Impressões sobre mil tons de azul


BLAU, BLEU, BLUE, BLU: IMPRESSÕES SOBRE MIL TONS DE AZUL

 

“Começo neste tom lamentoso, pois me agradaria muito mais estirar-me sobre o que restou do pavimento do salão de Catulo e esquadrinhar o azul lá embaixo e as colinas distantes em Salo e Riva, com suas divindades esquecidas a andarem por entre elas, sem empecilhos, do que discutir processos e teorias de arte.” (POUND, Ezra. “Retrospectiva”. In: “A arte da poesia: ensaios escolhidos de Ezra Pound”. São Paulo: Cultrix, 1988, p. 16).

 

Não sei se estava assistindo “Blue Velvet”, de David Lynch, ou se estava escutando  “Pale Blue Eyes”, do Velvet Underground, ou se estava revendo telas da fase azul de Picasso, como “Mulher Azul”, “Autorretrato Azul” e “O Quarto Azul”. Talvez estivesse relendo “O Azul”, de Mallarmé: “De um infinito azul a serena ironia/ Bela indolentemente abala como as flores/ O poeta incapaz que maldiz a poesia/ No estéril areal de um deserto de dores/ (…)/ Em vão. O Azul triunfa e canta em glória/ (…)/ Ele rola em bruma, antigo, lentamente/ Galga tua agonia e como um gládio a sul-/ Ca. Onde fugir? Revolta pérfida e impotente/ O Azul! O Azul! O Azul! O Azul! O Azul! O Azul!”. Não sei se estava com o azul de Van Gogh na cabeça, caminhando pela “Estrada Azul com Cipreste e Estrela” ou na “Noite Estrelada sobre o Ródano”, depois do “Café em Arles”, escutando pelo fone Elis Regina cantando Lô Borges: “Você pega o trem azul, o Sol na cabeça/ O Sol pega o trem azul, você na cabeça/ O Sol na cabeça”. Talvez tenha assistido à abertura da trilogia das cores de Krzystof Kieślowski, “A Liberdade é Azul”, recitando Allen Ginsberg de cabeça (cheia) sob a lua cheia: “Caminharemos a noite toda por solitárias ruas? As árvores somam sombras às sombras, luzes apagam-se nas casas, ficaremos ambos sós./ Vaguearemos sonhando com a América perdida do amor, passando pelos automóveis azuis nas vias expressas, voltando para nosso silencioso chalé?”. Não sei se estava ouvindo “Blues”, de Péricles Cavalcanti – “tem muito azul em torno dele/ azul do céu azul do mar” -, vendo “Amantes Azuis”, de Marc Chagall, dançando “Danúbio Azul”, de Johann Strauss, ou se estava escutando “O Violinista Azul” tocando dois “blues” de Walter Franco – “o blues é azul, meu bem/ e o meu amor também”; “faz muito, muito bem/ sentir o céu/ se transformar/ num lindo blue” – para a “Noiva com Face Azul” ou a “Noiva com Vestido Azul”, do pintor bielorrusso. Talvez estivesse relendo alguns versos do “Poema do Frade”, de Álvares de Azevedo – “Era um lago a dormir… na flor sereno!/ Porém sua água azul tinha veneno!” -, quando recordei o triste fim de “Betty Blue”, de Jean-Jacques Beineix. Não sei se estava revendo a série “Nu Azul”, de Henri Matisse, ou as “Árvores Azuis”, de Paul Gauguin, ou se estava relendo “Os Cantos”, de Ezra Pound, “E o mar azulfundo em torno a nós,/ rosaverde em sombras”, ou o “Poema Submerso”, de Roberto Piva, e “Um jardim azul sempre grande deitava/ nódoas nos/ meus olhos injetados”. Não sei se estava assistindo ao filme “O Anjo Azul”, de Josef von Sternberg, ou se estava escutando o som “Azul” de Djavan, quando pensei que seria evidentemente impossível que o tal professor machista seduzisse a tal atriz de cabaré, na película expressionista alemã de 1925, com estes versos tropicalientes: “Eu não sei se vem de Deus/ Do céu ficar azul/ Ou virá dos olhos teus/ Essa cor que azuleja o dia?/ Se acaso anoitecer/ Do céu perder o azul/ Entre o mar e o entardecer/ Alga marinha vá na maresia/ Buscar ali um cheiro de azul/ Essa cor não sai de mim/ Bate e finca pé a sangue de rei/ Até o sol nascer amarelinho/ Queimando mansinho/ Cedinho, cedinho, cedinho/ Corre e vá dizer pro meu benzinho/ Um dizer assim/ O amor é azulzinho”. Não sei se a última canção ouvida pela orelha decepada encontrada pelo inocente Jeffrey Beaumont em um terreno baldio, ao retornar à sua pequena e pacata cidade natal, em “Blue Velvet”, foi a do Velvet Underground, para “permanecer em seus olhos azuis pálidos” (“Linger on your pale blue eyes”) de “Betty Blue”, que arrancou um deles e terminou enclausurada numa clínica psiquiátrica. Não sei se a última cena que seu olho decepado viu foi a do acidente que matou o marido e a filha de Julie em “A Liberdade é Azul”, ou se a orelha anônima do filme de David Lynch e o olho alucinado da película de Jean-Jacques Beineix seriam realmente testemunhas “ouvidentes” da trágica traição de Immanuel Rath por Lola, no retrato em branco e preto de Josef von Sternberg. Só sei que não passaria pela cabeça de Beaumont que aquela orelha poderia ter ouvido o uivo de Van Gogh no “Campo de Trigo com Corvos”; nem pelo pensamento de Rath que aquele olho poderia ter visto o grito do azul no “Campo de Trigo sob Nuvens de Trovoada”. Só sei que Antonin Artaud, que tinha olhos de ver e ouvidos de escutar as vibrações blues, sabia que o “suicidado da sociedade” precisava mesmo acender velas no seu chapéu de palha para pintar a noite (sem crase), e que só poderia realmente ser chamado de louco se tivesse decepado as duas orelhas. Não sei se passou pela minha cabeça que poderia ter passado pela cabeça de Julie, que sabia que o luto é azul, aquele Picasso azul pintando “A Morte de Casagemas”. Talvez tivesse pensado que poderia ter sido muito melhor para o olho de Betty Blue se o azul fosse só uma cor primária, sem variações de tom e gestualidade, domesticada – inofensiva – numa grade cromática de Mondrian. Sei que não poderia ter passado pelos tímpanos das pupilas – nem pelas pupilas dos tímpanos – de Lola esta “Pequena Ária” blue mallarmaica: “O virgem, o vivaz e o viridente agora/ Vai-nos dilacerar de um golpe de asa leve/ Duro lago de olvido a solver sob a neve/ O transparente azul que nenhum voo aflora! / (…)/ Fantasma que no azul designa o puro brilho,/ Ele se imobiliza à cinza do desprezo/ De que veste o Cisne em seu sinistro exílio”. A personagem de Marlene Dietrich jamais poderia ouvir o uivo azul do louco de Gogol: “Corcéis, lancem-se em direção às nuvens e levem-me longe deste mundo! Mais longe, mais longe, onde não se veja nada, mais nada. Lá o céu gira diante de meus olhos: uma pequena estrela cintila nas profundezas; uma floresta vaga com suas árvores sombrias, acompanhada pela lua; uma névoa cinza espalha-se sob meus pés; uma corda vibra na névoa; de um lado, o mar, do outro, a Itália; tudo lá está, veem-se até mesmo as cabanas de camponeses russos. Será minha casa aquela mancha azul à distância? É minha mãe sentada diante da janela? Mamãe! Salva teu filho infeliz! Deixa cair uma pequena lágrima sobre sua cabeça sofrida!”. Não sei se pensei então naquela “Mother” do bipolar viciado “Pink”, mais um Ziggy – “the rise and fall” – na impiedosa – amoral – roda-viva da indústria cultural, ou se na tela da retina da memória “agora eu era” o garotinho que perdeu o puto do pai na segunda genocida guerra imperialista, ignorado também pela insensível “mamãe”, sempre surda ao grito “salva teu filho infeliz”. Não sei se pelo orelhão ouvi ao fundo um Chacal uivando blue no tímpano da escura esquina chuvosa de “Pink”: “quem quer saber de mim na cidade do arrepio/ um poeta sem eira na beira de um calipso neurótico/ um orfeu fudido sem ficha nem ninguém pra ligar/ num dos 527 orelhões dessa cidade vazia”. Pode ser que tenha “ouvivido” em reverb no repeat “Goodbye Blue Sky” com a orelha decepada de “Blue Velvet”, e revisto – e amplificado – as cenas de animação – em trocadilho perversamente sarcástico – de Alan Parker com o olho infravermelho de “Betty Blue”, revelando o “dark side of the moon” através do espelho opaco do muro: os espinhos das rosas se contorcendo em arames farpados, pingando sangue das pétalas fuziladas; barões-vermelhos cruzando o “blue” e caindo como cruzes na derradeira “Waste Land” (será que teria pensado também nas imagens eliotianas da “Terra Devastada” pós-Primeira Guerra projetadas no telão de