Heteronímia de Raimundo de Moraes


Sobre tríade ou a heteronímia de Raimundo de Moraes/Semíramis/Aymmar Rodriguéz

.

O segundo livro do poeta Raimundo de Moraes, Tríade, traz-nos a reflexão sobre o fenômeno da heteronímia na literatura. Segundo a Wikipedia:

Heteronímia[1] (heteros = diferente; + ónoma = nome) é o estudo dos heterónimos, isto é, estudo de autores fictícios (ou pseudoautores) que possuem personalidade. Ao contrário de pseudónimos, os heterónimos constituem uma personalidade. O criador do heterónimo é chamado de “ortónimo“. O maior e mais famoso exemplo da produção de heterónimos é do poeta português Fernando Pessoa, criador de Ricardo Reis, Álvaro de Campos e Alberto Caeiro.Sendo assim, quando o autor assume outras personalidades como se fossem pessoas reais. (WIKIPEDIA, 2010)

Isso significa que, para cada nome assumido, há um “eu’ poético diferente, com estilos literários também diferentes. Não encontrei isso, porém, em Tríade, o que não significa ser um livro ruim. Na verdade, há “eus” poéticos diferentes, sim, mas não tão peculiares que corresponderiam a outros pseudoautores. Segundo o autor, teríamos a seguinte divisão do livro: primeira parte, homoerótica (Aymmar Rodriguéz); segunda parte, neutra ou masculina (Raimundo de Moraes); terceira parte, feminina (Semíramis). Diferentemente de seu primeiro livro, Baba de Moço (Recife: Livrinho papel Finíssimo, 2010), em que o autor assina como Aymmar Rodriguéz, que assumiu uma postura explicitamente homoerótica, em Tríade, Moraes fala com eu poético feminino, masculino ou mesmo neutro. Analisemos alguns versos de ambos os livros:

Por favor/ pare agora/ senhor juiz/ seu caralho é muito grande/e meu          casamento é amanhã. (CLEMÊNCIA – Baba de Moço, p. 17); Por que/ não me beijas a boca, virgílio?/ aqui não somos sodomitas. (DANTE ENTRANDO NO PARAÍSO – Baba de Moço, p. 22); O que restou da paixão/o verão sugou/ numa grande esponja amarela/ Meu pau e minha alma/ cheiram agora a patchouli. (LAST SUMMER – Tríade, p. 20); Teu fruto/ (eu lembro)desfibrava fácil/ e a carne vinha mole entre os dentes./ As enxurradas vieram/ omo baladas rápidas de ávidos curumins./ e os pássaros vieram sujos/ de Bering ou Marrakesh./ As águas chegaram. Outra vez, perenes/Levando retratos, remexendo sulcos de discos esquecidos/ evocando perfumes suaves de roupas e camas./Ah por que entre os verões o manancial da tua boca? Por que esses perfis de narizes e lábios/ entre o abandono de girassóis que já não buscam mais?/ Por que a frase que tu queres e que não está em mim? (SEMENTE – Tríade, p. 60)

Por essas breves passagens, podemos perceber os “eus” homoerótico (os três primeiros) e feminino (o último). Isso não caracterizaria uma heteronímia, posto que o poeta, ele mesmo, possui diversas facetas e as apresenta em sua poesia, assumindo ora um, ora outro papel. Fosse assim, todos os poetas seriam heterônimos! Uma observasção se faz importante nesse sentido: nenhum dos três prefaciadores – a não ser a do livro de SEMÍRAMIS, Cida Pedrosa, discorre criticamente Se há ou não heteronímia. Nem mesmo Fábio Andrade, crítico, poeta e professor de Letras da UFPE. Cida, na verdade, implicitamente, concorda com minha opinião, ao afirmar:

Não quis entrar aqui em discussões sobre o que é ou não heterônimos. Recebi Semíramis como se recebe um poeta desconhecido e assim li o seu texto, espero que tenha conseguido. Mas não há como me distanciar do todo deste livro chamado Tríade e sobre o qual quero tecer um único comentário. É um livro que, apesar da linguagem diversa, em decorrência de seus amores distintos, tem como base a absoluta desenvoltura no fazer poético e no domínio da construção do verso. (TRÍADE, p. 80 – grifos nossos)

