Lendo o Chico


………………..Lendo o Chico (uma crônica perversinha)

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Outro dia sem querer acabei lendo o Chico Buarque, até porque sou meio que uma leitora compulsiva, sobretudo de ressaca num sábado de manhã quando topei com Budapeste intacto numa estante, então entendi porque nunca me interessei em ler os romances do Chico (um pouco porque também sou bestíssima, daquelas que não leem gente que não pertence à série literária, para falar como Affonso Romano de Sant’Anna) não sei, ele escreve assim como um cara aposentado que de repente descobre um hobby interessante para fazer, ocupar o tempo morto lúdico da aposentadoria, até porque ele se dá conta que sabe escrever legal, uma vez que é e foi um músico e poeta genial (que só está escrevendo esses romances no lucro duma obra musical já concluída no passado, e esta sim imortal, assim como Garcia Marques e Vargas Llosa, e estes sim da série rigorosamente literária [escritores da mesma envergadura que o Chico compositor musical], razão pela qual agora só fazem se repetir e repetir, mordendo o rabo, é tedioso explicar isso, mas sempre tem gente que não sabe, de forma que não custa explicar esses detalhes do gênio que se esgota e prossegue girando em falso, o que não é exatamente o caso do Chico, que para não se repetir então escreve, etc.), que como músico e poeta sabe como ninguém lidar com as palavras, o cotidiano o coloquial da língua que ele domina facilmente (embora o problema de muitos escritores seja esse: escrever bem demais ) aí vai contando histórias que não vive que inventa, comendo mulheres que não come que não ama que inventa agora que a vida começa a escapar-lhe das mãos do tempo do tesão que também diminui muito aos 63 anos, então posso entender o Chico que deve ganhar uma grana para escrever esses romances para se ler e esquecer imediatamente (o mercado tá cheio disso e de celebridades escrevendo isso), muito festejados pelos intelectuais todos de plantão, tipo Roberto Schwarz, mas acontece que o Roberto é desses críticos aguçadíssimos que desfiam verdadeiros tratados transatlânticos para boi dormir em cima de qualquer coisa impressa resultando assim que as críticas dele sim é que são geniais, boas de ler e reler, podem apostar, o Roberto é simplesmente um gênio da crítica e do ensaio, meio que um Borges em bom português com estilo, rigor e seriedade acadêmica com todos os seus protocolos de praxe, porque ele vai e descobre conexões sutilíssimas em cima de qualquer Mané; sem contar mil outros que tecem loas ao Chico, feito Caetano (aí meio que não vale, os músicos são corporativos, assim como os cineastas e os caras do clube de xadrez), feito o Luís Fernando Veríssimo, outro escritor copiosíssimo construtor tijolinho por tijolinho de catedrais de NADA, um compulsivo que, a julgar pela produção de texto em quantidades industriais, realmente não deve ter tempo nenhum de viver, apenas escrever e escrever (sobre o quê, Meu Deus, sobre o quê?), e olha aí, até José Saramago na orelha do Budapeste, nosso Nobel castiço de plantão, tem cara mais chato do que esse? Não, não tem. Só que ninguém diz isso, nenhum coleguinha que se preze tem a coragem suicida e maluca de dizer com todas as letras que o português é um pé no saco – e olhem que eu atravesso qualquer coisa, Joyce, Proust, tudo – Saramago é o Nobel do tédio pedante e castiço, um escritor sem sangue, milhões de vezes mais chato que o Chico, que é só moderadamente chato, um chato de Aeroporto, inclusive porque se dá ao desfrute de curtir um hobby legal na terceira idade, então fui lendo Budapeste com todas aqueles macetes e trutagens de livro bem bolado e arquitetado, um redesign fudido (pra quem gosta de redesigns) desses livros com ISO 90.000 de Esquecibilidade, porque não tem tesão, não tem paixão, apenas entretenimento, entretenimento sobretudo do gênio poético-musical aposentado (desculpe, Chico, acho você um cara legal, mas é isso que eu penso do Chico romancista). Arrematando a orelha de Budapeste, Nelson Archer, um rapaz seríssimo, nos dá o derradeiro álibi para ler esse Chico por que “ele tem uma história para contar, nesses tempos de rebuscamentos literários, vazios de fabulação”, algo assim. Pois é. Agora é fashion, viramos contadores de histórias, que merda, é o mote fajuto de todas as flipes sejam em Paraty ou Pago-Pago. Desde quando? Se todas as histórias já foram contadas, e quem diz isso é William Faulkner, um escritor realmente de primeira, o importante não é o que se escreve, mas como se escreve, e isso também é tedioso ficar explicando, tanto que é melhor sai da literatura e ir para o cinema para talvez explicar melhor o que se entende por carne, sangue e ossos velozmente adorados.