pedra de “The Wall”?). Não sei se pensei que jamais pensaria em Bob Geldof mamando nos seios de Marlene Dietrich, ou embalado no berço por um acalanto de boate de Isabella Rossellini e pelas mãos do sádico drogadito Dennis Hopper, pelas pérfidas personas cinematográficas que encarnam a “cianose” – aquele tal tom fatal “azul violácea da pele e das mucosas devida à oxigenação insuficiente do sangue” – nos lábios dos órfãos náufragos. Como um remake da trágica queda arquetípica “semiografada” (que badtrip sismograficamente mais sintomática, Barthes!) pela épica pena – que pena! – de Vicente Huidobro: “Y heme aquí, solo, como el pequeño huérfano de los naufragios anónimos”. Talvez tenha passado pela minha cabeça que certamente não passaria pela cabeça de quase ninguém aquele espectro escandinavo blue de Edvard Munch com as mãos trêmulas nos ouvidos esquizofrênicos na frígida ponte entre o nada e o nada, para não escutar o dantesco “grito da cor”. Era como se pudesse “ouviver” o vento uivando no “paracaídas” de “Altazor” o blues – em coro luciferino sibilante – de Faetonte & Ícaro: “Eu estava caminhando pela estrada com dois amigos – o sol estava se pondo – de repente, o céu ficou vermelho-sangue – fiz uma pausa, me sentindo exausto, e me apoiei na cerca – havia sangue e línguas de fogo acima do fiorde azul-escuro e da cidade – meus amigos caminharam, e eu fiquei ali tremendo de ansiedade – e senti um grito infinito passando pela natureza”. Acho que tive vontade de dar colo ao louco desterrado de Gogol quando recordei – “recordar” é “trazer ao cordis”, memória cardíaca subterrânea dos afetos que nos afetam psicossomaticamente – a ressalva sem salvação de Munch, “scripta” a lápis no canto superior esquerdo de uma das quatro versões do quadro apocalíptico: “Kan kun være malet af en gal Mand!” quer dizer que “só poderia ter sido pintado por um louco”. Não sei se pus as mãos nos ouvidos para não escutar Julie recitando em réquiem à filha – entre soluços azuis de luto afásico- estes re/versos soturnos de Pound (já Ezra, mamãe – “nunca mais!”): “Sol indo ao sono, sombras sobre o oceano/ Chegamos aos confins das águas mais profundas. /(…)/ Noite, a mais negra, sobre os homens fúnebres. /(…)/ Ouvir, ouvir o agitar do mar,/ Murmúrios, vozes de homens velhos: /(…)/ Braços entrelaçados do deus-mar,/ Sinuosos músculos d’água enlaçando-a,/ E o vidro cinzazul da vaga que os engolfa,/ Brilho azul de água, frio tumulto, denso abrigo”. Parece que foi nesta heterogênea “espiral de vozes” (ah, Barthes, chamei um e outro chegou junto) que escutei – entre reflexos e refrações no bakhtiniano espelho d’água das palavras anfíbias – Pound jogando dados intertextuais com Mallarmé sobre as indomáveis ondas discursivas: “Fantasma que no azul designa o puro brilho,/ Ele se imobiliza à cinza do desprezo”. Em contrapartida, acho que sempre achei que, para os “Amantes Azuis” de Chagall – amalgamados no imortal tempo mítico do amor (djavaneando que “o amor é azulzinho”) – não parecia haver mesmo tempo ruim: dá para ver que “O Violinista Azul” e a “Noiva com Vestido Azul”, como se ouvissem o suíngue do soul solar de Tim Maia, parecem ter achado a chave blue da felicidade eterna na tela. Se a “face azul” dela – afinal de contas, sob as impiedosas ondas – fosse sinal de cianose, ele beijaria em despedida seus lábios azulados de Ofélia russa, sabendo tragicamente impossível “Ver na vida algum motivo pra sonhar/ Ter um sonho todo azul/ Azul da cor do mar”. Não sei se havia pensado à época, mas penso agora, em todo o caso, que seria seguramente inverossímil que Zorg – não sendo mais crazy que a tresloucada caolha – cantasse para a musa muda Betty Blue – na surda desrazão opressora da camisa de força – o raso refrão ripongo de Walter Franco: “E o blues me faz feliz/ E o blues te faz capaz/ E o blues faz muito mais/ E o blues nos faz veloz”. Pareceria tão absurdo quanto se o humilhado Immanuel, tão germanicamente alheio – é claro – ao clima tropicaliente carioca, tentasse seduzir a cética Lola, tão friamente blindada contra as flechas de Cupido, com um típico hit oitentista de verão de Lulu Santos: “Tudo azul, todo mundo nu/ No Brasil, sol de norte a sul/ Tudo bem, tudo zen, meu bem/ Tudo sem força e direção”. Depois do “Trem Azul” descarrilar num mergulho mortal no mar profundo, enfim, o espírito santo azul-celeste de toda “Poliana” – ela ou ele – seria benditamente exorcizado pelo luciferino azul-marinho de Lautréamont: “Velho oceano, de vagas de cristal, tu te assemelhas proporcionalmente a essas manchas azuladas que se veem sobre o dorso machucado dos grumetes; tu és o imenso azul, aplicado no corpo da terra”. Devo ter sonhado que era aquele Hamlet com um crânio na mão do “Apólogo do Homem Louco” de Nietzsche, o mais poeta dos filósofos, que abraçou o pescoço de uma égua e lhe declarou “todo o amor que houver nesta vida”, como se ela fosse sua doce Cosima, a devotada esposa de Richard Wagner. Acho que o célebre crânio em minha mão esquerda era o de Roberto Piva, evocando o esfíngico alter ego do sinistro bruxo blue proto-surrealista: “Na esquina da rua São Luís uma procissão de mil pessoas/ acende velas no meu crânio/ (…)/ fogo azul de gim e tapete colorindo a noite, amantes/ chupando-se como raízes/ Maldoror em taças de maré alta”. Tenho a impressão de que ouvi pela orelha decepada de Van Gogh no terreno baldio de “Veludo Azul” a voz hamletiana do beat tupiniquim saindo da caveira nietzscheana na minha mão: “Eu era um pouco da tua voz violenta, Maldoror,/ quando os cílios do anjo verde enrugavam as/ chaminés da rua onde eu caminhava”. De repente – como acontece no cine-sonho – eu mergulhei – como Alice caindo no buraco – num poço e cheguei a Pepperland, paraíso perdido (ah, Milton!) a “80 mil léguas submarinas” (ah, Verne!), país das maravilhas (ah, Carroll!) onde sorrisos e notas musicais flutuavam num amplo espectro de cores vivas. Mas, como “tudo que é sólido desmancha no ar” (de Próspero a Marx, de Berman a Bauman), um golpe dos “camisas azuis” (como os fascistas salazaristas) deixou silenciosamente monocromática a Atlântida psicodélica. De repente – como num sonho que vira pesadelo – eu acordei e vi o azul da bandeira patriotária desfilando na Paulista: como a ficção imita a realidade, Benito Bolsonazi era – é, na verdade – o “Líder dos Maldosos Azuis”. Sempre achei que as hordas “drugues” bolsomínimas – na árvore “bárbara” da genealogia genocida, herdeiras de Átila, Ivan, Stalin e Hitler – teriam prazer também em queimar os azuis alucinados de Van Gogh, os azuis erotizados de Gauguin, os azuis plásticos de Matisse, os azuis melancólicos de Picasso e os azuis oníricos de Chagall, condenados como expressão da “arte degenerada”. Imagino horrorizado o gozo perverso dos neo-hunos incinerando também – na bizarra fogueira inquisitória da ignorância intolerante – os versos azuis de Mallarmé e Pound, de Lautréamont e Piva, de Álvares de Azevedo e Vicente Huidobro, botando fogo nas asas das araras-azuis e nas pétalas das hortências. Nesta “bad trip” distópica, o censor panóptico só aceitaria o asséptico azul mondriânico “sem partido”, as araras-azuis de pelúcia e livros institucionais de capa azul. Nada da esfíngica “flor azul” poética de Novalis, de beleza rara e indecifrável como o lírio azul e o jacinto azul: literatura, só nacionalista, escrita em caneta bic azul de concurso público; flor azul, só “fake”, fingida/tingida como a rosa azul ou a margarida de plástico no gabinete antiecológico do milico. Como se estivesse então num estado de vigília em face da facínora barbárie autoritária blue da Guerra Fria naqueles anos de chumbo verde-amarelistas, com o olho arrancado de Betty Blue e a orelha decepada de Van Gogh nas sessões de tortura da ditadura, “reouvivi” o depoimento trágico de Amelinha Teles: “O que afirmo é que meus filhos foram sequestrados. Ficaram dentro da Operação Bandeirantes (núcleo de repressão) e