Mas, deixando de lado essa discussão, o novo livro de Moraes supera a autoria um tanto panfletária e até um pouco apelativa de seu primeiro livro. Há versos extremamente bem construídos, que, mesmo seguindo a linha homoerótica, não caem no sectarismo. Eis um excelente exemplo disso: as reinterpretações parafrásicas do Pai-nosso e do famosos poemas As três mulheres do sabonete Araxá, de Manuel Bandeira, a quem, sem dúvida, o poeta reverencia:

Corpos nossos/ que estão arfantes/ santificados sejam os vossos gozos/ Venham a nós os vossos prazeres/ Sejam feitos/ os nossos desejos/ aqui no leito/ou lá no hão/ o orgasmo nosso/ de cada dia/ nos deem hoje/perdoem as nossas fraquezas/ como nós perdoamos/ a quem não tem fornicado/ Não nos deixem, corpos, insatisfeitos/ e livrai-nos de todos os maus amantes/ Amém. (CORPOS NOSSOS – Tríade, p. 18); As três mulheres do sabonete araxá me deixam louco/Ah, o cacarejo desse desafinado trio/No rush das cinco e meia da tarde! / Entre buzinas e semáforos/Elas requebram suas ancas/numa simetria balofa de bundas e peitos/A minha pobreza pelas três mulheres do sabonete Araxá!/ Que outros, não eu, o dedo chupem/para brutais se masturbarem/por essas acéfalas nacaradas/mulatas mal-resolvidas disfarçadas com pó-de-arroz Promessa![…] Se a segunda casasse/ eu renderia graças ao deus Pintão/Se a terceira morresse eu me converteria/ A quê? Nãos sei/ Se me perguntassem: queres roubar do governo?/ /queres um triplex na Vieira Souto?/ Queres comer a Globeleza?/ eu responderia: nada disso, concupiscente!/eu só quero que morram e que se fuckem/ as três mulheres do sabonete Araxá! (AS MUSAS BORBULHANTES – Tríade, p. 29)

Repare o leitor: ambos os poemas são da primeira parte do livro, sob autoria de AYMMAR RODRIGUÉZ. Se, no primeiro poema, há uma bem-construída paródia do pai-nosso, a oração mais venerada pelos cristãos e, portanto, uma crítica implícita ao moralismo dessa religião, onde fala um “eu homoerótico, no segundo, se não um “eu’masculino, existe pelo menos um neutro – o “pintão” a que se refere o autor pode ser atribuído ao membro sexual feminino em tamanho exagerado; portanto, ao heterônimo que corresponderia o homoerotismo, temos versos que encarnam outro heterônimo – que seria o de Semíramis ou Raimundo de Moraes.

Da mesma forma que Corpos nosso, Teresa em êxtase é um poema que trabalha com o ascetismo/misticismo peculiar de Santa Teresa D’Ávila, dada a arrebatamentos e levitações extraordinárias, a quem alguns consideram ter sido ela uma estérica; mas que outros, como Lucila Nogueira, admitem haver em seus versos, como os de São João da Cruz, um  fenômeno literário, o amor erótico-místico pelo divino:

O meu Cristo/grita palavrões/ e quando me fode/ eclodem aleluias/ Lambo como hiena/Seu corpo de chagas/ Que Mostro a língua/como naja/ Ardo. (TERESA EM ÊXTASE – Tríade, p. 23)

Mas há outros aspectos interessantíssimos a destacar em Tríade. O humor e erotismo,lógico, são marcas constantes do autor, em quasiquer de seus “heterônios”:

Pela estrada afora/ euvou tão sozinha/ levar Lexotan/ para a vovozinha/ Ela mora longe/ o caminho é deserto/ nem trombadinha nem lobo mau/ passam aqui por por perto. (URBANIDADES/PROFUNDA SOLIDÃO – Tríade, p. 36); Escreavos de Jó/ moravam na Caxangá/ Batiam ponto, largavam tarde/ Mas às vezes sobrava tempoQ pra uma sacanagem:/ tira, bota, deixa o Zé mané/ chupar. (URBANIDADES/TROCA-TROCA – Tríade, p. 37)

Um poema que me chamou a atenção foi o dedicado a Clarice Lispector, em que o poeta fala em tom de tristeza da trajetória dessa poeta-prosadora brasileira, por acidente nascida na antiga União Soviética. São emocionantes e pulsantes esses versos, que falam inclusive de costumes e instrumentos judaicos, como lemos abaixo:

