Guimarães Rosa e a Ditadura


(Rosa, ladeado por Rachel de Queiroz, no Conselho Federal de Cultura; segundo à direita dele, Ariano Suassuna)

 

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Duzentos e quarenta e seis mortos. Foi este número de vítimas feitas pelas tropas dos Estados Unidos, em um dos mais famosos combates da Guerra do Vietnã, a Batalha de Trà Bình, ocorrida em fevereiro de 1967.

Apenas dois meses após o ocorrido, o Congresso de Escritores Latino-Americanos era realizado em Guadalajara. Diante do conturbado cenário mundial, a delegação dos escritores de Cuba e do Panamá aproveitou o momento para marcar posição e soltar o verbo.

O vice-presidente do Congresso de Escritores era o brasileiro João Guimarães Rosa. Ao ouvir os colegas protestarem, Rosa não se manteve impassível. Divergiu deles.  A edição do Jornal do Brasil noticiou: “Rosa se retira de congresso latino americano por críticas aos Estados Unidos”. A nota explicava: “o escritor brasileiro João Guimarães Rosa renunciou à vice-presidência do Congresso de Escritores Latino-Americanos, devido a uma divergência sobre se a organização pode ou não intervir em assuntos políticos”. Rosa disse ainda, conforme registro do Jornal do Paraná, que os escritores se reuniram para discutir assuntos culturais e não política internacional.

Política e literatura eram moda em 67. No mês anterior, acontecia o Congresso de Escritores Soviéticos. Convidado a comparecer, o escritor francês Jean-Paul Sartre recusara. O motivo? A prisão dos escritores Andréi Siniavsky e Yuli Daniel pela União Soviética.  Pouco mais de um mês depois, os russos fizeram o que os latinos não conseguiram em seu congresso e assinam uma nota na qual pedem: “a cessação imediata e incondicional dos bombardeios contra o Vietnam do Norte”

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Escrevo este post após ler o artigo “Para quem escreve o autor local”,  da editora Luciana Villas Boas.

O texto é longo.

Só há um trecho que me interessa – e que motivou minha pesquisa para este post. Reproduzo-o aqui.

“(…) Era uma sociedade polarizada politicamente e muito mais literária. De minha infância no seio de uma família politizada mas não de intelectuais —o pai jornalista, leitor de marxismo e reportagens, a mãe dona de casa com boa leitura dos clássicos e de tudo que lhe caísse nas mãos—, lembro de discussões furiosas com as tias lacerdistas sobre a posição de Rachel de Queiroz frente ao golpe de 64, ou sobre a conveniência de Guimarães Rosa assumir a cadeira da Academia Brasileira de Letras quando a ditadura fechava o cerco sobre a instituição (…)”.

 

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Vamos aos fatos. Rosa foi eleito para a Academia, em 1963. Época em que o presidente era João Goulart.

Não faço muita idéia do que seja “a ditadura fechava o cerco sobre a instituição”.  Por suprema ironia, no aludido ano, 67, quando Rosa toma posse, sobre o qual Villas Boas alega haver um cerco, o presidente Castello Branco assina um decreto-lei doando o imóvel em que a ABL era sediada, na avenida Presidente Wilson, 231. (confiram aqui o decreto)
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As relações de Rosa com a ditadura não se restringiam a posse a uma instituição supostamente “ameaçada de cerco” pela ditadura – a mesma ABL que em 1970, acolheu entre os seus imortais o general paraibano Aurélio de Lyra Tavares, que assinava poemas sob o pseudônimo de “Adelita”, e compôs o triunvirato da Junta Militar que em 1969 assumiu a chefia do Executivo após a morte de Costa e Silva.

Naquele mesmo 1967, em um dos seus últimos atos, Castello instituiu o Conselho Federal de Cultura, órgão criado no governo Jânio, existente no de Goulart, redimensionado na ditadura. Rosa integrou-o ao lado de outros intelectuais da época como Ariano Suassuna, Rachel de Queiroz, Josué Montello, entre outros. Em seu primeiro ano, o Conselho recebeu verba, ofereceu parecer (favorável) para o acordo ortográfico, criou concursos literários (ao todo 9, com publicação em dinheiro no valor de 20 salários mínimos) e avaliou pedidos para ações culturais provenientes de todo o Brasil.

