um livro para nos levar a terras distantes” (Emily Dickinson). Tanto o jogador quanto o leitor se divertem nas respectivas atividades. Para Huizinga, então, o jogo é capaz de absorver por completo o jogador; como já dito, esse conceito se aplica com justeza à literatura e pode ser transposto a ela.

Alguns dos outros elementos que Huizinga acopla ao jogo e que também estão presentes na literatura, são:

  • o ambiente instável, pois “a qualquer momento é possível à ‘vida quotidiana’ reafirmar seus direitos” (p. 24), ora, a qualquer momento algo pode interromper o processo ilusório do leitor (o telefone que toca, a mãe que chama para jantar, etc).
  • algo permanece no jogador após o jogo, nesse sentido o estudioso associa ao jogo os rituais e as festas sagradas: “[S]eus efeitos não cessam depois de acabado o jogo; seu esplendor continua sendo projetado sobre o mundo de todos os dias, influência benéfica que garante a segurança, a ordem e a prosperidade de todo o grupo até a próxima época dos rituais sagrados” (p. 17). Também a literatura permanece no espaço interior do leitor – aumentando o repertório do leitor – e acaba por refletir-se em seu mundo circundante – possibilitando assim um maior diálogo e uma visão mais aberta.

Assim, podemos comparar a literatura ao jogo. Dizer mesmo que a literatura é um jogo. Mas se a literatura é um jogo, quem está jogando?

A leitura de um bom livro é um diálogo incessante:
o livro fala e a alma responde
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(André Maurois)


Os jogadores
. Há uma frase de Sábato que, ao falar sobre a literatura de Kafka, diz: “Quiçás não seja errado comparar a obra literária com o xadrez: com as remanejadas peças de sempre, um gênio o renova. É a obra inteira de K. o que constitui uma nova linguagem, não seu vocabulário clássico e sua aprazível sintaxe” (Sábato, 1981, p.73). Realmente, as peças de composição de uma obra são sempre as mesmas: enredo, personagens, tempo e espaço. E cada autor joga com essas mesmas peças no tabuleiro da literatura de uma forma diferente. E é a jogada que dá um “sabor” especial a cada livro que lemos além, é lógico, de cada leitura diferencial que fazemos devido à nossa transformação interior.

Não somente o autor, ao escrever, joga com as mesmas peças, mas também o leitor é partícipe do jogo (é o outro jogador). O leitor jogará com o seu ato de leitura, mas para que a jogada seja mais eficaz o autor deverá permitir a “entrada” do leitor através dos vazios do texto. Assim, o leitor projetará seu repertório no texto[1] (tecido, segundo Barthes) frouxo. Se o texto é muito bem urdido, não permitirá brechas. Quanto mais “solto” o tecido textual, mais facilmente o leitor embrenhará “sua” história, urdindo o tecido/texto em conjunto com o autor. Participando assim de um jogo de tecitura em que ambos desenham o tecido textual[2].

Como a literatura é um jogo, cabe ao leitor observar as regras do jogo, como Eco tão bem observou. E este estudioso continua seu pensamento indagando: “Quem determina as regras do jogo e as limitações?” (Eco, p. 17), e critica as pessoas que respondem que é o autor. Para ele é o autor-modelo quem dá as regras, pois ele “é uma voz que nos fala afetuosamente (o imperiosamente, ou dissimuladamente), que nos quer a seu lado. Essa voz se manifesta como uma estratégia narrativa, um conjunto de instruções que nos são dadas passo a passo e que devemos seguir quando decidimos agir como o leitor-modelo” (p. 21).

Os jogos geralmente são feitos para divertimento ou para educação (conhecimento). O mesmo se dá com a literatura. Existem livros que são como brincar com pião: você apenas tem o trabalho de jogar o pião (virar as páginas e ler) e depois se diverte ao vê-lo girando; outros são como pular corda, dão um pouco mais de trabalho, mas ainda diverte. Mas alguns são como jogar xadrez ou gamão: necessitamos não somente de um conhecimento maior das regras como também capacidade de análise e de estratégia. Outros ainda são como uma investigação igual ao do jogo detetive; ou ainda pode-se pular amarelinha (como no livro homônimo), e com o mesmo objetivo.