Ressocado numa sessão da madrugada passa um filme do Louis Malle de 90, Perdas e Danos, com Jeremy Irons e Juliette Binoche (também sou cinéfila compulsiva, tipo dois a três filmes por dia) e pimba. Pela história até podia passar por um dramalhão banal, tipo Jeremy, ministro inglês de 50 anos, e sua futura nora, Juliette, se apaixonam furiosamente, com um feroz desejo físico que ninguém segura, até que são flagrados pelo filho que, fora de si, cai de costas no fosso das escadas e morre instantaneamente, desencadeando a destruição irrevogável das vidas e ligações familiares de todos os personagens envolvidos – mulher, filhos, irmãos – provavelmente pelas gerações futuras e subseqüentes. Jeremy se manda, sei lá, para o Tibete (ingleses têm esses lugares chiques para curtir suas destruições), e um belo dia, muito tempo depois, ele olha a foto dela ampliada na parede (imensa como um pesadelo, diria Yourcenar) e então se dá conta que “ela era apenas uma mulher comum”.

Claro. Incomum, extraordinária é a paixão. Uma paixão impessoal, sem escolha, divina, inumana, que se abate como uma catástrofe, um tsunami que só precisa de três minutos para te varrer do mapa, da história, da geografia e por várias gerações, sem razão, sem motivo, sem mais aquela. Depois tudo volta ao normal, e um belo dia o sujeito percebe: porra, o que é que eu vi nela? Como uma estranha.

Então arte é isso, o tsunami, a paixão. Toca, cala fundo na alma, marca indelevelmente como ferro em brasa e quando nos devolve à realidade, já somos outros.

 

 

 

 

 

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Márcia Denser publicou, entre outros, Tango fantasma (1977), O animal dos motéis (1981), Exercícios para o pecado (1984), Diana caçadora/Tango Fantasma (Global,1986, Ateliê, 2003,2010, 2a.edição), A ponte das estrelas (Best-Seller,1990), Caim (Record, 2006), Toda prosa II – obra escolhida (Record, 2008). É traduzida em nove países e em dez línguas: Alemanha, Argentina, Angola, Bulgária, Estados Unidos, Espanha (catalão e galaico-português),Holanda, Hungria e Suíça. Dois de seus contos – “O vampiro da Alameda Casabranca” e “Hell’s Angel” – foram incluídos nos Cem melhores contos brasileiros do século, organizado por Ítalo Moriconi, sendo que “Hell’s Angel” está também entre os Cem melhores contos eróticos universais. Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, é pesquisadora de literatura e jornalista. Foi curadora de literatura da Biblioteca Sérgio Milliet em São Paulo. E-mail: mdenser@uol.com.br

 




Comentários (3 comentários)

  1. Gláuber Soares, Texto excelente para nos ajudar numa reflexão sobre literatura de entretenimento vs. alta literatura. No entanto, o interessante paradoxo fica sobre Saramago — apesar de não ser entretenimento concordo quanto a chatice.
    24 abril, 2014 as 12:36
  2. jairo pereira, Disse tudo. E, o pior ainda está por vir (viram aquele garoto que escreve romance policial) o Rafael acho q Montes, esteve no Jô Soares. Estão nos humilhando ao quadrado… coisa de editor idiota, q sequer tem noção do q é realmente ser um escritor (aquele q pode criar uma língua, dentro de sua própria língua, aquele q cria problemas de entendimento, aquele q despeja seus fantasmas e expande o conhecimento, inventa e expande linguagens…). Valeu.
    24 abril, 2014 as 23:55
  3. Alfredo C. Rangel, Chico é rei. E é eterno. Fazendo o que sabe fazer: tudo. Me desculpem.
    11 maio, 2014 as 19:54

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