Fervor de Buenos Aires



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Esqueça as muitas paixões do povo argentino. Nada de tango, de futebol, de milongas, de alfajores de doce de leite, de psicanalistas. Nem mesmo a política e a admiração interminável que os argentinos têm por seus presidentes são mais calientes. Nem mesmo entre os adeptos de “Santa Evita” ou de “São Maradona”. Pelo menos não em Buenos Aires – a mais europeia das cidades da América. É a literatura e suas histórias que ainda queimam por aqui. É este magma que corre nos Cafés e em suas inúmeras livrarias.

É assim que nos sentimos quando entramos nos bonitinhos táxis pretos e amarelos. O motorista logo percebe que nosso fotógrafo é espanhol e engata um papo animado sobre Madri e suas semelhanças com Buenos Aires. Os portenhos gostam de falar, são, como já disse algum escritor, “fiéis cultivadores da conversação”. Sim, estamos aqui, em Buenos Aires, e esta cidade me toca como o diabo.

Falando nele, aqui se oculta a divindade, diziam os latinos antigos quando atravessavam um bosque denso e misterioso. Não é uma frase qualquer. A mesma foi emulada por Jorge Luis Borges ao voltar para a sua Buenos Aires, depois de passar muito tempo vivendo na Europa com a família, e não a reconhecendo.

Somos tentados a repetir a fala de nossos antepassados linguísticos, e a de Borges, ao caminhar por estas ruas míticas de uma Buenos Aires que ainda nos comove como se fossemos crianças, assombrados pelas memórias que ainda emanam destas calles notabilizadas pelas vivências e criações de tantos heróis literários.

Vários deles nasceram, cresceram, tomaram seus cortados ou passaram algum tempo percorrendo Buenos Aires enquanto escreviam um parágrafo e outro, tecendo obras que marcariam a literatura e o mundo para sempre. Nomes que já fazem parte de nossa memória coletiva: o já citado Borges (para mim, o maior de todos), Julio Cortázar, Bioy Casares, Ernesto Sábato, Oliverio Girondo, Evaristo Carriego, Robert Arlt, Manuel Puig, Tomás Eloy Martínez, o espanhol Federico Garcia Lorca, o francês Antoine de Saint-Exupéry, o polonês Witold Gombrowicz, entre tantos outros.

Talvez por conta dessa diversidade literária e cultural, Buenos Aires tenha sido designada pela Unesco, em 2011, de a Capital Mundial do Livro. A cidade comemorou o fato com uma Torre de Babel, criada pela artista Marta Minujín, de 25 metros de altura e composta por 30 mil livros. A torre não está mais lá, mas o orgulho cultural desta cidade ganhou eventos, visitas guiadas para conhecer o que eles chamam de Caminho das Letras (lugares onde seus escritores viveram, escreveram, ou simplesmente papearam). Seus Cafés foram mapeados e, hoje, fazem parte de um circuito de Cafés Notables. Suas livrarias foram catalogadas. São muitas. Só no bairro de San Telmo contamos mais de 10.

Certa vez, o escritor argentino Tomás Eloy Martinez comentou que as donas de casa de Buenos Aires compravam O Jogo da Amarelinha, de Cortázar e Cem Anos de Solidão, de Gabriel Garcia Marquez, como se estivessem comprando talharim ou alface. Acho que ele exagerou um pouco, hoje não é mais assim, mas a julgar pelo número de livrarias ainda existentes na cidade isso bem pode ter sido verdadeiro. Há bem pouco tempo, Buenos Aires tinha mais livrarias do que o Brasil inteiro. E, infelizmente para o Brasil, isso não era mito. Era real.

No site oficial de turismo da Cidade de Buenos Aires (www.bue.gob.ar) estampa-se com orgulho as imagens de Borges, Cortázar e Arlt. A cidade tem razão quando diz que milhões de leitores no mundo jamais pisaram no Parque Lezama, mas o conhecem por meio da leitura de Sobre heróis e tumbas, de Ernesto Sábato. Ou que o charmoso bairro de Palermo seja conhecido por muitos por conta de Borges ter morado e escrito lá um de seus poemas mais famosos, A fundação mítica de Buenos Aires. Os livros e os escritores refundam a cidade constantemente.

 

Os caminhos que se bifurcam

Mas, por onde começar nesta cidade planificada, com ruas compridas que seguem adiante e permitem que miremos um bairro distante como se estivéssemos em um exercício plástico de profundidade?