Independente disso, cada livro é “jogado” de forma diferente de acordo com as experiências do leitor. Cada leitura que fazemos do mesmo livro traz novidades ou transformações. Mudou o livro? Não. É o mesmo livro. O que muda é a visão do leitor, de acordo com sua bagagem de mundo. Isso já um jogo, tal qual no xadrez em que a pessoa, a cada jogada, se desenvolve, alimenta sua capacidade de pensamento e discernimento. Trata-se de uma prática, como na leitura. Uma prática prazerosa que possibilita, a cada jogada, uma visão diferente, uma possibilidade nova, uma aprendizagem. Mas isso não é possível jogando xadrez apenas uma ou duas vezes. Para que o jogador tenha mais experiência é necessário que ele jogue diversas vezes e com diferentes jogadores. O mesmo se dá com a literatura, apesar de alguns alunos (ou não) de Letras afirmarem que perderam o prazer na leitura por causa da análise dos mesmos. Concordo com Eco quando exemplifica com sua leitura de Sylvie[3] (por quarenta anos): “a experiência de reler um texto ao longo de quarenta anos me mostrou como são bobas as pessoas que dizem que dissecar um texto e dedicar-se a uma leitura meticulosa equivale a matar sua magia. Toda vez que releio Sylvie, embora conheça o livro de modo tão anatômico – talvez porque o conheça tão bem –, apaixono-me por ele novamente, como se o estivesse lendo pela primeira vez” (p. 18).

Essa paixão, esse prazer na leitura de uma obra tão relida, existe também nos jogos. O jogo sempre é o “mesmo”, mas o prazer sempre é diferente e não diminui a cada jogada, seja um simples jogo de cartas ou uma partida de xadrez (quanto mais aprendo sobre as regras e estratégias, meu prazer não vai ser menor. Pode até aumentar). O prazer através do divertimento é importante tanto para o jogo como para a leitura. Segundo Barthes, em sua já citada obra, o livro deve encontrar as zonas erógenas do cérebro[4]. Este estudioso também afirma que um jogo prazeroso ocorre entre autor e leitor: “esse leitor, é mister que eu o procure (que eu o ‘drague’), sem saber onde ele está. Um espaço de fruição fica então criado. Não é a ‘pessoa’ do outro que me é necessária, é o espaço: a possibilidade de uma dialética do desejo, de uma imprevisão do desfrute: que os dados não estejam lançados, que haja um jogo” (p. 09).

Esse jogo se dará principalmente através dos vazios no texto, como já citado anteriormente. Como os vazios permitem a interação entre texto e leitor é interessante abordá-los aqui. Afinal, “O texto é um sistema de tais combinações e assim deve haver também um lugar dentro do sistema para aquele a quem cabe realizar a combinação. Este lugar é dado pelos vazios no texto, que assim se oferecem para a ocupação pelo leitor”, assim, os vazios funcionam como um comutador central da interação do texto com o leitor. Vamos usar aqui o exemplo do queijo suíço que tem buraquinhos. Pode-se preencher os vazios do queijo com cebola, picles, pimenta, outro queijo, creme, chocolate, enfim, qualquer elemento comestível que dê prazer ao degustador. Também assim o leitor pode preencher suas leituras, desde que compatíveis ao texto. Não vamos colocar pedras, cd’s ou papel nos vazios do queijo (por mais que gostemos de pedras, música ou livros). Caso contrário, caímos na superinterpretação de Eco[5]

