Kakekotoba, poesia cheia de graxa



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– Você sabe o que quer dizer kakekotoba?

– Caquikotoba?

– Não é caqui, é ka-ke-ko-to-ba.Um  negócio da poesia japonesa.

– Shiranái.

– É uma palavra que tem dois sentidos. Por exemplo, a palavra “Matsu”, que significa pinheiro, também tem o sentido de esperar.

– Tem o mesmo som, mas são escritas de modo diferente, né?

– É, uma professora de português diria que são homófonas mas não homógrafas.

– Nem posso lembrar das aulas de gramática. Nunca aprendi nada.

– Nem eu, me arrepio só em pensar. O padre professor dava aula no colégio interno e eu lia as revistas de sacanagem do Carlos Zéfiro. Colocava entre as páginas da gramática de Napoleão Mendes de Almeida.

– E como é que você foi gostar de poesia japonesa?

– Sei lá. Uma vez eu vi um filme do Mizoguchi na França e me apaixonei pelo Japão.

– Era o Hiroshima mon Amour ?

– Não, este é do Alain Resnais. Era o Contos da Lua e da Chuva. Em japonês é Ugetsu Monogatari. Quem escreveu Ugetsu Monogatari foi Akinari Ueda. É  uma compilação de contos fantásticos japoneses.

– Este tiramisu é muito gostoso. O nome parece japonês.

– Você não sabe nada de japonês, bakamitai. Tiramisu é um doce italiano. Descobri esta confeitaria ano passado. Vim cobrir a exposição do Juarez. Uma mulher chata começou a me encher o saco, queria por que queria aparecer no jornal. Encheu-me tanto que em vez de ficar na vernissage, vim tomar café aqui. Comprei uma revista chique e tinha um artigo complicadíssimo sobre poesia japonesa.

– Por isto você lembrou do kakekotoba.

– É.  Kake vem do verbo kakeru, pendurar. Kotoba é palavra. É a palavra que tem um sentido pendurado, além do comum. A palavra shiranami, que significa ondas brancas, traz como associação a palavras shirani, desconhecer e namida, lágrimas.

 

quase todo o passado

desconhecido.

na  onda branca

brinca a lágrima

reconhecida.

 

– Gozado, eu achava que a poesia japonesa era muito pobre. Não inventava nada,  haicai não tem título nem rima.

– É. Mais café?

– Quero sim. Lembro de ter lido uma coisa muito engraçada em algum lugar: Maria cheia de graxa.

– É do Joyce, no Finnegans Wake: Maria full of grease.

– O japonês diria que isto é um kakekotoba, né?

– É, um trocadilho, vai ver que é, né?

– Você sabe tanta coisa.

– Olha, eu não gosto de poesia, não entendo. Acho o Leminski um fanfarrão. Li umas 30 páginas de Ulysses. Você veio hoje aqui tomar café comigo, ficou tão quieta. Pensei que tua mãe tinha morrido. Sei que você gosta de escrever poesia, por isto eu falei do kakekotoba. Eu não entendo nada, tudo que sei li naquele artigo complicado. Tua cara ta bem melhor agora, mas não vai se meter à besta e ficar perguntando sobre poesia japonesa. Nem vá me escrever uma poesia, por favor. Eu não vou ler.

 

Esta crônica dialoga diretamente com o conto Mimi Nashi Oichi, traduzido por Valêncio Xavier.

 

 

 

 

 

 

 

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Marília Aiko Kubota (Paranaguá/PR, 1964) é escritora e jornalista. Integra as antologias Pindorama (2000), Antologia da Poesia Brasileira do Início do Terceiro Milênio (2008), Blablablogue (2009) e Todo Começo é Involuntário –Poesia Brasileira no Início do Século 21 (2011), entre outras. Em 2008 publicou o livro Selva de Sentidos. Organizou a antologia Retratos Japoneses no Brasil – Literatura Mestiça e o Concurso Nacional de Haicai Nempuku Sato, em 2008. É editora do JORNAL MEMAI – Letras e Artes Japonesas – WWW.jornalmemai.com.br. Escreve no blogue micropolis: WWW.micropolis.blogspot.com. E-mail: marilia.kubota@gmail.com




Comentários (1 comentário)

  1. Elia Mitsuko Kitamura, Um barato, adorei! livre, leve e solto….
    22 fevereiro, 2012 as 13:58

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