Segui os passos/ da menina de Tchetchelnik./ Dez luas passaram flechadas por Sagitário/ Maçãs no claro ofertam-se de tanta maturação:/ ensanguentadas, reluzem. Balançam lustres/ em dindlens de poeira suja./ Aqui/ a Praça Maciel Pinheiro/ circunda o tempo./ O casarão 387/ é agora insípida e laranja/(mas vi entre uma e outra janela/ a menina sorrir para mundos distantes)./[…] É por ti:/elevo-me á tua memória./ Candelabros iluminando a noiteQ o Kaddish arrebanhando os perdidos como nós/ – percorro os caminhos d amulher de Tchetchelnik./ O olhar oblíquo/A boca rubra./ A safira no dedo./ a Estrela de Mil Pontas/ rompendo gargantas. É palavra./ Apenas Sagitário mais uma seta em riste./ Agora, sabeis: no coração selvagemente livre. (ELEGÍACA – Tríade, p. 61-62)

Há dois poemas que destacaria como lamentos do poeta perante o mundo atual. A desumanidade, tão cantada por poetas como Wellington de Melo no seu Desvirtual provisório (2008), afeta o poeta e o faz chorar. Esses versos estão em livros – ou autores – diferentes, Raimundo de Moraes e Semíramis, respectivamente:

Esse jogo de amar: a Poesia./ Não quero mais./ Armem o puzzle por mim./ Não quero mais,minha vida./ (Por mais que uma noite/ sepulte averdade de um homem/amanhã acordarei lúcido novamente)./ Não mais perseguir os ídolos de pés de barro/ nem beijar as mãos de pedras/ nem correr entre sombras/ que me enganam em seus domínios./ Não quero mais, vida minha./ Só a força dos meus amantes. (EM FINAL, – Tríade, p. 72); Sou prisma e penembra/ autogênese e destruição/ pupilas que sefecham/ em cada sonho cremado/ no arrebol./ Os caminhos parecem irreais/ nos travesseiros fofos/ nosbarbitúricos/ no vermute seco./As palavras me impulsionam/ para abismos deescarpas agudas/- o ofício é Arte/Catarse oudharma/ plástica densa/ que em papel disfarça a dor. (O DESTINO ESCRITO NAS ESTRELAS – Tríade, p. 85)

Sem falsa modéstia aqui, leitor, compararia alguns dos poemas de Raimundo de Moraes com os meus, em meu único livro lançado até hoje, Oficinas do Corpo (Olinda: Livro Rápido, 2002), que tem alguns apelos eróticos também. Destacaria dois meus e dois deles, para o leitor perceber assemelhanças – e lógico deferenças entre nós, como seguem nos versos abaixo:

Aqui os derrradeiros momentos/Dos nossos apocalipses:/As bocas que entredevoram o medo/As carnes suadas nas carícias de beijos./Quis teu corpo./As palavras que, sei,/Nunca irás dizer./O chulo escondido nos sorrisos/A devassidão que não viverá./Sou puta que entregou-se aos homens/no templo da deusa/ e que recolheu os óbolos/ paraas profecias. (RASCUNHOS NAS RUÍNAS DO TEMPLO – Tríade, p. 90); Este milagre dentro de mim/eu o trago em hábitos/de púrpura e linho./Tudo que me cerca/ é ouro e prata./ E são anteriores ao meu milênio./Seguro o oceano/e tiro dele o segredo:/vasos de barro em tecidos orientais./ Cavo a serenidade do abismo/que desapareceu nas sombras/ desse sol oriental./ Ando pelas ruas de Moscou/ com a certeza de ser estrangeiro./Tenho a grande alegria/ de tocar a música de meus antepassados (NASCIMENTO DO POEMA – Oficinas do Corpo, p. 13); Como a esfinge/apareço ao dia/ renovado em milênios/ sem memórias,/ na gargalhada em que me vejo/ te esqueço um pouco./Arde tua ignorância por não saber/ minhas aras/ se me entendes/ então outra cara tenho (OFERENDA – Tríade, p. 83); É a arena em seus covis?/ São as mulheres que cantam/ carregando seus potes/ de barro?/ Ou minha loucura/ aplaudindo o deus vivo?/Quebrei unhas em seu dorso/ Bebi suor/ Seu cheiro é igual/ ao dos mercadores/ e dos jardineiros do pátio/ levito, sem os panos/ Na cruz, Ele se ergue nu/Circundado de promessas/ – como é longa a fé/ que me consome agora! (TERESA EM ÊXTASE – IV – Tríade, p. 26); Mulheres brancas de Itapissuma,/que levais em vossos ombros suados?/ Beijos e choros dos homens/de vossas vidas./ Mulheres brancas de Itapissuma,/ queria ter a alvura de vossos turbantes,/ a coragem que puxa madrugadas,/ arrasta horas em chãos lavados,/ mesa pronta, cama forrada./ Mulheres brancas de Itapissuma,/ este ônibus me leva/ a caminhos seguros./ Para onde vão vossos carinhos,/ mulheres de turbantes brancos, /de alvos turbantes que escondem idéias/e frustrações./Mulheres brancas de Itapissuma, foi a maré que limpou/ vossas mazelas,/ enchendo vossos seios de leite,/ vossas pernas de viço?/ Dai-me vossos turbantes, /mulheres brancas de Itapissuma,/ Itamaracá, Igarassu./ Vossos turbantes alvos/vão clarear meus destinos opacos. (DESFILE DAS MULHERES BRANCAS DE ITAPISSUMA – Oficinas do Corpo, p. 16)