Retornemos ao jogo da literatura: vimos que por vezes as leituras são etapas da vida, mas existem pessoas que sempre gostarão de uma literatura que traga tudo mastigadinho, bem linearmente, histórias com um fim (de preferência bonito e feliz). Assim como há algumas pessoas que gostam de jogar xadrez sem pensar muito e sem prever as jogadas (só pelo prazer de jogar), haverá pessoas que somente vão querer jogar xadrez pela investigação do outro (pesquisa). Além disso, são etapas de desenvolvimento pelas quais todo ser humano passa: uma criança necessita de confirmações a certas previsões (como nos contos de fadas), já a maioria dos adultos procura algo que os surpreenda. Eco faz uma relação com o jogo de xadrez e afirma que:

Um texto narrativo pode parecer tanto um manual para crianças quanto um manual para jogadores experientes. No primeiro caso, serão propostas situações de partidas bastante evidentes (segundo a enciclopédia do xadrez), para que a criança tenha a satisfação de antecipar previsões coroadas de sucesso; no segundo caso, serão apresentadas situações de partidas nas quais o vencedor tentou uma jogada totalmente inédita que nenhum cenário havia ainda gravado, uma jogada tal que ficará na posteridade pela sua ousadia e sua novidade, de tal forma que o leitor sente o prazer de se ver contrariado. No fim de uma fábula, a criança fica feliz em saber que os protagonistas viveram felizes, exatamente como o havia previsto; no final de Os relógios, o leitor de Agatha Christie fica feliz em saber que se enganara totalmente e que o autor fora diabolicamente surpreendente. Para cada fábula seu jogo e o prazer que ela decide dar. (Eco, 1985, p. 153)

Tanto no jogo quanto na literatura a capacidade dos oponentes de xadrez devem ser “iguais ou parecidos”, ou seja, um grande mestre do xadrez não vai gostar de jogar com um novato nas regras, e vice-versa. Aqueles leitores mais “preparados” vão querer mais e mais desafios. Como no jogo, é uma interação entre os parceiros. O leitor não é passivo na leitura (ou pelo menos não deveria ser). Como diz Iser em O ato da leitura, o próprio título já avisa: ATO, temos que agir. E é justamente esse estudioso quem traz o conceito de vazios que são preenchidos com as previsões ou projeções do leitor. A leitura, segundo Iser, é uma dialética entre protensão e retenção, e é através desses dois elementos que o leitor antecipa, validando ou invalidando sua leitura no decorrer do processo. A previsão permite assim, ao leitor, re-questionar suas interpretações. Já uma obra aberta em demasia, mais surrealista, permite as projeções do leitor.

O jogo em Cortázar. Para exemplificar o jogo na literatura trago aqui um escritor que sempre aproveitou o lúdico em suas obras: Julio Cortázar. Já dizia Mario Vargas Llosa: “nos livros de Cortázar joga o autor, joga o narrador, jogam os personagens e joga o leitor, obrigado a isso pelas endiabradas armadilhas que o acercam à volta da página menos pensada”. Vários estudiosos de Cortázar por diversas vezes escreveram sobre a importância do ludismo em sua obra. O próprio escritor uma vez afirmou que: “no meu caso, a literatura tem sido uma atividade lúdica – com toda a seriedade que para mim tem o jogo” (Cortázar in Bermejo, 2002, p. 06). Várias de suas obras levam o jogo em seus títulos, como por exemplo: Final de jogo, O jogo da amarelinha, 62- modelo para armar; divertimento, mas não é um jogo inconsequente, pois o que o autor promove é um sério jogo no qual planeja, com um estudo criterioso, todos os passos a serem dados e, quando as há, suas respectivas “regras”. Por vezes Cortázar parece jogar com as mesmas peças em vários “tabuleiros”, pois alguns temas e elementos são recorrentes nesse autor.

