Frida Kahlo: maravilhosa e visceral



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Que maravilha!

A exclamação acima aparece o tempo todo nos diários de Cristovão Colombo e foi usada para descrever os primeiros contatos do navegador genovês com o novo mundo. Colombo imaginava ter encontrado o próprio Éden, tamanhas eram as maravilhas com que seus olhos se depararam, quando as caravelas aportaram por aqui. Séculos mais tarde, o escritor cubano Alejo Carpentier (1904-1980) aplicou o conceito de maravilhoso à realidade do continente americano e à Arte produzida nele. Para Carpentier o mágico, o absurdo, ou, se preferirem, o surreal, em nosso continente, é parte integrante do cotidiano e da realidade. Aqui, diferentemente do que ocorre na Europa, consciente e subconsciente se fundem num só, num todo, não há uma divisão. Concreto e magia estão abraçados. Ser e ente estão entrelaçados. Fatos históricos e fenômenos naturais comprovam a maravilha de nosso continente. Basta-nos observar as linhas de Nazca, ou a arquitetura maia, ou ainda o  Titicaca,  lago navegável mais alto do mundo e berço da civilização Inca, pra ter certeza de que nossa realidade é surreal.

A mestiçagem é outro componente que nos torna um povo, de certa maneira, mais ligado à magia e ao “absurdo”. Fruto dessa mestiçagem, a nossa religiosidade, por exemplo, é misto de rituais africanos, europeus e indígenas, e faz do universo fantástico sua espinha dorsal. O vodu haitiano, ou o candomblé baiano são testemunhos do quão arraigado está em nossa carne o ilógico, o onírico e o fantástico. Não como algo que deva ser jogado no porão, mas como móvel a ser exposto no centro da sala.

É no sentido formulado por Carpentier que o “Maravilhosa” do título vem adjetivar Frida Kahlo (1904-1954), pintora “surrealista” mexicana. Diferentemente do que ocorre com os pintores surrealistas europeus, mais notadamente o expoente Salvador Dali, que têm grande influência e tremenda assimilação das teorias freudianas, em Frida o surrealismo parece ser algo intrínseco, quase que naïf, como se, para ela, aquela fosse a única maneira possível de se expressar e de pintar. Em Frida o ilógico é a única lógica. As metáforas parecem brotar tanto do centro de sua Terra, (observar os quadros O abraço amoroso entre o Universo, a Terra, (México), Eu, o Diego e o senhor Xólotl (1949), Flor da vida (1943), e O Sol e a vida (1947)) quanto de dentro dela mesma (observar as telas O veado ferido(1946) , Árvore da esperança (1946), A coluna partida (1944).
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O abraço amoroso entre o Universo, a Terra, (México), Eu, o Diego e o senhor Xólotl (1949)

 

…………………………………..Flor da vida (1943)

 

………………………………….O Sol e a vida (1947)

 

………………………………O veado ferido(1946)

 

 

………………………………A coluna partida (1944)
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Se prestaram atenção, o título deste Ensaio tem dois adjetivos, um deles, maravilhosa, já foi explicado. Para explicar o outro adjetivo: visceral, vamos ter de dar uma pincelada em alguns dados biográficos da artista. Frida Kahlo teve uma vida recheada de dor. (É possível criar sem sofrer?) Filha de pai epiléptico e de mãe extremamente religiosa, a pintora, aos seis anos, teve poliomielite, o que a deixou com uma perna mais fina que a outra e com o pé esquerdo atrofiado, além de lhe render o apelido de “perna de pau” na escola.  Aos dezoito anos, Frida sofreu um acidente de automóvel, que lhe esmagou a coluna vertebral e lhe deixou impossibilitada de ter filhos. Tudo isso, mais as dúvidas quanto à própria sexualidade e mais a questão da identidade são temas constantes na obra da artista.  As telas são vísceras, dores e sentimentos expostos. Para mim, a grande Arte é movida muito mais pela paixão que pela razão, e Frida faz isso: sua obra é puro fogo, tão íntima, tão pessoal, tão “ego”, que se torna universal, humana, “self”. As telas são todas representações de fatos, opiniões, sentimentos e situações pessoais. As cores nos seduzem pelo coração e não pelo intelecto.