Há pouco, escrevi uma resenha sobre uma excelente poeta, mas desconhecida do grande público – talvez por sua timidez, Lenilde Freitas; lendo os versos de Moraes, me veio a lembrança talvez da mesma louca que o inspirou. Ele, como ela, enxergou também na figura da louca da esquina a poesia mais refinada e sugestiva da vida? e agora transcrevo:

Não tenho medo de amar./ Talvez eu seja hoje/a mendicante louca/ a perder-se entre o vau e as árvores./ Sem cajado. Sem ume./ E se perco o caminho/ encontrarei outras verdades./ E serei tudo. E serei lua. (ODE NAS SOMBRAS – Tríade, p. 100); Lá vai a louca daminha rua/Caminhando nas extremidades afiadas/Do mundo./Anda no escuro/A louca de minha rua./Nenhum raio de sol tira das trevas/Essa mulher que passa/ cuspindo a alma/Que sente sair da boca/Cheia de saliva/Na areia da razão cuspo também:/O instante, a aflição e a lucidez de estar viva. (PORQUE É ASSIM – A Corça no Campo, p. 43)

Por fim, para não cansar o leitor com tamanhas citações, poderia afirmar que Raimundo de Moraes/Aymmar Rodriguéz/Semíramis é autor de genuíno talento. Nele, o desejo é matéria de poesia, de trabalho, de suor. Pois, como bem atestou Fábio Andrade em prefácio ao segundo livro – Raimundo de Moraes, podemos afirmar: No desejo se inscreve a potência subversiva da poesia – um desejo que desafia o ritmo cíclico e cristalizado das coisas, e também as idéias e sensibilidades estanques. É nesse sentido que se deve ler o homoerotismo de Raimundo de Moraes, integrando-o a uma visão mais ampla do ato poético de como materialização do desejo, acento humano demasiado humano, que assinala a nossa separação do curso impessoal dos ciclos, de uma ordem previamente fixada. (MORAES, 2010, p. 48). Raimundo de Moraes, original, corajoso, traz á tona discussões sempre tabus em nossa sociedade – desejo e erotismo, sem deixar de lado o primor dos versos, trabalhando-os como um artesão da palavra.

 

 

 

REFERÊNCIAS

CERVINSKIS, André. Oficinas do Corpo. Olinda: Livro rápido, 2002.
FREITAS, Lenilde. A Corça no Campo. Recife: Ed. da autora, 2010.
MELO, Wellington de. Desvirtual provisório. Bauru: Canal 6, 2008.
MORAES, Raimundo de. Tríade. Recife: Facform, 2010.

 

 

 

 

 

 

 

 

.

André Cervinskis é jornalista, ensaísta, mestre em Linguística pela UFPB. Produtor cultural, com vários projetos aprovados pelo FUNCULTURA-PE na área de Literatura. Com várias premiações nacionais e internacionais, tem 13 livros publicados em autoria própria e coautoria. Colabora com o site Interpoética e o jornal U-carboreto, ambos de Pernambuco, e o periódico Correio das Artes na Paraíba. Mora em Olinda-PE e teve avós lituanos. E-mail: acervinskis@gmail.com




Comente o texto


*

Comente tambm via Facebook