Cortázar considera que “o lúdico é uma das armas centrais pelas quais o ser humano se conduz ou pode se conduzir pela vida afora” (Cortázar in Prego, 1991, p. 126). E ele não estaria se referindo ao lúdico dos jogos, mas sim ao lúdico como visão de mundo, uma visão “na qual as coisas deixam de ter suas funções estabelecidas para assumir muitas vezes funções bem diferentes, inventadas. O homem que habita um mundo lúdico é um homem colocado dentro de um mundo combinatório, de invenção combinatória, que está continuamente criando formas novas” (Cortázar in Prego, 1991, p. 126). Em ensaio no livro Último Round, falando de sua poesia permutante, o escritor associa-a aos jogos infantis:

Toda poesía que merezca ese nombre es un juego, y sólo una tradición romántica ya inoperante persistirá en atribuir a una inspiración mal definible y a un privilegio mesiánico del poeta, productos en los que las técnicas y las fatalidades de la mentalidad mágica y lúdica se aplican naturalmente (como lo hace el niño cuando juega) a una ruptura del condicionamiento corriente, a una asimilación o reconquista o descubrimiento de todo lo que está al otro lado de la Gran Costumbre.[6] (Cortázar, 1969, p. 273)

Há um jogo de “sociabilidade” que pode ser percebido em entrevistas ou em cartas nas quais Cortázar apresenta seu ato criativo junto com o prazer e com a brincadeira. Ele diz que sempre será um menino para muitas coisas e que por vezes o menino que carrega consigo dá sua visão pueril contra uma visão adulta. Ocorreria então uma “coexistência poucas vezes pacífica de pelo menos duas aberturas para o mundo” (Cortázar, 1993, p. 165). Essas duas “aberturas” permeiam muitos de seus contos. Por fim, como o próprio autor afirma: “creio que a literatura serve como uma das muitas possibilidades do homem de realizar-se como homo ludens” (apud Bermejo, 2002, p. 71).

Ainda é possível trazer algo novo na literatura? Já não foi tudo abordado pelos grandes escritores? Acredito que não, acredito que a capacidade e a criatividade do ser humano é infinita. Mas também creio que para isso precisamos re-educar nossos sentidos, mudar nossa forma de ver o mundo e buscar novas formas de olhar. Há uma frase do filme Cidade dos anjos dita pela personagem médica ao responder ao anjo Seth (que tudo pode ver) sobre o sabor da pera. Essa frase sempre me inspirou nesse sentido, como exercício de escrita: “quando você morde, vai sentir a superfície dura da fruta. Depois vem um gosto úmido e macio, adocicado por cristais açucarados como pequenos grãos de areia doce”. É uma descrição de um sabor! Ou seja, as mesmas peças da literatura podem ser jogadas ad-infinitum, desde que com criatividade, com um novo olhar, saindo do grande costume. Vejamos como as mesmas peças da literatura são “jogadas” de forma diferente por Cortázar:

Espaço e tempo. Abordo os dois elementos em conjunto, pois eles estão intimamente relacionados. O apreço por jogos que pretendem desvelar as leis de seu próprio funcionamento se refletem na fala de Cortázar sobre seu “sentimento de não estar no todo”. Cortázar busca uma transgressão do tempo e do espaço, assim, eles são amalgamados ou se cruzam em muitas referências. Como exemplo, temos várias obras de Cortázar, mas vamos nos deter em dois contos em especial: Continuidade dos parques [7] e O rio[8].

Em continuidade dos parques, apesar da história ser linear, tanto o espaço quanto o tempo são os mesmos nas duas histórias que permeiam o conto, e é justamente esse amálgama que permite a estranheza no conto e a ligação entre as histórias banais. Já em O rio, os espaços e tempos se misturam e se separam na dubiedade, provocando a imaginação do leitor. São duas “realidades” em dois espaços diferentes[9]: espaço/tempo físico e onírico, cama e rio.

Esse conto permite várias leituras e interpretações (obviamente não esquecendo que não se deve colocar pedras nos buracos do queijo!). Enfim, Cortázar transgride até dentro da própria linearidade, pois há o pensamento de que “se a leitura linear é a mais respeitosa das regras do jogo, não é necessariamente a mais interessante. (..) O texto não é somente uma “superfície”, mas também um “volume” do qual certas conexões só se percebe na segunda leitura” (Jouve, p. 29). Sim, é verdade, mas como Cortázar consegue nos dar um conto linear (Continuidade dos parques) com um “volume” imenso? Promovendo um imbricamento de espaços e tempos.