Elegemos nosso marco zero. Tem que ser no centro, mesmo que em uma metrópole esse conceito seja muito relativo. Por sinal, Borges nasceu no coração da cidade, como ele mesmo diz, na rua Tucuman, 840, entre as ruas Suipacha e Esmeralda, numa casa sem pretensão. A casa não existe mais. Então nosso marco zero será outro. A rua Maipú, 994. Foi lá a última residência de Borges e onde produziu a maior parte de sua obra. Do terraço de seu apartamento, enxergava (tanto quanto a degeneração genética de sua retina o permitiu) as árvores da Praça San Martín e se acalmava na absolvição dos jacarandás e acácias. Gostava de caminhar pela praça com seu amigo Bioy Casares, parceiro de várias jornadas literárias e existenciais.


rua Maipú, 994
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Quase todas as tardes, Borges saía de seu apartamento e atravessava a rua, em direção a Galeria del Este, na Maipú, 971, onde se encontra a Libreria la Ciudad, sua livraria preferida. Nela, ele autografou muitos de seus livros ou passava horas explanando sobre seu assunto predileto, por supuesto, a literatura.

A livraria ainda está lá, meio abandonada, distante dos tempos efervescentes do Café de las Artes ao seu lado e que já foi o ponto de encontro cultural mais quente da cidade, na década de setenta. O antigo dono, Luis Alfonso, já falecido, foi amigo pessoal de Borges e promoveu alguns encontros e noites de autógrafos memoráveis. Dizem que Borges, quando estava quase cego e incapaz de escrever por conta própria, ditava suas histórias para um funcionário e até para a esposa de Luis.
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Na entrada da Galeria encontramos uma placa, Los senderos de Borges, com um roteiro biográfico e literário. Com ele anotado, você pode traçar uma viagem detalhada em torno de Borges e de seus mitos. Até a localização exata de o Aleph, aquele ponto ‘onde estão, sem se confundirem, todos os lugares do mundo’, citado por Borges em seu conto de mesmo nome, está apontado. Em uma famosa entrevista, Borges ironizou alguns jornalistas estrangeiros que perguntavam sobre o número exato da Rua Garay, no bairro da Constitución, citado em seu conto, e o olhavam com desprezo depois que respondia calmamente ser aquilo apenas uma invenção.


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E por falar em invenção, nada como um poeta para criar novos mundos ou revelar detalhes insuspeitos naqueles que já conhecemos. Marcamos um encontro com o poeta e tradutor portenho Esteban Moore para ouvir o que ele tinha a dizer sobre a cidade e sobre seus roteiros literários. Esteban é um apaixonado pela literatura e por Borges – que chegou a conhecer quando tinha a idade de 16 anos.

Passamos pela rua Paraguay seguindo até a rua Três Sargentos, 415, em direção ao Bar Bar O. Sentamos em suas cadeiras aconchegantes na calçada e pedimos uma taça de vinho tinto com uvas Malbec cultivadas em Mendoza. Cenário perfeito para um fiel cultor da conversação que Esteban demonstrava ser. Seus longos parágrafos eram iniciados pela quase modesta expressão “Qué sé yo”, uma estratégia retórica para retomar o fôlego e continuar com sua fala inteligente e bem informada. Entre uma consideração e outra, podia se ouvir, em bom português: “A coisa aqui vai mal”. Para Esteban, a Argentina ia de mal a pior, com um governo que batia cabeça e não dava a mínima para a Cultura. Bueno, que sei eu.


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Meus olhos desviavam-se constantemente atraídos pelos vitrais da fachada do Bar Bar O. Esteban nos conta que os vidros foram pintados por Jorge de la Vega, um pintor e cantautor de paisagens urbanas que juntamente com o fundador do bar, Luis Felipe Noé, iniciaram um rebuliço na cena das artes plásticas portenha com o grupo Nueva Figuración. O bar, claro, é um dos considerados Notables, e nos remete diretamente a ambiência vivida na década de sessenta.

De lá fomos conversando até a av. Córdoba, no meio da confusão de transeuntes em um dia de trabalho. Esteban nos aponta uma placa comemorativa e um edifício que já foi a morada de uma das grandes poetas da Argentina: Alfonsina Storni. Alfonsina era uma planta delicada que na verdade nasceu na Suíça e se desenvolveu como poeta em uma atmosfera mais propícia para homens. Em todo caso, fico comovido com um povo que não esquece de suas mulheres e cunha seu nome em bronze desafiando a passagem do tempo.