nos viram, tanto a mim quanto ao pai, sendo torturados. Eu estava sentada na cadeira do dragão (usada para choques elétricos) quando minha filha entrou na sala. O pai tinha entrado em estado de coma e estava se recuperando. Tanto é que meu filho perguntou ‘por que o pai está verde?’, e minha filha perguntou por que eu estava azul”. Não sei se repensando no “Nu Azul” dessa “Mulher Azul” de “Face Azul” – que não foi pintada por Henri Matisse, Pablo Picasso ou Marc Chagall, mas pelo coronel Brilhante (perverso oxímoro onomástico) Ustra no porão da repressão – repensei o aforismo cético do filósofo alemão Theodor Adorno (“depois de Auschwitz, a poesia é impossível”?), relendo a denúncia poética da polonesa Wislawa Szymborska: “Nada mudou./ Talvez os modos, as cerimônias, as danças./ O gesto das mão protegendo o rosto,/ esse permanece o mesmo./ O corpo se enrosca, se debate, se contorce/ cai se lhe falta o chão, encolhe as pernas,/ fica roxo, incha, baba e sangra”. Não haveria de não saber, evidentemente, que o hematoma roxo, no tétrico espectro de cores da paleta dos torturadores, resulta sempre da sinistra mistura do azul dos chutes – no fígado, no baço, nos rins – e dos socos – no estômago, no peito, na cara – com o vermelho do sangue coagulado. E que a cianose (a coloração azul-violácea da pele e das mucosas), pois, é marca indelével das insuportáveis agressões físicas, das esganaduras e afogamentos fatais: índice inequívoco das criminosas digitais do Estado de exceção. Sob as lentes moralistas “evanjegues” de milhares de Damares, o “Nu Azul” de Matisse seria uma libidinosa indecência, e “Os Amantes Azuis” de Chagall, uma pouca vergonha libertina comunista: “Pink” deveria se chamar “Blue”, porque “meninos vestem azul” e “meninas usam rosa”. Se a ministra da goiabeira tivesse assistido a “Cães de Aluguel”, de Quentin Tarantino, daria razão ao gângster homofóbico que protestou contra o codinome “Pink”: se tivesse visto – muito menos improvável, convenhamos, que tê-los compreendido – os filmes de Alan Parker, Jean-Jacques Beineix e Josef von Sternberg, defenderia enfática e fanaticamente frente às telas a censura sumária às tais obras “profanas”, sob a insólita alegação de que o triste “Pink” deveria se chamar “Blue”, a triste Betty deveria trocar seu nome para “Betty Pink” e o título da película expressionista, por fim, deveria ser “O Diabo Azul” (afinal, que “heresia” – prosseguiria a cruzadista evanjegue – batizar uma “dissoluta” cantora de cabaré de “Anjo Azul”!). Não sei se pensei, mas o fato é que deveria ter pensado que, naquela cena de “Pink” ensanguentado na piscina do hotel, o vermelho tingindo o azul poderia servir de pretexto para a propaganda reacionária antidrogas à juventude cult, para o discurso proibicionista institucional à classe média, endossando a política repressiva governamental. Não poderia já não ter pensado, evidentemente, que “A Liberdade é Azul” – na “Novilíngua” totalitária dos “Maldosos Azuis” – apenas para os tais supostos “arianos” de olho azul, para os sórdidos elitistas de farsesco “sangue azul”: ou seja, que na “câmara escura” ideológica, no “dark side of the moon” do mais profundo azul-escuro da cegueira da estupidez, é claro, a opressão é vermelha. Não sei se havia ouvido aí ecos das minhas réplicas imaginárias a Walter Franco e Lulu Santos, mas não poderia – com tanto “Pale Blue” nas pupilas dos tímpanos – olvidar a tréplica aguda ao fofismo pueril mpbístico em caixa alta e bom som: “o blues NÃO me faz feliz”; NÃO É POSSÍVEL “amanhecer num lindo blues”; NÃO ESTÁ “tudo azul (…)/ tudo bem, tudo zen, meu bem”. Vacinado contra a inocência azul-celeste, Lou Reed não tinha ilusão – como Julie e Lola também – de que não haveria de ser mesmo tragicamente impossível – “Linger on your pale blue eyes” – “permanecer em seus olhos azuis pálidos”: pelo embranquecimento da memória; pelo apagamento do desejo; pela inevitabilidade da morte. Não sei se pensei então que poderia dizer a Tim Maia que “Azul da cor do mar” não está para peixe, num monólogo existencialista nauseabundo à “Antoine Roquentin” de Sartre, repetindo numa festiva praia dominical interiorana que o mar só é azul e quente – traiçoeiro ilusionismo solar – à superfície; que as águas, no fundo, são sempre escuras e frias (acho que escutei reverberar aí o triste adeus “blues” do suicida de Camus, no último segundo do mergulho fatal – “A Queda” inexorável – “através do espelho” de gelo azulado do canal). Acho que, “todo envolto em meu olhar marinho” o frenético fluxo descontínuo da “espiral de vozes” intertextuais, veio à memória – “um lampejo aqui pensa em meus ausentes” – o mar renovado “em sua noite grávida de mármores”: o tal “novelho” (ah, Augusto de Campos, as ondas dialéticas do “novo no velho”) amoral “mar recomeçando sempre”, indiferente aos soluços salgados dos descendentes do impotente herói invejável que – também ele, suposto invencível “semideus”, impiedosamente engolido pela fúria azul – “dissolveu-se na mais espessa ausência”. Não poderia pensar com a cabeça de Julie, obviamente, o que não significa que não pudesse ter passado pela minha cabeça que ela poderia ter pensado que o último pensamento do marido se encerraria em inconformada exclamação: quantos “segredos deslumbrantes a meus olhos cegados”! Pensando nela pensando nele e na filha, e eu “em meus ausentes”, pensei hamletiano em outros versos blue do “Cemitério Marinho” – pouco importa se os nossos naufragaram na terra, não no mar (ou no ar) – de Paul Valéry: “Dos mortos, onde as frases familiares,/ A arte pessoal, as almas singulares?/ Tece a larva onde lágrimas nasciam”; “Que a estes meus olhos a onda e o ouro mostram?/ Quem não conhece e quem não repudia/ Esse crânio vazio, o riso eterno?”. Se tudo isso – e aquilo tudo – não me passasse pela cabeça cheia sob a lua cheia, enfim, talvez não tivesse pensado no crânio de Mallarmé na mão enlutada de Valéry em concha, recitando-lhe ao pé do ouvido que “no estéril areal de um deserto de dores” toda lágrima cai “em vão”, e “o azul triunfa e canta em glória”. Para “onde fugir?”, pois, é inútil indagar, “revolta pérfida e impotente”, já que tudo sempre soçobra: no fundo, sobra sempre só, em dízima monocromática (o título diz tudo) “O Azul! O Azul! O Azul! O Azul! O Azul! O Azul!”. Tomado pelo “Tédio, desolado por cruéis silêncios” de quem sequer mais “crê no derradeiro adeus dos lenços”, sabendo já inevitável “que os mastros, entre ondas más/ rompam-se ao vento sobre os náufragos”, que “nada, nem os jardins dentro do olhar suspensos” (ah, Piva, “um jardim azul sempre grande deitava/ nódoas nos/ meus olhos injetados”), “impede o coração de submergir”, ouvi de novo – sem “ilhas férteis” à vista – a melancólica “canção que vem do mar”: “Fugir! Fugir! Sinto que os pássaros são livres,/ Ébrios de se entregar à espuma e aos céus imensos”. Como quem sabe que “a carne é triste, sim”, e “eu [não] li [nem um milésimo de um bilionésimo de um trilionésimo de] todos os livros”, mas escutei o cheiro azul da “Brisa Marinha” do mestre Stephane ecoando – sob o duplo blue do “Cemitério Marinho” – na translúcida pupila do pupilo Paul: “Sim, grande mar dotado de delírios,/ Pele mosqueada, clâmide furada/ Por incontáveis ídolos do sol,/ Hidra absoluta, ébria de carne azul,/ Que te mordes a fulgurante cauda/ Num tumulto ao silêncio parecido,/ Ergue-se o vento! Há que tentar viver!/ O sopro imenso abre e fecha meu livro,/ A vaga em pó saltar ousa das rochas!/ Voai páginas claras, deslumbradas!/ Rompei vagas, rompei contentes o/ Teto tranquilo, onde bicavam velas!”