Personagens. Há uma afirmação de que os personagens de uma ficção não devem distanciar muito dos humanos ou das características humanas, para que haja identificação do leitor com a história (cf Jouve, p. 62). Mesmo em uma obra de ficção científica os monstros ou ets são próximos da figura humana.

Mas também essa “peça” Cortázar procura transgredir. Nesse caso, há mais uma projeção leitor, já que uma previsão é praticamente impossível (claro está que cada leitor pode fazer sua projeção de acordo com seus conhecimentos de vida e pode até imaginar os personagens com formas humanas). Vejamos a descrição que Cortázar dá aos cronópios: Os cronópios são seres verdes e úmidos, inteligentes, desprendidos, um pouco esquecidos, artísticos, poéticos, cantantes e desordenados. Gostam das cores azul e verde. Eles são propensos a desanimar-se por qualquer coisa, porém procuram viver a vida em sua plenitude e vivem em diversos países, rodeados de grande quantidade de famas e esperanças. Já os famas são mais organizados, práticos e prudentes, apesar de “pessimistas por natureza”. Eles nunca falam sem ter certeza de que suas palavras são as apropriadas, temerosos de que as esperanças (sempre alertas) deslizem pelo ar e por uma palavra equivocada invadam o coração bondoso do cronópio. E as esperanças são sedentárias, segundo Cortázar “deixam-se viajar pelas coisas e pelos homens”, ao contrário dos cronópios e famas que gostam de viajar. As esperanças se irritam quando veem os famas bailarem trégua ou catala, pois elas, tais como os cronópios, dançam espera.

Ou seja, não há um formato específico para se pensar nestes seres. Silvalândia, ao contrário, traz ilustrações (de Julio Silva) de seres totalmente diferentes e bizarros com textos de Julio Cortázar. Também um exemplo de personagens “diferentes”. Sem contar o caracol Osvaldo ou Feuille Morte, em 62 modelo para armar.

Narrativa (linguagem). Novamente Cortázar procura inovações[10]. Encontramos muitos palíndromos e anagramas, recorrentes em sua obra, como em seu livro de poemas de título Pameos y meopas; ou então dentro de seus contos com brincadeiras do tipo “atar las ratas” – Satarsa, ou então o nome da protagonista: Alina Reyes e a frase “es la reina y…”. Ou seja, como disse Arrigucci: “o autor é um construtor hábil e caviloso, extremamente lúcido e lúdico com relação à própria obra. Joga com todas as possibilidades da linguagem, ao mesmo tempo que a ironiza, levando a crítica das suas insuficiências e falsidades até a beira do impasse” (Arrigucci, 1995, p. 19).

Além disso, temos o glíglico, uma nova linguagem criada por ele. Encontramos um pequeno exemplo dessa linguagem no capítulo 68 (outra brincadeira de Cortázar? anterior ao 69?) de Rayuela:
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No mesmo instante em que ele lhe amalava o noema, ela lhe dava com o clêmiso e ambos caíam em hidromurias, em abanios selvagens, em sústalos exasperantes. De cada vez que procurava relamar as incopelusas, ele emaranhava-se num grimado queixoso e tinha de envulsionar-se de cara para o nóvalo, sentindo como se, pouco a pouco, as arnilhas se espechunassem, se fossem apeltronando, reduplimindo, até ficar estendido como o trimalciato de ergomanina no qual se tivesse deixado cair umas filulas de cariacôncia. E, apesar disso, aquilo era apenas o princípio, pois, em dado momento, ela tordulava-se os hurgálios, consentindo que ele aproximasse suavemente os seus orfelunios…. (p. 432, O jogo da Amarelinha, Rio de Janeiro: civilização brasileira, 1999)

Por fim, vejamos como funciona o paradoxo do jogo: “uma vez atingido um triunfo, este, ante sua momentaneidade, perde de imediato seu sentido. Mais adiante haverá outras metas que terão caráter de tais, enquanto se aspira a atingi-las, dando-se o mesmo processo”. Ou seja, é ininterrupto como a leitura do livro, como as metas que pretendemos atingir nas leituras…

A cópula. Quando Barthes anuncia o prazer do texto em seu livro homônimo traz uma comparação interessante com o desejo entre autor e leitor. Mostrando o leitor que parece dizer: “o texto que o senhor escreve tem de me dar prova de que ele me deseja. Essa prova existe: é a escritura. A escritura é isto: a ciência das fruições da linguagem, seu kama-sutra (desta ciência só há um tratado: a própria escritura)” (p. 11).