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O dia está maravilhoso em Buenos Aires, com um céu outonal e folhas amareladas bailando pelas calçadas. Andamos em direção a Avenida Corrientes, que todos chamam de a rua das livrarias. Esteban nos fala sobre a “Noite das Livrarias”, uma noite em novembro em que todas as livrarias da avenida ficam abertas madrugada adentro como a relembrar de um Eldorado cultural que talvez não exista mais. “Nostalgia” parece ser uma palavra eminentemente portenha. Assim como “saudade” é uma palavra eminentemente portuguesa. Somos sensíveis a essa atmosfera.

Entramos na rua Florida, aquela que já foi a principal avenida da cidade no início do século passado, e Esteban faz questão de nos mostrar a Galeria Guemes que abrigou o primeiro arranha-céu da cidade, com uma arquitetura Art Nouveau bastante arrojada para a época. Hoje é tomada pelo comércio, por escritórios e restaurantes, mas, no final da década de 1920, já foi moradia do escritor francês Antoine de Saint-Exupéry que lá escreveu seu Voo noturno, um belíssimo livro sobre aviação e onde Antoine vê luz em tudo o que é tocado pela vida humana.

Voltando à rua Florida, passamos em frente da antiga sede do jornal La Nación. Do outro lado da rua fica a primeira das livrarias da rede El Ateneo. Entramos pensando que era a famosa Grand Esplendid, aquela que mereceria uma matéria só para ela, mas não era. Deixemos a Grand Espendid para uma próxima parada.
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Logo chegamos na avenida que se confunde com a história da cidade: a Avenida de Mayo. A avenida que começa na voluntariosa Plaza de Mayo. No número 599, paramos para apreciar a Confeitaria London City, onde Julio Cortázar entre cafés e inúmeras tragadas em seus cigarillos rascunhou Os Prêmios, seu primeiro romance publicado. Sentamos ao lado da mesa que dizem ter sido sua. Há uma caderneta, uma caneta e uma placa de metal avisando aos incautos que Cortázar frequentava o local. Um pequeno altar  literário (brega, devo admitir) no meio da confusão de um dia da semana como outro qualquer, entre a rua Peru e a Avenida de Mayo.
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Esteban Moore, o guia-poeta
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No número 767 da avenida, entramos na livraria El Túnel – que vende livros usados e antigos, mapas, gravuras e primeiras edições. Uma das chamadas Antiquárias. O nome da livraria é uma homenagem ao primeiro livro do escritor argentino Ernesto Sábato. Somos bem-recebidos pelo fundador Carlos Noli e sua família. Seu filho ostentava sorridente uma camiseta do Barcelona. O fotógrafo espanhol Chema Llanos, que torce pelo Real Madrid, sorriu e clicou o rostinho simpático e curioso do menino.


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Já que chegamos em uma livraria, temos que frisar, elas são um capítulo especial dessa cidade. Mas antes, falemos de um Café.

 

Café Tortoni

Não há como passar por esta cidade sem conhecer o sobrevivente e majestoso Café Tortoni. Estivemos por lá em um sábado de manhã e, minutos após nossa entrada, já se formara uma fila na porta. Brasileiros e estrangeiros com moeda forte fazem a festa na cidade e, por suposto, esse ícone da cidade não poderia ficar de fora.

Visto de fora não tem nada demais. Uma fachada ao estilo francês, como tantas que adornam a Avenida de Mayo e lembram o fulgor de uma época dourada, de uma Buenos Aires com ruas de pedras e bulevardes ornando a geografia do centro da cidade. Uma porta de madeira escura, que sobreviveu à efervescência dos anos sessenta e a modernização intempestiva dos oitenta – com sua pretensão em transformar qualquer construção em edifícios enormes –, é a linha divisória entre os carros e táxis dançarinos que cruzam a avenida e um mundo com luz esmaecida e romântica, mesas pequenas que convidam a uma viagem no tempo, um bar majestoso com barras douradas reluzindo.
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Por um instante você pode ver o espírito de Alfonsina Storni ou de Federico García Lorca, sentados em uma mesa e a sua volta um vozerio composto de discussões filosóficas, históricas, literárias ou musicais, em infindáveis tertúlias que desde o início do século passado animam seu ambiente.