. Acho que só a estas alturas das profundezas, “sob a linha hermética de separação entre a luz e as sombras” (René Char era o poeta preferido de Pablo Picasso), onde poderia “separar o sutil do espesso” (sob o olhar claro-escuro de Breton), para “ouviver” as sinestésicas correspondências (quem me dera, Baudelaire!) entre os mil tons azuis “na mais profunda e tenebrosa unidade/ tão vasta como a noite e a claridade”, poderia atar as pontas entre os poetas e Lautréamont. “Maldoror” – diria Piva, “em taças de maré alta”, tinha clareza do “imenso azul, aplicado no corpo da terra”; tinha ouvido como é triste a “canção dos marinheiros”, as “manchas azuladas que se veem no dorso dos grumetes”. Olhos nos olhos do azul hipnótico do “grande mar dotado de delírios”, das serpentes de ondas nos cabelos da “hidra absoluta, ébria de carne azul”, ouço ecos marítimos de Valéry em Lautréamont: “Velho oceano, tua forma harmoniosamente esférica, rejubilando o rosto severo da geometria, muito me lembra os pequenos olhos do homem, semelhantes aos do javali por sua pequeneza, e aos dos pássaros pela perfeição circular do contorno”. Vejo na tela da pupila do pequeno olho esférico de Betty Blue o triste fim de Uilgner Rodrigues, afogado no “Buraco Azul Caiçara”, em Cruz (sinal onomástico da tragédia), no Ceará. O turista foi engolido pelas águas turvas da lagoa parida pelas águas das chuvas, acumuladas no buraco formado pela retirada de barro para a construção da rodovia CE-182 (onde muitas “Julie” severinas choraram seus maridos, filhos, primos, amigos…). Acho que li nas redes que o pesquisador Fábio de Oliveira Matos, do Instituto de Ciências do Mar (Labomar – UFC) explicou que a tonalidade azul-turquesa não é da água, mas da mistura do calcário na areia com os reflexos solares no buraco da escavação. Aliás, nesse jogo – “azul puxa azul” – de memória, Álvares de Azevedo voltou à roda intertextual com Ezra Pound e Stephane Mallarmé: “Era um lago a dormir… na flor sereno!/ Porém sua água azul tinha veneno!”; “E o vidro cinzazul da vaga que os engolfa,/ Brilho azul de água, frio tumulto, denso abrigo”; “Vai-nos dilacerar de um golpe de asa leve/ Duro lago de olvido a solver sob a neve/ O transparente azul que nenhum voo aflora!”. Acho que havia ouvido o sopro de outro verso, eco de outra “Brisa Marinha”: “Fugir! Fugir! Sinto que os pássaros são livres,/ Ébrios de se entregar à espuma e aos céus imensos”. Parece que tinha visto de novo – revisto – Valéry lado “alado” com Mallarmé sobre/sob a imensidão azul (no intervalo tonal entre o celeste e o marinho): “Ergue-se o vento! Há que tentar viver!/ O sopro imenso abre e fecha meu livro,/ (…)/ Voai páginas claras, deslumbradas!/ Rompei vagas, rompei contentes o/ Teto tranquilo, onde bicavam velas!”. Com a cabeça tão cheia de mil tons blues, fazendo a cabeça com um cachimbo de haxixe na brisa do perfume das nuvens de fumaça no teto à meia-luz poundiana da “Lua crescente em águas azuladas/ Ouroverde em águas rasas”, quando “Um galo negro canta lá na escuma” do tímpano notívago, entrei na onda sinestésica do “cachimbo de ópio” de Theóphile Gautier, numa trip “azul-fumaça” de narguile de “Lagarta Azul” de Alice: “Eu estava estirado sobre um monte de almofadas e virava preguiçosamente a cabeça para trás para acompanhar no ar as espirais azuladas, que se dissolviam na bruma sedosa após terem rodopiado alguns minutos. Meus olhos dirigiram-se naturalmente para o teto, preto como ébano com arabescos dourados. De tanto olhá-lo com essa atenção estática que precede as visões, ele me pareceu azul, mas de um azul escuro como uma das abas do manto da noite (…). Ele ficava azul, azul como o mar no horizonte, onde as estrelas começavam a abrir suas pálpebras de cílios dourados; esses cílios finíssimos alongavam-se até encher o quarto de feixes prismáticos. Algumas linhas negras riscavam esta superfície azulada (…). Vi, então, pequenos flocos brancos que atravessavam o espaço azul do teto”. Pensando em Julie – “A Liberdade é Azul”? – e em Lola – quem seria “O Anjo Azul”? -, no olho arrancado de Betty Blue e na orelha jogada num terreno baldio em “Blue Velvet”, na face azulada do amigo de Picasso no caixão – o suicida Casagemas – e no azul gritante de Munch na ponte – sobre o cemitério – entre o matadouro e o hospício, na “Noiva com Face Azul” de Chagall e na “mãe azul” torturada por Ustra, nos hematomas azul-arroxeados no corpo brutalizado dos versos de Szymborska e nas marcas de cianose na pele e nas mucosas dos enforcados e afogados pelos algozes de farda verde, enfim, para “Onde fugir” quando “a carne é triste” e o azul “galga tua agonia”, quando “o azul triunfa e canta em glória”, amado amargo mestre Mallarmé? Talvez “Fugir! Fugir!” – porque “navegar é preciso” – seja isto: “Sinto que os pássaros são livres,/ Ébrios de se entregar à espuma e aos céus imensos”. Mesmo sabendo que “Nada, nem os jardins dentro do olhar suspensos/ Impede o coração de submergir no mar”, no fundo, em outras palavras poéticas (esfíngico-aforismáticas), eis a “Mensagem” de Pessoa a pessoas: “Navegar é preciso/ Viver não é preciso”. Divagando por tantos “mares nunca dantes navegados” (a rede intertextual – cruzamento de leituras – é tessitura pessoal e intransferível), escutei então a voz tonitruante de Saint-John Perse, de olho em suas míticas “Marcas Marinhas”: “Mas vós, que íeis temer da mensagem? temer de um sopro sobre as águas, e desse dedo de enxofre pálido, e dessa pura sementeira de minúsculos pássaros negros que nos atiram na face, como ingredientes do sonho e sal negro do presságio? (…) Para nós o Continente de mar, não a terra nupcial e seu perfume de feno-grego; para nós o livre lugar de mar, e não esta vertente do homem usual cegado de astros domésticos. E louvadas Aquelas conosco que, sobre as praias conspurcadas de algas como pocilgas desertadas, e no fedor sagrado que sobe das águas vastas (…) – e o mar revestindo sua cor de holocausto – terão sabido içar-se a mais altas vergas! (…) O mar em nós se levanta, como nas câmaras desertas dos grandes búzios de pedra (…). A chuva sobre o Oceano severo semeia seus malquereres-do-brejo: tantas vezes do deus se cerra a pálpebra (…). E essas coisas são pouco narráveis, e só de nós entrepercebidas… Antes calar-nos, a boca refrescada com pequenas conchas. Ó Viajantes sobre as águas negras em busca de santuários, ide e crescei (…). A terra das pedras despegadas vem por si mesma desfazer-se na vertente destas águas. (…) Os homens cheios de noite desertam as lavradas. Pesadas alimárias se orientam sozinhas para o mar. E que nos increpem, ó mar, se nós também não volvemos a cabeça!… A chuva salgada nos vem de alto-mar. E há uma claridade de água verde sobre a terra como se viu quatro vezes ao ano. Crianças, com as mais largas folhas aquáticas, nos tomareis também a mão nesta meia-noite de água verde”. Ver o verde aqui, entre mil tons de azul, me fez rever as combinações entre as cores primárias – e as secundárias – na rica paleta da natureza: da decomposição da matéria orgânica de algas e plantas é que resultam os pigmentos amarelos que se misturam ao azul, produzindo o efeito óptico verde; do mesmo modo que o azul-turquesa do “Buraco Azul Caiçara” é fruto do encontro das águas “blues” das chuvas com os raios solares e os tons amarelo-esverdeados/ verde-amarelados do calcário na areia. Não sei se pensei primeiro, por isso, que meus olhos nunca ouviram qual é a cor, afinal, do azul-piscina tingido com o vermelho-sangue de Pink em “The Wall”, mas meus ouvidos gestálticos viram a água ficar roxa; ou se antes pensei que o ex-Stones Brian Jones morreu afogado na sua piscina, e concluí que todo mundo que morre afogado – seja na piscina do hotel, do clube ou de casa; seja no mar, no rio ou no lago; seja por acidente, suicídio ou assassinato -, no fundo sempre chega – se volta – à superfície azulado. Acho que tinha lembrado – que pesadelo! – que tinha achado absurdo ter que explicar a diferença entre o “afogado azul” e o “afogado branco” numa prova de Medicina Legal, quando cursava – desacorçoado – Direito. Deve fazer três décadas que deixei a pergunta em branco, porque não sabia que “branco” é o morto que foi jogado na água morto, e que “azul” é o defunto asfixiado pelo azul: em