Antes de entrar na cópula propriamente dita, vejamos como são as preliminares: Olhamos de longe, de soslaio, alguém nos fala bem dele[11], nos aproximamos mais – talvez em uma livraria – o tocamos de leve, admiramos o rosto, olhamos por trás, lentamente passamos os dedos entre elas, lemos com atenção as orelhas. Pronto. Estamos apaixonados. Ou não, às vezes é necessário um convívio maior para acontecer a paixão (ou o ódio).

Barthes nos alerta se “o lugar mais erótico de um corpo não é lá onde o vestuário se entreabre?”(p. 15) e afirma que “nem a cultura nem a sua destruição são eróticas; é a fenda entre uma e outra que se torna erótica. O prazer do texto é semelhante a esse instante insustentável, impossível, puramente romanesco, que o libertino degusta ao termo de uma maquinação ousada, mandando cortar a corda que o suspende, no momento em que goza” (p. 12).

Como o sexo ainda é um assunto “tabu” percebe-se que é mais fácil fazer a analogia de jogo e literatura do que literatura e cópula. Como disse Barthes: “Embora a teoria do texto tenha nomeadamente designado a significância (no sentido que Julia Kristeva deu a essa palavra) como o lugar da fruição, embora tenha afirmado o valor ao mesmo tempo erótico e crítico da prática textual, essas proposições são amiúde esquecidas, repelidas, sufocadas. (p. 75).

A simples palavra “cópula”, que pode levar ao orgasmo, é tida como “animalesca”: O orgasmo, segundo o Michaelis, é: “Excitação do funcionamento de um órgão, muitas vezes com turgescência” (p. 1505). Ora, podemos excitar o funcio-namento de um órgão, seja ele o cérebro! (ou até mesmo todo o corpo!) Ou, seguindo as palavras de Barthes: “o prazer do texto é esse momento em que meu corpo vai seguir suas próprias idéias – pois meu corpo não tem as mesmas idéias que eu” (p. 24).

Por fim, retomo a ideia de leitor e estética da recepção, dessa vez abordando diretamente Cortázar que queria leitores-cúmplices ou que os leitores não fossem leitores fêmea (passivos). O leitor-cúmplice de Cortázar é “uma espécie de executante de uma partitura cujos símbolos, chaves e silêncios tem que saber compenetrar. Tudo isso na re-estruturação de uma cosmovisão fragmentária da realidade”.

Não devemos nos esquecer do cinismo típico de Cortázar, que detestava o leitor que paga pelo livro e depois fica acomodado em almofadões apenas admirando o escritor ou pintor, em uma admiração seca. Cortázar critica dizendo: “que importa a Van Gogh sua admiração?” o que ele queria (e todos os escritores, pintores e artistas) é a cumplicidade do leitor ou espectador. Que o leitor veja como o artista estava vendo: com os olhos não cegos, aprendendo a mirar “a abertura infinita que espera e reclama” (cf. p. 182-3 de La vuelta al dia en ochenta mundos). O que ele pretende é mostrar às pessoas a possibilidade de novas visões. Ele deseja que o ser humano seja capaz de caminhar com suas próprias pernas, mesmo lançando um olhar infantil sobre as coisas. Ele propõe um jogo com o leitor, que tem que sair de uma posição cômoda passiva e receptiva para uma posição de agente direto, “construindo” junto com o autor os textos.