Meu cortado chega e me tira um pouco das divagações esfumaçadas pelo tempo. Chema está em transe entre as mesas, empunhando sua Nikon curiosa.

 

Uma livraria chamada Buenos Aires

Buenos Aires foi e continua sendo uma imensa livraria. Se você ainda tem alguma dúvida sobre a importância delas para a cidade e para nosso imaginário, reflita conosco. Onde o narrador de O Nome da Rosa (o livro de Umberto Eco que gerou o filme) encontra o manuscrito que dá origem ao romance? Onde foi descoberta a Bíblia de Gutenberg, que é um dos tesouros do Museu Britânico e de toda a humanidade? Onde podemos encontrar o único cineteatro do mundo que se transformou em livraria e não em um templo evangélico? A resposta é simples e única: Buenos Aires.

Diz a lenda que, em Buenos Aires, os leitores e turistas não precisam ir ao encontro dos livros, eles é que tropeçam em nós o tempo todo. Há na cidade em torno de 370 livrarias. O que dá a média de mais de uma para cada dia do ano. Há uma para cada seis mil habitantes.

Você pode morar um ano por aqui, visitar uma livraria por dia e ainda assim não conhecerá todas. Você pode visitar uma grande rede como a El Ateneo ou as pequenas e charmosas livrarias de bairro ou mesmo as librerias de viejo (equivalentes aos sebos brasileiros). Poderá visitar uma livraria totalmente dedicada à venda de obras esgotadas, ou as antiquárias – especializadas em livros antigos e primeiras edições – como a El Túnel. Ou seja, você já deve ter percebido que, nesta cidade, o negócio do livro é uma coisa séria e cheia de matizes.


El Rufián Menlancólico

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Há muitas rotas para conhecer as livrarias espalhadas pela cidade, mas há um consenso de que a constelação mais cintilante se encontra entre a Avenida Corrientes, mais precisamente entre as calles Libertad e Ayacucho, a Avenida de Mayo e a cosmopolita calle Florida.

Hoje, essa rota triádica e inaugural convive com outras áreas que renovaram a oferta de livros da cidade, como a Avenida Santa Fé, perto da rua Callao, o bairro de San Telmo e estende-se até o bairro de Palermo que se transformou no polo turístico e cultural mais excitante da cidade.

Buenos Aires e suas livrarias sobreviveram a vários golpes que tentaram jogar trevas em sua potencialidade iluminista. Primeiro, o Golpe Militar de 1976, que destruiu a liberdade, a pujança cultural e editorial da cidade. A luz foi retomada em 1983, com a recuperação da democracia, mas sofreu outro revés com a exacerbação da crise econômica em 2001, que colocou a maior parte da população na zona de pobreza e desesperança.

A recuperação começou em 2003 e continua a passos largos. Hoje, o vigor das livrarias portenhas desafia a força da internet e o bicho-papão que poderá ser a chegada dos e-books e seus tablets sedutores.

Assim como temos que selecionar os livros que iremos ler, pois eles são infindáveis mas a vida não, temos que escolher quais as livrarias iremos visitar. Afinal, não temos o ano todo, não é mesmo?

 

El Ateneo Grand Splendid


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Não ligue para o que disse o jornal britânico The Guardian sobre a livraria El Ateneo Grand Splendid ser a segunda livraria mais bonita do mundo. É claro que, para os ingleses, a primeira teria que ser inglesa. Mas quando você se debruçar em um dos antigos camarotes desta livraria, que já foi o El Splendid Theater, não terá mais dúvidas: estamos diante da livraria mais bonita do mundo. É um espetáculo arquitetônico. Um templo onde se mesclam várias manifestações artísticas a nos lembrar que tudo existe, ou existiu, para acabar em um livro.

Localizada na Avenida Santa Fé, 1860, a livraria já foi um teatro, um cinema e, também, o local das primeiras audições radiofônicas da cidade. O grupo ILHSA, que é o atual proprietário da rede, restaurou e adaptou o edifício, mas manteve suas características arquitetônicas que a tornam um híbrido ou uma grande metáfora da cultura.


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Nas galerias, as poltronas deram lugar a estantes de livros, CDs e DVDs. O palco tornou-se um sedutor e silencioso Café, visto que as pessoas estão lá embasbacadas pelo que veem, ou simplesmente lendo um livro entre um expresso e outro. Tomamos o nosso cortado sem pressa e sem medo de ser feliz. Eu poderia morar nesse lugar.