Mais do que mero órgão encaminhador das questões culturais, o Conselho chegou, por duas ocasiões (meu recorte é apenas o seu primeiro ano de existência, período em que Rosa atuou) a protestar, publicamente, contra o Governo. A primeira, quando houve o impedimento do filme de estreia de Bressane, “Cara a Cara”; a segunda, quando a censura recaiu sobre  “Terra em Transe”, de Glauber Rocha.

Apenas quatro dias após abandonar o Congresso de Escritores, em 24 de abril, Rosa, na sessão do Conselho, defendeu o amigo cineasta numa sessão na qual – diga-se – todos os conselheiros foram unânimes contra a censura.   A edição do Jornal do Brasil assim noticiou a intervenção do autor de Grande Sertão:

“O escritor Guimarães Rosa se manifestou a favor do óbvio, mas ponderou sobre a forma de o conselho se conduzir, ‘porque somos uma entidade que está se apresentando ao Brasil, embora dê um cheque assinado ao portador para Glauber Rocha, meu amigo pessoal e que tem aspectos geniais’.

Afirmou ainda que se deve pensar no grande investimento financeiro que faz um diretor de cinema, e que essa violência poderia ser um desestímulo para Glauber Rocha, o que significa uma medida anticultural”

(escritores almoçam com Castello na José Olympio; Rosa está à direita do marechal)

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Quando aconteceu o golpe, em 1964, Rosa atuava como chefe da Divisão de Fronteiras e lá ficou. Não o incomodaram. O presidente Castello Branco apreciava sua companhia. No dia 9 de março de 1965, o marechal apareceu na José Olympio, maior editora do país. No almoço, o presidente foi fotografado com Rosa à sua direita (trago a imagem do livro de memórias de Rachel de Queiroz, reconheço que não é uma boa reprodução).

“O presidente tomou a famosa batida de limão preparada por Adelardo Cunha e repetiu um prato de carne-seca, que deu a nota nordestina ao almoço: à saída, fez questão de cumprimentar Antônio Vieira, também personagem da Editora. A visita durou horas, ficando o Presidente de voltar “um dia desses, sem aviso prévio” – registrou a nota Informe JB, de Pedro Gomes.
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………..(Castello comendo carne-seca no almoço da José Olympio)

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Além de representante brasileiro no Congresso de Escritores Latino- Americanos, Rosa integrava o corpo diplomático do Itamarati. O órgão passava por estudos para se fazer uma “nova linha de ação”.  Fora escolhido para ser o responsável pela Programação Cultural. O Brasil caminhava para o terceiro ano de sua ditadura militar com o segundo marechal na presidência, Arthur da Costa e Silva.

É possível dizer que Rosa, que se empenhara em salvar judeus da Alemanha nazista, era um colaborador da ditadura? Deixo a pergunta aos que lidam com o passado sem compreender suas complexidades e servindo dele apenas para encenações de suas fantasmagorias.

Finalizo com outra nota, esta última saída na coluna de Wilson Figueiredo, em 25 de maio de 1964, pouco tempo depois do golpe: “almoçando ontem com Oto Lara Resende e Antônio Calado, no Cabaça Grande, Guimarães Rosa – enquanto atacava um peixe com mariscos – ficou sabendo que a casa de Oto tinha sido varejada pela política. Recém-chegado da criação literária, pensou que tivesse sido na manhã de ontem. Calado e Oto, admiradores fanáticos do épico do ‘Grande Sertão’, acham que ele tem todo o direito de não saber o que se passa no mundo da objetividade”

 

 

 

 

 

 

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Astier Basílio é escritor e jornalista. Editor do blog “Museu das grandes novidades”<http://museudas.tumblr.com/> em que escreve sobre assuntos relativos à ditadura militar. E-mail: astierbasilio@gmail.com

 




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