outras palavras, ignorava que a ausência de cor (sem ignorar que “branco” não é cor) é índice de outra provável morte forjada no blue – líquido e certo – para parecer mais um trágico afogamento acidental. Não podia dizer que deu branco, porque não podia passar em branco a “Operação Condor”, os vis (g)aviões das ditaduras latinoamericanas sob a batuta de rapina da “bright white eagle”, que arremessavam sadicamente (o pleonasmo não basta!) presos políticos – torturados, e ainda vivos – em alto-mar. Embora já soubesse que vários corpos chegaram – mortos não nadam – às areias atlânticas dos balneários argentinos de Mar del Tuyú e Santa Teresita (a 200 km de Buenos Aires), não sabia que, antes de enterrados em covas anônimas do cemitério de General Lavalle, legistas haviam dito que a causa mortis tinha sido o “choque contra objetos duros desde grande altura”. Isso quer dizer que repensei a cor dos “afogados”, e deveria ter dito naquela prova que o “branco” não só poderia ter sido jogado morto na água, mas também ter morrido no baque com o sólido azul (moral da queda, no caso: quanto mais próximo do “blue sky”, mais duro o “blue sea”). Deveria ter dito também, em contrapartida, que o “azul” poderia ter morrido afogado mesmo, lançado pelos abutres do “Para-Sar” tão distante da costa e bem perto do mar (quanto mais longe do céu, mais líquido o azul), ou até perder o ar num tanque, barril ou banheira num dos sórdidos subterrâneos da repressão. Se eu fosse professor de Medicina Legal, teria perguntado à classe qual seria a diferença entre a “mãe azul” e o “pai verde” aos virgens olhos violentados dos filhos de 4 e 5 anos: quem diria qual é o tom da vertigem, quem saberia dizer a cor da barbárie? Em todo caso, sei que já sabia faz tempo que todo hematoma se forma pelo sangue extravasado com a ruptura de vasos, depois de um “trauma”: como uma porrada, por exemplo, ou golpes de porrete – nas costas, no peito, nas pernas, nos braços, no rosto. Não sei se foi quando apanhei pela primeira vez de cacetete da Tropa de Choque, num protesto político, que comecei a prestar atenção às mudanças de cores e tons nos hematomas: no princípio, o vermelho sanguíneo, logo após a lesão; nos três dias seguintes, a coloração entre o azul e o roxo, devido às alterações bioquímicas na hemoglobina (molécula presente nos glóbulos vermelhos); por volta do quinto dia, a fim de remover o sangue empoçado, a biliverdina e a bilirrubina dando às manchas tonalidades esverdeadas e amareladas. Acho que a “mãe azul”, portanto, devia estar no início da segunda fase; e o “pai verde”, pois, no começo da última. O fato é que, se não me faltasse não só talento artístico, mas também fígado, e não parecesse impossível descrever o indescritível, enfim, gostaria de fazer um filme, escrever um poema, cantar uma canção ou pintar uma tela, traduzindo um pouco mais – ao menos – de tudo isso e aquilo. Mas com que olhos poderia ver para crer que ainda há para “onde fugir” – “Fugir! Fugir! – quando – de asas podadas, entre grades de gaiolas, sem a “Brisa Marinha” azul nas penas – nem “os pássaros são livres”? Confesso que às vezes sinto que ouço com um e outro “Pale Blue Eyes” de “Betty Blue”, como quem vê com uma orelha de “Blue Velvet” e outra de Van Gogh o gosto trágico do cheiro de “Araçá Azul” nos lábios blues dos afogados, reverberrando nos tímpanos das pupilas de Santa Teresita, em ondas de – en las olas del – Mar del Tuyú: a memória é azul. Acho que pensando nisso e naquilo é que acabou vindo à lembrança também que “araçá”, em tupi, é “planta que tem olhos”; e que, para os tupinambás, “Araçá Azul” – no princípio, não era o título do quinto disco do já velho baiano, ou/viu? – era a “Mãe do Sol”. Nas marés imprevisíveis das memórias sinestésicas, navegando “sob a linha hermética de separação entre a luz e a sombra” (lembrei que já disse – nesta polifônica “espiral de vozes” defuntas – que René Char era o poeta preferido de Pablo Picasso) entre as ilhas sensíveis e as inteligíveis dos “sentidos” (entre parênteses, porque em duplo – múltiplo – sentido), não poderia deixar de escutar a voz fantasmática daquele ainda jovem tropicalista, sem olvidar jamais que os tais míticos guerreiros antropófagos – tão atentos e fortes que não tinham “tempo de temer a morte” – estão todos mortos: “Araçá Azul /É sonho-segredo/ Não é segredo/ Araçá azul fica sendo/ O nome mais belo do medo/ Com fé em Deus/ Eu não vou morrer tão cedo”. Não sei se estava com uma caveira hamletiana na mão e uma ideia heraclitiana na cabeça, enfim, quando pensei que uma orelha nunca ouve duas vezes a mesma canção, bem como um olho nunca vê duas vezes a mesma paisagem, porque o mesmo azul é sempre outro “blues”. Em outros termos dessa monocromática equação, embriagado de fé ou de saco cheio de desilusão, viajando a pé, a nado ou de avião, vencendo no primeiro tempo ou derrotado na prorrogação, marinheiro de primeira viagem ou viajado capitão, navegando a favor da maré ou remando na contramão, inexperiente ou experimentado jogador, se é fato que a morte manda recado e não faz favor, que ela não pede licença e não aceita perdão, matando empregado e não poupando patrão, vencendo ancião de sorte ou jovem azarão, “um lance de dados jamais abolirá a razão”. Sei bem que, bem no fundo, já sabia – nem sempre soube, é bem verdade – que quase todo mundo parece que ainda não sabe que, se todo mundo – de “morte morrida” ou “morte matada”, mais cedo ou mais tarde – sempre morre, é tudo verdade: mesmo Homero, que contou a morte de Aquiles, não sobreviveu para cantar a própria morte; mesmo Picasso, que pintou “A Morte de Casagemas”, não sobreviveu para pintar a própria morte; mesmo Kieślowsky, que filmou o luto e a liberdade de Julie, após a morte do marido e da filha, não sobreviveu para filmar, após o luto da filha e da esposa, se “A Liberdade é Azul” – até que enfim – para elas ou para si mesmo; mesmo Walter Franco, que cantou que “o blues é azul”, não sobreviveu para contar se “é bom” morrer e “poder cantar/ em qualquer tom”, como quem sabe “voar/ além do mar/ além do som”, a “mergulhar/ em pleno ar/ em plena luz”, livre para finalmente “sentir o céu/ se transformar/ num lindo blue”. Tudo isso e aquilo trouxe à tona de novo (um homem nunca mergulha duas vezes no mesmo “Cemitério Marinho”) o verso da última estrofe de Valéry – “Le vent se lève…! Il faut tenter de vivre!” – em duas releituras: “Ergue-se o vento! Há que tentar viver!”; “Levanta-se o vento… é preciso viver!”. É como se o inconsciente enviasse uma “mensagem cifrada para a atividade consciente traduzir” (Mário de Andrade me sopra no olvido), pondo-me diante dos olhos impressionistas o quadro “A Fuga de Rochefort”, de Edouard Manet: “Fugir! Fugir!” das garras de Napoleão III, insubmisso marquês Henri de Rochefort-Luçay, com as forças redobradas pelos espíritos revolucionários da Comuna de Paris, desafiando a remo as ondas furiosas – “Navegar é preciso” – da “Hidra absoluta, ébria de carne azul”. Sob os ventos blues da memória intertextual, como se embalado por um feixe febril de ilusão de uma rota apaziguante rumo a algum porto ao menos menos inseguro – talvez aquele ponto azul utópico que Vincent ou/viu sob a luz solar de Arles -, escutei a “mensagem” visionária de Artaud: “Mas como fazer um sábio compreender que há algo de desregrado no cálculo diferencial, na teoria dos ‘quanta’, ou nas obscenas e totalmente litúrgicas ordálias da precessão dos equinócios – por meio daquela coberta rosa-camarão que Van Gogh tão docemente realçou num ponto escolhido de sua cama, junto com uma pequena insurreição verde-veronese, azul-temperado deste barco diante do qual uma lavadeira de Auvers-sur-Oise interrompe o trabalho, em nome também deste sol aparafusado detrás da esquina cinzenta do campanário da vila, apontando lá embaixo, ao fundo”. Não havia pensado, antes de pensar nisso e naquilo tudo – ouvivendo os timbres dos tons das