Vejam como ele realmente queria incluir o leitor com suas possibilidades de escrita. O leitor é um co-autor. Nesse sentido a crítica que Cortázar faz ao leitor passivo é por vezes sarcástica. Ele chama esse tipo de leitor de lector-hembra (leitor fêmea), e o “chama” à transformação através de sua escrita. Esse termo utilizado por Cortázar foi muito criticado na época e mesmo nos dias atuais algumas pessoas ainda não aceitam este termo, achando-o pejorativo. Mas o estudioso Alberto Cousté defende a utilização do termo e o faz associando a leitura à cópula, tanto que o título de sua escrita é “ler é copular”[12]:

Uno de los tantos malentendidos que acompañaron como una segunda piel la obra de Cortázar a partir del éxito de Rayuela, tiene que ver con lo que en su momento definió como “lector-hembra” para referirse a la tradicional pasividad ante la obra que adopta el lector convencional. Feministas y feministos de todo pelaje y condición le acusaron de retrógrado y machista por la creación de esta metáfora, pasando por alto lo esencial: que no se trataba de una definición biológica o consustancial al sexo femenino, sino de una corroboración del papel que (por imposición, pero en ocasiones también por conveniencia) adoptaba la mujer en la sociedad en cuyo marco esa descripción fue fomulada. De todos modos, al margen de la mayor o menor fortuna del ejemplo y de los roles empleados, lo que manifestaba Cortázar era un llamamiento al cambio de actitud para enfrentarse a la lectura de un libro, que no es un objeto concluido en sí mismo – como un cuadro, una manzana o un mueble de diseño – sino una propuesta alternativa sobre muchas posibles: la única que el autor fue capaz de consumar o la única que eligió, pero en ningún caso la única que el lector puede leer.

Como una relación sexual entre dos seres humanos – por naturaleza y definición, mutantes e incompletos – el libro es el lugar del coito, el espacio y el tiempo en el que la cópula lector/autor se cumple y se manifiesta y, como ocurre con la sexualidad, cada encuentro reinventa e inaugura la experiencia: cada cuerpo (cada libro) es el primer lugar, cada fusión de dos cuerpos (de dos miradas) es la primera vez.

Claro que hay libros (como hay seres) que resultan más estimulantes para cada uno de nosotros, según unas normas que es imposible fijar porque es imposible compartir, dado que pertenecen a esse cono de sombra (a esa ración de luz) que hace trastabillar a la estadística y es lo único que permite al indivíduo diferir de la especie.

Lector-hembra, lector-macho, lector-andrógino: copulante del libro y con el libro que nadie puede contemplar, porque la cópula se vive y culmina, interminable y felizmente, del otro lado del espejo.[13] (Cousté, 2001, p. 92).

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Por fim… se ler é copular…. ao final de cada leitura o leitor pode perguntar a si mesmo: “foi bom pra você?”

 

 

 

 


[1] Texto, segundo Barthes em seu O prazer do texto, “quer dizer Tecido; mas, enquanto até aqui esse tecido foi sempre tomado por um produto, por um véu todo acabado, por trás do qual se mantém, mais ou menos oculto, o sentido (a verdade), nós acentuamos agora, no tecido, a idéia gerativa de que o texto se faz, se trabalha através de um entrelaçamento perpétuo; perdido neste tecido – nessa textura – o sujeito se desfaz nele, qual uma aranha que se dissolvesse ela mesma nas secreções construtivas de sua teia” (Barthes, 2004, p. 74/75).

[2] Por mais de uma vez realizei comparação deste “jogo” de autor e leitor com uma litografia de Escher chamada “mãos desenhando”. Ver Moura, dissertação abrindo as portas para ir brincar nos espaços de Final del juego, Curitiba: Ufpr, 2004.

[3] Sylvie, de Gérard de Nerval. Obra em que Eco retorna diversas vezes em suas análises.