No subsolo encontramos uma seção infantil e um auditório que abriga 130 pessoas. Botaram todas as megastores que conhecemos no chinelo e nos entregaram um produto artístico. Uma beleza.

 

Eterna Cadencia e Palermo

Pegamos um táxi para chegar rapidamente a Palermo e poder visitar a livraria Eterna Cadencia antes que ela fechasse. Estávamos programados para visitar o bairro e suas livrarias no domingo, mas como a Eterna Cadencia não abre aos domingos, tivemos que correr até ela no fim da tarde de sábado.

Saímos apressados de um bate-papo com o escritor e tradutor brasileiro Marcelo Barbão – que vive na cidade há algum tempo –  e ele reforçou o que muitos outros haviam apontado: a livraria Eterna Cadencia é uma das mais bacanas da cidade. Preferência de nove entre dez escritores consultados.


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Localizada no coração de Palermo Hollywood a livraria é mesmo cativante. A sensação que temos é a de estar em uma enorme biblioteca particular, com títulos escolhidos a dedo. Uma típica livraria de bairro, com um Café que durante o dia é banhada pelos raios do sol. O casarão onde foi hospedada era uma típica casa de chorizo (salsicha) e precisou de um ano de reformas para chegar ao que vemos hoje.

A Eterna Cadencia se tornou uma casa de escritores e não só de leitores e compradores de livros. Desde 2008, a livraria se tornou, também, uma editora. Já publicou, inclusive, Ellos eran muchos caballos, um romance contemporâneo do brasileiro Luiz Ruffato. Todas as terças-feiras há um ciclo de debates com escritores, o já concorrido Los Martes de Eterna Cadencia. Uma pena não podermos ficar mais para comprovar.

 

Libros del Pasaje e Crack-up

O domingo amanheceu radiante. O clima estava mais para a primavera do que para o outono. Um regalo para nosotros. Hoje poderemos flanar com mais calma por Palermo, visitar outra das moradas de Borges e respirar um pouco da atmosfera elegante do bairro que se tornou um éden para a classe média de Buenos Aires.

Primeira parada, a livraria Libros del Pasaje, na rua Thames, 1762. Ela fica próxima da vibrante Plaza Cortázar e chama atenção pela cor rubro de sua entrada. Belíssima por dentro, com estantes de madeira escura, sofá ao fundo e um pátio onde fica o Café. No Café, encontramos uma pequena loja de CDs, com o criativo nome de Inrockuptibles, e alguns raros vinis expostos.

Ficamos por ali a fotografar e a folhear seu vasto acervo de livros. A trajetória de Vinicius de Moraes na Argentina, escrita pela jornalista portenha Liana Wenner estava bem à vista. O livro havia sido lançado lá mesmo. Bingo, o melhor local para encontrá-lo.

De lá, seguimos para a rua Costa Rica, 4767. Estamos na região mais agitada de Palermo, a recém-denominada Palermo Soho. Entramos na livraria Crack-up, mais uma daquelas apaixonantes livrarias de bairro, que revela seu culto à literatura a partir de seu nome – tirado de uma frase do escritor americano Francis Scott Fitzgerald que diz que “toda a vida é um processo de demolição”.


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A livraria além de oferecer literatura, filosofia e outros gêneros, também tornou-se uma editora de novos autores.

Ela fica pertinho da atual calle Jorge Luís Borges e é pra lá que nos dirigimos para conhecermos o “solar” em que viveu Borges de 1901 a 1914.

 

 

Palermo e a Fundação Mítica de Buenos Aires

Palermo é hoje conhecido por sua agitada vida cultural, com inúmeras lojas de moda, design, ateliês de arte, produtoras de cinema e restaurantes e bares. Mas nem sempre foi assim.

Quando Borges viveu por lá, na antiga rua Serrano, 2135 – rua que agora leva seu nome – era um bairro a um passo dos arrabaldes de Buenos Aires. Borges relembra em seus escritos que “em suas calçadas o dia costumava ser mais longo que nas ruas do centro, em seus buracos fundos o céu se aquerenciava… e eram ternos os armazéns de esquina, como à espera de um anjo”.


rua Jorge Luis Borges, 2135, onde morou o dito

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Pelo que tudo indica, Borges viveu em Palermo seus melhores dias e nele ficaram gravadas suas mais queridas lembranças: “Parece que nunca saí da biblioteca de meu pai. Ainda posso vê-la.”