palavras azuis nas telas das pupilas dos tímpanos -, que o “suicidado pela sociedade” teria decepado a orelha para dizer a Lola que não podia fugir ao desamor, tão desgraçadamente como a fria dançarina de cabaré, mariposa que jamais fugiria à triste luz do “Anjo Azul”. No breu noturno da alma, então, os corvos me gritaram cores desesperadas, em trágica réplica, nesta carta a Theo: “Em meu quadro ‘Café à noite’, procurei mostrar que o café é um lugar onde a pessoa pode se arruinar, enlouquecer, cometer crimes. Enfim, tentei pelo contraste de rosa suave e de vermelho-sangue e borra-de-vinho, de doce verde Luiz XV e veronese, contrastando com os verde-amarelos e os verde-azuis duros, tudo isto numa atmosfera de fornalha infernal, de amarelo-enxofre pálido, para exprimir o poder das trevas de uma taverna sórdida”. O fato é que, bem no fundo dessas profundezas inaudíveis, queria poder dizer-lhes – quem nos dera aquele verbo alquímico rimbaudiano “acessível a todos os sentidos”, Antonin! – que “é assim que a luz da vela vibra, que a luz do castiçal aceso sobre a poltrona de palha verde vibra como a respiração de um ser que ama ao lado do corpo de um doente adormecido”. Confesso que gostaria também que Zorg pudesse ouvir “o manuscrito encontrado numa garrafa” (ah, Edgar Allan Poe!) com o olho arrancado da náufraga Betty Blue, o que não pareceria tão delirantemente impossível quando não se pode fugir à força impetuosa dos ventos tempestuosos de Vênus. Em outras palavras, não seria absurdo sentir que tudo isso e aquilo é tão “humano, demasiado humano” – ao fundo, o grito dos corvos loucos de Nietzsche em Turim – como a convulsiva pena sensível do “ouvidente” Artaud radiografou – “quando se possui ouvido suficientemente aberto para perceber o avanço da pororoca”. Acho que só pensei agora em Van Gogh cantando – “triste, triste” – ao pé do ouvido da Lola que trocou seu blue pelo azul de Gauguin – se não fosse branco, holandês e fosse Bessie Smith -, estes tristes versos de “Blue Blues”: “Blue, blue, I got to tell you, I’m blue/ (…)/ Listen to my story, and everything will come out true”. Pensei que não teria achado, aliás, se não tivesse pensado nisso, que o olho arrancado de Betty Blue poderia ter gritado estes re/versos ao pé da orelha decepada de “Blue Velvet”, no mesmo agônico tom rascante de “Down Hearted Blues” da negra que morreu – como o marido e a filha de Julie – num trágico acidente de carro: “I’m so disgusted, heartbroken, I’ve got those down hearted blues”. A propósito dos aparentes despropósitos das associações (sob a transparência aristotélica, a opacidade constitutiva), ouvindo Bessie e repensando os sutis tons de azul intraduzível – é claro – nesta turva paleta memorialístico-intersemiótica, embora tenha achado curiosamente sintomática a ambígua “coincidência”, a esta altura não haveria de ter ficado propriamente surpreso com o monocromatismo do tradutor automático/autômato do Google – revelador “ato falho”, signo da impotência do signo – em “I feel blue, I want someone to cheer me”, do blues “He’s gone blues”: em vez de “Eu me sinto triste, eu quero alguém para me animar” – veja bem, com os ouvidos blues da alma -, “Eu me sinto azul, eu quero alguém para me alegrar”. Acho que, bem no fundo, ainda que não soubesse – conscientemente, evidentemente – que já tinha achado que, se Lola, Betty Blue ou Julie cantassem esse verso na língua de “Água Viva” de Clarice, o som do azul reverberraria quase melancólico como “O Grito” do norueguês esquizofrênico entre o matadouro e o hospício, no meio da ponte sobre o cemitério, numa desesperada busca terminal do vento perdido em algum lugar do passado para adiar a queda em bemol (quem saca as pontes – “pensa sentindo” o abismo interdito sobre a falha dos sentidos – dispensa as aspas). “Tudo isto, em meio a um bombardeio meteórico de átomos”, diria Artaud, “num formidável incêndio de restos carbonizados de jacinto opaco e touceiras de lápis-lazúli”, antes do “organista de uma tempestade detida, pacificada entre duas tormentas”, mandar um balaço no próprio baço: “A ponte de onde temos vontade de mergulhar o dedo na água, num movimento de regressão violenta a um estado de infância (…). A água é azul, não de um azul de água – de um azul de pintura líquida”. É como se, no fundo, sempre soubesse que ele sempre soubera que a insaciável “hidra absoluta, ébria de carne azul”, no fim de jogo sádico do sétimo selo (precisa pôr Beckett e Bergman entre aspas?), sempre estivera à espreita, mas o doutor Gachet e Theo pareciam não ver (ou/viam a imagem invertida na “câmara escura” do discurso psiquiátrico, como Zorg) a paleta dos hematomas: “Você talvez chegue a ver (…). O jardim de Daubigny, primeiro plano de mato verde e rosa. À esquerda, uma moita verde e lilás e um caule de planta de folhagem esbranquiçada. Ao meio um canteiro de rosas, à direita uma cerca, um muro e, acima do muro, uma aveleira de folhagem violeta. Depois uma sebe de lilases, um renque de tílias redondas amarelas, ao fundo a própria casa, cor-de-rosa, coberta de telhas azuladas. Um banco e três cadeiras, uma figura negra de chapéu amarelo e, em primeiro plano, um gato preto. Céu verde pálido.” Sei que seria evidentemente impensável achar que Lola e Julie pudessem pensar – tampouco Zorg acharia – que “vem de Deus/ Do céu ficar azul/ Ou virá dos olhos teus/ Essa cor que azuleja o dia”: penso, todavia, se “Le vent se lève”, e fugir é preciso – como Rochefort – porque, afinal de contas, “Il faut tenter de vivre!”, que paisagem haveria de seduzir o olho de Betty Blue, que canção encantaria a orelha de “Blue Velvet” (ou ao olho que lhe restou; e a orelha, a Van Gogh)? Quando penso que acho que, no fundo, diria que “navegar é preciso”, mesmo se perdesse um olho e me faltasse uma orelha, não sendo ela nem ele, acho que acabei repensando como seria “ouviver” tudo aquilo e isso sob o trágico espectro prismático entre ondas graves e agudas navegando na neblina da catarata de Claude Monet: “Sinto que se eu der um passo, vou cair no chão. Perto ou longe, tudo é deformado e dúbio. Enxergar dessa maneira é intolerável. Persistir parece perigoso para mim. Se eu estava condenado a ver a natureza como a vejo agora, preferiria continuar cego e manter as memórias das belezas que sempre enxerguei”. Não sei como seria não enxergar com os dois ouvidos ao mesmo tempo, não escutar com os dois olhos simultaneamente: com o esquerdo não operado, os tons eram amarelo-amarronzados; com o direito “afácico”, via tudo azul. Lembrei que, quando era adolescente e ganhei de meu pai um livro em inglês sobre o impressionismo francês, fiquei impressionado com a tela “Water-lilies, harmony in blue and violet”, sem ter a menor ideia de que o pintor enxergava tudo borrado. Pensei que pode ter sido pensando também na cianopsia do olho sem cristalino do mestre de Giverny que Gaston Bachelard “escreviveu” sobre o azul turvo em seus quadros: “Um dia, Claude Monet quis que a catedral fosse verdadeiramente aérea – aérea em sua substância, aérea no próprio coração de suas pedras. E a catedral tomou da bruma azulada toda a matéria azul que a própria bruma tomara do céu azul. O quadro de Monet está todo animado por essa transferência do azul, por essa alquimia do azul. Tal espécie de mobilização do azul mobiliza a basílica. Sinta-a, em suas duas torres, tremer com todos os seus tons de azul no ar imenso; veja como responde, em suas mil nuanças de azul, a todos os movimentos da bruma. Ela possui asas azuis, azuis de asa, ondulações de asas”. Pensando sobre todos esses tons de azul (o azul-escuro, como o azul-marinho, e o azul-claro, como o azul-turquesa e o azul-celeste), e ponderando sobre seus nomes em diferentes línguas (o título do filme de David Lynch, em inglês, é “Blue Velvet”; o de Josef von Sternberg, em alemão, é “Der Blaue Engel”; Mallarmé escreveu, em francês, “Le Bleu”), veio à memória Artaud se referindo – na