Outro aspecto importante que não poderia ser deixado à margem é a questão da Arte feminina. Frida Kahlo é uma das primeiras pintoras a abordar de fato questões relacionadas ao universo feminino, como a maternidade, ou a impossibilidade da maternidade, por exemplo, (ver a tela Nascimento (1932)) ou ainda a questão da violência contra a mulher, que a pintora retrata tão bem na tela Uns quantos golpes (1935).
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………………………….Nascimento (1932)

 

……………………………..Uns quantos golpes (1935)

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Todo artista tem aquelas obras que de fato são fora do comum, realmente impressionantes e que nos deixam boquiabertos. No caso da pintora mexicana, as duas obras de tirar o fôlego são a já citada A coluna partida e As duas Fridas (1939). Pintada pouco depois do divórcio da pintora com o também pintor Diego Rivera, a tela As duas Fridas é um auto-retrato composto por duas personalidades diferentes. Neste trabalho, a artista trata das emoções envolvidas na separação. A parte de si que era respeitada por Diego Rivera é a Frida mexicana, com trajes pré-colombianos e com uma pequena fotografia nas mãos, enquanto a outra Frida, não tão respeitada assim, leva um vestido branco mais europeu e a tesoura ensangüentada no colo. Os corações das duas mulheres estão expostos e são ligados apenas por uma artéria. A parte européia da pintora corre o perigo de se esvair em sangue até a morte, pois uma das veias de seu coração, embora meio que obstruída, ainda sangra, manchando de vermelho o belo vestido branco. Na tela  A coluna partida, a pintora se nos entrega inteira. Dilacerada. Com a coluna partida pelo acidente de ônibus e a pele cravejada de pregos. É a própria personificação do sofrimento.
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……………………………..As duas Fridas (1939)

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É difícil pra mim, quando estudo a obra de Frida Kahlo, não estabelecer um paralelo com a canção Beatriz, do Chico Buarque. Se repararmos nas expressões faciais da maioria das telas da artista, perceberemos uma certa imparcialidade, como uma atriz que se despe de si mesma para melhor se enxergar. Olhando somente para seu rosto, fico imaginando, “Será que ela é triste / Será que é o contrário / Será que é pintura… / E se eu pudesse entrar na sua vida…” Então me deparo com o quadro A Máscara (1945), que inverte o principio da máscara, onde encontramos a verdadeira Frida, nua e desesperada: lágrimas na face.  E eu posso entrar na vida dela, mesmo vinte e tantos anos separando sua morte do meu nascimento. Hoje escrevi essas linhas só pra dizer a ela que a amo e a entendo. É pouco eu sei, mas “Se um dia ela despencar do céu /  e se os pagantes exigirem bis / e se um arcanjo passar o chapéu…” quero estar por aqui e ter mãos carinhosas e  palavras doces na língua pra dizer a ela.

 

 

 

 

 

 

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Daniel Lopes, publicou os livros É preciso ter um caos dentro de si para criar uma estrela que dança e Pianista Boxeador. E-mail: danielopes26@yahoo.com.br




Comentários (6 comentários)

  1. CHICO LOPES, Frida é de fato maravilhosa, e é interessante a maneira como você explorou o conceito de maravilha no contexto latino-americano. O impacto dos quadros de Frida é sempre renovado, ainda que, à primeira vista, ele pareça se esgotar. Também gostei do filme que Julie Taymor fez dela, com Salma Hayek no papel principal e Alfred Molina como Rivera.
    21 junho, 2012 as 14:36
  2. Gláuber, A obra de Frida Kahlo é fascinante. Ótimo ensaio.
    21 junho, 2012 as 15:20
  3. Roseli Pedroso, Daniel que belo texto para falar um pouco sobre essa estupenda artista. Sou apaixonada por sua obra mas principalmente, apaixonada por sua vida, suas experiências, a mulher que foi. Muito já li a respeito dela e sempre me comovo. Ela sempre será um tema inesgotável.
    21 junho, 2012 as 15:27
  4. Fernando Rocha, Já li seus contos e poemas, dos quais gostei muito, mas seus ensaios são excelentes, sem as caretices do mundo acadêmico, mas também sem o desleixo do senso-comum. A história desta artista é fascinante, uma vida de dores e arte. Será que é sempre assim?
    21 junho, 2012 as 21:47
  5. Daniel Lopes, Pessoal, obrigado pelos comentários.Frida é mesmo fascinante. Chico, tb gostei do filme.
    22 junho, 2012 as 20:49
  6. Sandra Zilda, Aristóteles escreveu: a poesia é mais filosófica e de um gênero mais nobre que a história, pois a poesia se eleva até o geral, enquanto que a história não é senão a ciência do particular.É nesse particular que insere a história da América. O Fato Histórico é um espetáculo dado pelas sociedades, as viagens representam um inventário do espaço, antes de se tornarem geografia e antropologia.Méliés desenvolveu a técnica de filmar a fantasia e Frida com toda dor e sofrimento imprimiu sobre as tintas sua fantasia e seus sonhos, sua particularidade a colocou na vanguarda artísitica de sua época. Relacionar a Históriada América com as pinturas de Frida foi uma feliz escolha. O texto não tem o ranço de um ensaio acadêmico, mas não perde o fio da meada do que vc pretende transmitir. Dor e sofrimento tão presentes na obra de Frida é como escreveu Griffith: Deus não se impõem ao homem, mas o deixa livre para encontrá lo. Foi o que Frida fez. Parabéns pelo texto. Adorei.
    18 novembro, 2012 as 22:09

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