O bairro é hoje dividido em Palermo Viejo, região que lança tendências para toda Buenos Aires; em Palermo Soho, com suas inesquecíveis ruas arborizadas, algumas ainda de paralelepípedos e pequenos e charmosos edifícios; e Palermo Hollywood, ao norte dos trilhos do trem, assim chamada por ter abrigado uma grande quantidade de estúdios de cinema.


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Passar uma tarde de domingo em Palermo Soho foi uma experiência inesquecível. O sol brilhante e macio de outono deixava as folhas das árvores ainda mais douradas do que eram. Havia um cheiro de doce felicidade no ar. Uma leveza que nos abraçava feito névoa.


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Ainda deu tempo para passarmos na concorrida 38a. Feria Internacional del Libro de Buenos Aires, na Avenida Santa Fé, 4201, no Predio Ferial de Buenos Aires, em Palermo. O tema deste ano era “Un Futuro con Libros”, um comentário direto ao advento dos livros digitais e das novas maneiras de lê-los e de manipulá-los. Buenos Aires, cidade livresca que é, tinha que se posicionar e o faz já no mote de sua maior celebração ao livro e a leitura. Digitais ou físicos, não há futuro sem os livros e sem o que eles representam. É o raciocínio implícito à realização da Feira. Lembro-me com ironia do romance Fahrenheit 451, do recém-falecido Ray Bradbury. Em um futuro no qual os livros são proibidos, um grupo de exilados formam uma espécie de biblioteca viva. Cada um deles memorizou um livro inteiro. Borges, o memorioso, teria muito o que falar sobre o tempo em que vivemos.


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O lugar onde a Feira foi realizada era enorme, apinhado de gente (como costumam ser essas feiras) e mesmo se quiséssemos não conseguiríamos dar conta de tudo que estava acontecendo ali. Editoras do mundo todo mostrando seus catálogos, marcando presença, trazendo seus autores para dialogar com o público. Livros à mancheia. Surpresa, com a presença de Euskal Herria (País Basco) mostrando seus livros. E, o que não deveria ser uma surpresa, mas foi: a presença de uma estande do Brasil, patrocinada pelo Ministério da Cultura e mostrando uma seleta (bem pequena) de prosadores contemporâneos vivos.

 

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Eloisa Cartonera e La Boca

Uma editora com o conceito que sustenta a Eloisa Cartonera só poderia ter sido gestada em La Boca. Um projeto editorial nada tradicional. Mais do que a possibilidade de dar uma espiada no templo do Boca Juniors e de Diego Maradona, o estádio La Bombonera, viemos conhecer in loco esse projeto que espalhou filhotes por vários cantos do mundo, inclusive no Brasil.

Mucho más que libros é o mote do empreendimento criado pelo artista plástico Javier Barilaro e pelos escritores Washington Cucurto e Fernanda Laguna em 2002, época em que a Argentina estava falida, não havia empregos e milhares estavam nas ruas como miseráveis.

A ideia deles foi montar uma cooperativa constituída pelos cartoneros (catadores de papel) e escritores. Compravam papel cartão dos catadores e com uma força da embaixada da Suíça compraram uma máquina impressora. Surgiu a Editora Eloisa Cartonera. A capa dos livros é pintada à mão por cooperados, uma a uma, e os textos eram cedidos por autores alternativos e, na sequência, por escritores estabelecidos que se empolgaram com o projeto e começaram a liberar seus textos sem custos de direitos autorais. Uma pequena revolução editorial.

Em sua pequena Oficina, na rua Aristobullo del Valle, 666, pudemos ver e comprar um livro do brasileiro Haroldo de Campos, traduzido para o espanhol. A literatura latino-americana é o foco principal e o trabalho é sempre feito em equipe.


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Como descemos antes do ponto, demos uma boa caminhada pelo bairro e fomos avisados de antemão para tomarmos cuidado com a mochila e a câmera fotográfica. Era domingo. As ruas estavam vazias e nós, deliberadamente, fugimos do principal foco turístico do bairro: El Caminito. É nessa rua colorida – como em algumas de nossas cidades nordestinas – que deságuam os ônibus apinhados de turistas que querem conhecer um pouco da chamada cor local da Argentina.

O bairro é a morada da classe operária portenha e foi nutrido, dizem os historiadores, pelas migrações espanhola e italiana. O futebol está em todos os cantos. Os poucos grupos de adolescentes reunidos nas esquinas nos seguiam com o olhar quando passávamos. Nos sentíamos um pouco invasores.