tradução de Ferreira Gullar – às “touceiras de lápis-lazúli” de Van Gogh. Lembrei, então, que já havia pesquisado – não lembro quando, tampouco por que estava interessado na etimologia das cores – sobre a origem da palavra “azul”, e descobri que ela veio do árabe “al-lzaward”, emprestada do persa “ljward”, denominação primeva da pedra lazurita, cuja forma latina seria “lápis-lazúli”: assim é que teria surgido, pois, “azul” em português e espanhol, e “azzurro” em italiano. Na língua de Dante, contudo, existe também a palavra “blu”, que corresponderia ao tom mais escuro de nosso azul-marinho: não gostaria de ter recordado agora, aliás, pela milésima vez, da inesquecível trágica derrota da seleção brasileira de Telê pela tal “Squadra Azzurra” na Copa do Mundo de 82… Em busca da matriz etimológica da cor, lembrei também que, apesar de ser língua latina, o francês bebeu de outra fonte azul: o “bleu” – de onde viria, curiosamente, o “blue” do inglês – nascera do protogermânico “blaewaz”. Tonto de tanto azul na cabeça, enfim, as curvas da memória me levaram ao clima tenso das provas primárias, secundárias e universitárias, quando “nota azul” significava êxito, e “vermelha”, fracasso: a distância entre a aprovação e a reprovação era demarcada cromaticamente. Na paleta semântica dos liceus italianos, em contrapartida, a tinta azul era sinal de insuficiência: as respostas equivocadas dos alunos eram sublinhadas como “errori blu” (erros graves). Um turista brasileiro em viagem à terra de Federico Fellini, por exemplo, precisa abrir os olhos ao volante, como um turista italiano na terra de Glauber Rocha, para não confundir “Zona Blu” com “Zona Azul”: na terra de Michelangelo Buonarroti, “Zona Blu” indica uma área de circulação restrita, de acesso proibido a veículos não autorizados; na terra de Tarsila do Amaral, “Zona Azul” significa perímetro controlado de estacionamento rotativo – pago, é claro – em determinados dias e horários. Na língua de Janis Joplin, “I’m feeling blues” quer dizer “eu estou para baixo, eu me sinto triste”; na de Roberto Carlos – que só usa azul (sua cor da sorte e da veste da Virgem Maria) -, a expressão “tudo azul” (na boca de Lulu, que tem “Santos” no sobrenome) é outro modo de comunicar que “tudo está muito bem” –  “graças a Deus, muito obrigado” (na dicção dos “caracóis” de Veloso, “tudo é divino maravilhoso”). Acho que, pensando nisso e naquilo, acabou rolando Stones com “I Got The Blues”, e a língua de Mick Jagger na orelha da minha memória, cantando os versos “Feelin’ low down, I’m blue” e “I’ve got the blues for you”, e acabei pensando que, quando se diz que se sente para baixo, o “blue” é um estado – consumado, pois – de tristeza: a expressão “to be blue” se traduz como “estar triste”. Já em “eu fico triste/ eu me entristeço por você”, o “blue” implica o processo, o percurso passional, a transformação de estado do sujeito (a insegurança, a perda, a falta do objeto): “to get the blue”, afinal, significa “ficar para baixo, tornar-se triste”. O que quero dizer com isso é que não poderia dizer que é porque “out of the blue” quer dizer “de repente”, “do nada”, que foi “do nada”, que pensei “de repente” que, em francês, a expressão “avoir une peur bleue” equivale à italiana “prendersi una fifa blu”: ou seja, “ficar amedrontado/ morrer de medo”; “ficar assustado/ morrer de susto”. Em outros termos, não teria sido “out of the blue” que, pensando nisso, pensaria de novo na camisa da “Azzurra”, lembrando também que os franceses, também uniformizados de azul, são conhecidos pelo epíteto patriótico de “Les Bleus” (mais “azuis” até que os italianos, que não têm a cor na bandeira): na Copa da Espanha de 1982, já aos cinco minutos do primeiro tempo, Paolo Rossi mostrou aos amarelinhos, no Estádio Sarrià, o angustiante sentido de “prendersi una fifa blu”; na Copa da França de 1998, aos vinte e sete e aos quarenta e cinco minutos do primeiro tempo, Zinedine Zidane calou os canarinhos, no Stade de France, traduzindo na rede o desesperador significado de “avoir une peur bleue”. Isso me fez pensar que, em ambos os quadros, “tudo azul” significa que só a “Azzurra” e “Les Blues” poderiam dizer que foi “tudo divino maravilhoso”: acho que inclusive Roberto Carlos, se estivesse com o indefectível azul naquelas arquibancadas verde-amarelas, voltando duplamente de olho roxo para casa, duvidaria da sorte – quiçá até se curando do incurável “toc” monocromático. Piadas à parte, acho que não é piada que, se fosse hoje, a massa patriotária – achando provocação – perseguiria Djavan se ele cantasse “Se acaso anoitecer/ Do céu perder o azul/ Entre o mar e o entardecer/ Alga marinha vá na maresia/ Buscar ali um cheiro de azul/ Essa cor não sai de mim”: esse “azulzinho”, diriam os amarelinhos, se não saísse de fininho, sairia na marra – na porrada. Não lembro exatamente quando – mas certamente já embriagado de tanto blue – pensei que Fabiano, Sinhá Vitória, os meninos e a cachorra Baleia sabiam que as “aves de arribação” escreviam no “céu azul” o aviso da seca no sertão: se “a carne é triste”, Mallarmé, para “onde fugir”? Reli então a saga dos “Retirantes” de Graciliano Ramos – “Fugir! Fugir!” – na tela ossuda de Cândido Portinari, revendo a dura “forma de fome” na espinhosa “servidão de passagem” – ah, Valéry, “le vent” não se ergue, but “Il faut tenter de vivre”! – de Haroldo de Campos: “mosca anil?/ mosca vil./ mosca azul?/ mosca mosca./ (…)/ o azul é puro?/ o azul é pus/ de barriga vazia”. Não sei se já estava dormindo, ou se seguia revivendo o pesadelo distópico na vigília, repensando como seria possível de fato “navegar”, se o sertão não virou mar, e o mar virou sertão? Como deveria interpretar a esfíngica “Mensagem” de que “viver não é preciso”, mas “é preciso viver!”, quando não há “água verde” para mergulhar no sonho, nenhum “azul da cor do mar” para mergulhar no amor “azulzinho”? Parece que deliro com a caveira hamletiana de Nietzsche na mão esquerda, vendo tudo com o olho arrancado de Betty Blue numa das órbitas ocas e o olho operado de Monet na outra, ouvindo os gritos do “pai verde” e da “mãe azul” com as orelhas decepadas de “Blue Velvet” e de Van Gogh, segurando as ideias na cabeça com os outros cinco dedos para não ficar louco. Ah, Pink, quanto sangue seria preciso derramar para tingir de red o límpido azul do “Mar Vermelho”? Aliás, pensando em tudo isso e refletindo sobre aquilo tudo, acho que achei ainda mais nítida – mais trágica, claro – a sarcástica ironia onomástica que faz muito mais juz – signo de seu triunfo voraz – ao epíteto de “hidra absoluta, ébria de carne azul”: é que, em meio à poeira desértica amarela do Oriente Médio, com salinidade dez vezes superior à dos oceanos – o que torna inviável qualquer forma de vida -, há um “oásis” de tonalidade azul-clara, fatalmente batizado de “Mar Morto”. Que me perdoem, todavia, se parecer que estou querendo dizer que, se – bem no fundo – não há mesmo nada de novo sob o sol, porque – bem no fundo – não se pode fugir para sempre da morte, não há por que fugir: o que quero dizer, na verdade, é que – se pudesse escolher – preferiria a morte no bucho de uma gigante baleia azul do que sob a bandeira azul de um nanico Bonaparte. Ou seja, se o melhor – o impossível – seria mesmo não morrer, muito pior seria deixar a vida sob a espada do menor “Malvado Azul” (com pouco mais de um metro e meio e sessenta quilos) do que me render à bocarra do maior dos mamíferos (com cerca de trinta metros e cento e oitenta toneladas). Como se pudesse pescar o maior atum azul do mundo (com três metros e sessenta e cinco centímetros e setecentos quilos, nadando a quarenta quilômetros por hora à profundidade de mil metros), degustando o mais saboroso sashimi com o supremo amor “azulzinho”, ouvivendo o sublime som marinho do “Violinista Azul” de Chagall numa sinestésica gôndola, sob o excelso azul-celeste polinésico de Gauguin – “E La Nave Va”…