[4] Também Manguel, ao falar sobre a literatura erótica, afirma que: “acredito que, tal como a arte erótica, o ato de ler deveria ser essencialmente anônimo. Deveríamos poder  entrar no livro ou na cama como Alice entra no Bosque do espelho, não mais levando conosco os preconceitos de nosso passado, e abandonando naquele momento de intercurso nossos ouropéis sociais. Ao ler ou fazer amor, deveríamos poder nos perder no outro, no qual, para tomar emprestada a imagem de São João, nos transformamos: leitor em escritor em leitor, amante em amante em amante. Jouir de la lecture, “gozar da leitura”, diz o francês, para quem atingir o orgasmo e extrair prazer expressam-se com uma mesma palavra.” (No bosque do espelho, p. 110)

[5] Eco – Interpretação e Superinterpretação (São Paulo: Martins Fontes, 2005)

[6] Tradução livre: Toda poesia que mereça esse nome é um jogo e só uma tradição romântica já em desuso persistirá em atribuir a uma inspiração mal definível e a um privilégio messiânico do poeta, produtos em que as técnicas e as fatalidades da mentalidade mágica e lúdica se aplicam naturalmente (como faz a criança quando joga) a uma ruptura do condicionamento usual, a uma assimilação ou reconquista ou descobrimento de tudo que está do outro lado do Grande Costume.”

[7] Os espaços e tempos de “Continuidad de los parques” foram apresentados em evento na Universidade Federal do Paraná e em dois artigos: revista virtual das Univ. Tuiuti do Paraná (eletras – www.utp.br/eletras/texto/Artigo9) e na revista de Letras da Ufpr (n° 66 – mai-ago 2005).

[8] Há uma análise sobre esse conto na monografia da disciplina Literatura e leitura da prof. Marta Costa.

[9] Ver análise do conto em Moura, Susan B. P. Abrindo as portas para ir brincar nos espaços de Final del juego, dissertação, Ufpr, 2004.

[10] Em nenhum momento se está afirmando que Cortázar foi o “autor” das transgressões das “peças” do jogo. Apenas utilizo para exemplificar e ilustrar a literatura como jogo.

[11] Aliás, pode-se sentir prazer até no relato de segundos ou terceiros. Segundo Barthes, eu, como leitora, perco o lugar de ativa e “posso tornar-me o seu voyeur: observo clandestinamente o prazer do outro, entro na perversão; o comentário faz-se então a meus olhos um texto, uma ficção, um envoltório fendido” (Barthes, 2004, p. 25).

[12] Apesar de longa transcrevo aqui na íntegra, pois é de difícil acesso. (Cousté, A., 2001)

[13] Traduão livre: xxxxxxxxxxxxx

 

 

 

Referências bibliográficas.

 

Arrigucci, D. O escorpião encalacrado. São Paulo: Cia das Letras, 1995

Barthes, R. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 2008.

Cortázar, J. Final del juego. Buenos Aires: Sudamericana, 1974.

___________ Ultimo round.

___________ Historias de cronópios e de famas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,

2001.

_______________. O jogo da amarelinha. Rio de Janeiro: Civ. Brasileira, 1999.

_______________.A volta ao dia em oitenta mundos.

Cousté, A. Julio Cortázar. Barcelona: Océano, 2001.

Eco, U. Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo: Cia das Letras, 2001.

Eco, U. Interpretação e superinterpretação. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

Huizinga, Homo ludens. São Paulo: Perspectiva, 2001.

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Susan Blum Pessôa de Moura, formada em Psicologia (PUC-PR, 86) e formada em Letras (UFPR, 2003). Mestre em estudos literários (UFPR, 2004) e doutoranda na USP pesquisando sobre o espaço e o autor Julio Cortázar. Possui alguns poemas traduzidos (no site www.humanas.ufpr.br/departamentos/delem/nuttraducao). Possui publicações em revistas literárias como Fragmentos (UFSC), Letras (UFPR) e Magma (USP), além de apresentações em congressos. Pesquisadora no Grupo de Estudos sobre o espaço (UFPR) desde seu início em 2001. Seu currículo pode ser obtido no currículo Lattes do CNPQ. E-mail: susanblum@usp.br




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