Depois da visita aos Cartoneros, fomos almoçar no restaurante El Obrero, que possue um ambiente e energia tipicamente argentinos. Não se via turistas por lá. Só nosotros. As paredes abarrotadas de fotos com ídolos futebolísticos, várias gerações de jogadores do Boca estampados na parede, camisetas de clube. Uma do Barcelona. Achei uma do Palmeiras, o que reforça a tese da emigração italiana, mais do que o pensamento de que, talvez, eles apreciem o futebol brasileiro.
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A comida é muito saborosa, barata e farta. Pedimos três pratos para experimentar. Nosso fotógrafo estava desejoso de um bife à milaneza. Eu pedi um macarrão com frutos do mar. E outro prato com batatas e arroz. Muita comida. Sobrou quase a metade.

Segunda-feira chegou e com ela a hora de voltar pra casa. Difícil voltar. Essa cidade, como já disse Borges, é “tão eterna quanto a água e o ar” e será impossível deixar de amá-la, mesmo que seja em nossos sonhos. Ainda bem que eu trouxe muitos livros comigo. Eles não me deixarão esquecer.

 

 

LIVRARIAS CITADAS

“Dos diversos instrumentos do homem, o mais assombroso é, indubitavelmente, o livro. Os outros são extensões do seu corpo. […] Mas o livro é outra coisa: o livro é uma extensão da memória e da imaginação.”

Jorge Luís Borges, in ‘Ensaio: O Livro’

 

 

CRACK-UP

Rua Costa Rica, 4767

Seg-seg, 10h-21h

Tel.: 4831-3502 – Aceita cartão

www.crackup.com.ar

 

EL ATENEO GRAND SPLENDID

Avenida Santa Fé, 1860

seg-qui, 9h-22h; sex-sáb, 9h-0h

dom, 12h-22h

tel.: 4813-6052 – Aceita cartão

www.tematika.com.ar

 

EL RUFIÁN MELANCÓLICO

Rua Bolivar, 857
Tel. 4300 1027
E-mail: rufian61@hotmail.com

 

EL TÚNEL

Avenida de Mayo, 767

seg-sex, 10h-19h

sáb, 10h-13h30 – Não aceita cartão

Tel.: 4331-2106

www.eltunellibros.com.ar

 

ETERNA CADENCIA

Rua Honduras, 5574

seg-sex, 11h30-21h; sáb, 11h30-20h

Tel.: 4774-4100 – Aceita cartão

www.eternacadencia.com

 

LIBROS DEL PASAJE

Rua Thames, 1762

seg-sáb, 10h-22h; dom e feriados, 14h-21h

Tel.: 4833-6637 – Aceita cartão

www.librosdelpasaje.com.ar

 

WALRUS BOOKS

Rua Estados Unidos, 617

ter-dom, 12h-20h

Tel.: 4300-7135 – Aceita cartão

www.walrus-books.com.ar

 

ELOISA CARTONERA

Rua Aristobullo del Valle, 666

seg-sex, 14h-18h

Não aceita cartão

www.eloisacartonera.com.ar

 

BARES NOTÁVEIS CITADOS

“Considera-se um Bar Notável aqueles bares, bilhares e confeitarias relacionados com fatos ou atividades culturais significativas; aqueles cuja antiguidade, desenho arquitetônico ou relevância local, lhe outorgam um valor próprio”.

LEY 35, do Gobierno de la Ciudade Autónoma de Buenos Aires

 

BAR BAR O

Rua Tres Sargentos, 415, Retiro

 

CAFÉ TORTONI

Av. de Mayo, 825/29, Montserrat

8-3h, seg-sáb, até 1h dom

Tel.: 4342-4328

www.cafetortoni.com.ar

 

LONDON CITY

Av. de Mayo, 599, Montserrat

 

36 BILLARES

Av. de Mayo, 1265/71, Montserrat

8-2h

Tel.: 4381-5696

www.los36billares.com.ar

 

 