 

 

(Para Mariana Ferraz, Marco Antônio de Carvalho, Marcelo Ribeiro, Marcelo Mendonça e Gustavo Galo)

(In Memorian: a Antonio Medina Rodrigues, Ivan Teixeira, Carlos Felipe Moisés, Ricky Scaff e Marco Aqueiva)

 

 

 

 

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Paulo César de Carvalho nasceu em São Paulo em 22 de abril de 1970. É bacharel em Direito e mestre em Linguística pela USP, professor de Gramática, Interpretação de Texto e Redação do curso Anglo Vestibulares, co-autor do material de Língua Portuguesa do Sistema Anglo de Ensino, autor dos livros Tópicos de Gramática e Tópicos de Interpretação de Texto e Redação (Editora CPC – www.cpc.adv.br ou livraria@cpc.adv.br). Escreveu em coautoria o material paradidático Arte e Cultura nos Anos 60 (Editora Anglo). Foi editor do boletim Texto & Cultura, colaborador das revistas Discutindo Língua Portuguesa, Discutindo LiteraturaArte & InformaçãoLivro Aberto e Libertárias e consultor da TV FUTURA no programa Tá Ligado? Foi curador da exposição Linguaviagem (organizada pelo Museu da Língua Portuguesa e Ministério das Relações Exteriores), que abriu em 2010, em Brasília, o Congresso dos Países Lusófonos. Sua dissertação de mestrado intitula-se Fragmentos epistolares de um discurso amoroso: elementos para uma análise semiótica do estatuto do gênero “carta de amor”. Tem poemas publicados no livro Na virada do século – poesia de invenção no Brasil (Landy Editora) e na antologia portuguesa Poezz (Almedina). Em 2010, lançou o livro Toque de Letra (editora nhambiquara). É vocalista e letrista da bandaOs BabilaquesTem parcerias com Tatá Aeroplano, Gustavo Galo e Cabelo (Trupe Chá de Boldo), Pélico, Juliano Gauche, Carlos Zimbher, Reynaldo Bessa e Wella Borges Costa. E-mail: carvalho70@gmail.com




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