CAFÉ NOTABLE recomendado

CAFÉ LA POESÍA

Calle Chile, 502, San Telmo

Tel.: 4300-7340

Na esquina das ruas Bolívar e Chile, encontramos o Café la Poesia. O Café foi fundado em 1982, pelo jornalista e poeta Rubén Derlis e foi, durante a década de 80 o ponto onde se celebrava a democracia recém-conquistada. Nosso guia-poeta, Esteban Moore, nos levou ao espaço que nos surpreendeu por seu estilo. Uma choperia de bronze reluzente, móveis de madeira, adornos e artefatos antigos e um piano de 1915. Na parte de cima, há uma galeria com mais de 100 fotos de personalidades das letras argentinas (nosso Esteban estava entre elas) e placas de bronze em reconhecimento aos méritos culturais e literários do bar. Um bar para quem tem espírito de poeta. Foi nele que Esteban nos contou o que, segundo ele, não costuma mais comentar entre argentinos: Carlos Gardel era francês; Alfredo Lapera, seu maior letrista, era brasileiro e seu guitarrista, italiano.

 

EM PALERMO

MUSEO EVITA

Rua Lafinur, 2988

ter-dom,  11h-19h

entrada AR$ 5/15

tel.: 4807-0306

www.museoevita.org

Museu que imortaliza mais ainda a principal heroína argentina. Nele você pode encontrar vídeos, livros, pôsteres, manchetes de jornais, suas roupas pessoais, chapéus, perfumes e até suas impressões digitais.

 

MUSEO XUL SOLAR

Rua Laprida, 1212

Ter-sex, 12h-20h; sáb, 12h-18h30

Entrada AR$10

Tel.: 4824-3302

www.xulsolar.org.ar

Antiga casa de Xul Solar, que foi amigo de Borges e um importante pintor, inventor e poeta. Há visitas guiadas em espanhol e estão a mostra mais de 80 pinturas de Xul Solar.

 

HOTEL CASTELAR

Avenida de Mayo, 1150

Tel. (54-11) 4383-5000 / 9

Fax. (54-11) 4383-8388

www.castelarhotel.com.ar

No número 1150 da famosa Avenida de Mayo, encontramos o tradicional Hotel Castelar.  Se você quer se hospedar em lugar que mantém a atmosfera do que havia de melhor em Buenos Aires na primeira metade do século passado, esse é o lugar. O Hotel foi inaugurado em 1929, com uma arquitetura europeia e decoração clássica.  Ele ostenta em placa de bronze o fato de que, na década de 1930, hospedou por seis meses o escritor espanhol Federico García Lorca. Foi nele que García Lorca conheceu e dialogou por muitas noites regadas a vinho com o então consul do Chile na Argentina, o poeta Pablo Neruda. O restaurant do Hotel também é considerado um dos Bares Notables da cidade.

 

CAMINO DE LAS LETRAS

http://www.bue.gob.ar/?mo=portal&ac=componentes&ncMenu=229

Circuito organizado pela Cidade de Buenos Aires que convida a todos a percorrer a cidade em uma chave literária.

 

CIRCUITO BORGES

http://www.bue.gob.ar/?mo=portal&ac=componentes&ncMenu=230

 

CRONOGRAMA DE VISITAS GUIADAS GRATUITAS

http://www.bue.gob.ar/?mo=portal&ac=componentes&ncMenu=46

Durante todo o ano, o Departamento de Turismo de Buenos Aires oferece visitas guiadas gratuitas para se conhecer os atrativos da cidade, como o tango, os teatros, a arquitetura, a arte e a história e, claro, a literatura (Caminho de las Letras).

 

 

 

 

[A viagem foi patrocinada pela revista Lonely Planet que encomendou o texto. Edição de Julho de 2012.] [Fotos envelhecidas by Edson Cruz, via Urbian/Samsung] [Fotos by Chema Llanos, via Nikon]

 

 

 

 

 

 




Comentários (9 comentários)

  1. cleo, viajei com seu texto, muito interessante e bonito…saudades de Buenos Aires!!!
    9 agosto, 2012 as 19:59
  2. Bia Bernardi, Eu tenho que confessar que ir a Buenos Aires foi uma experiência inigualável. Pena que foi muito rápida e mais permeada pelo interesse capitalista. Fica, então, a dica para um segunda visita, com um guia montado pelas dicas acima mencionadas. Parabéns, Edson, pela “reportagem”… Foi como retornar à capital de los hermanos!
    9 agosto, 2012 as 20:43
  3. Marcia Barbieri, Depois dessa leitura, acho que posso dizer que estive em Buenos Aires e caminhei pelos seus jardins que se bifurcam… Maravilhoso!
    10 agosto, 2012 as 0:16
  4. Ana Lucia Vasconcelos, Edson adorei a matéria: tambem viajei no teu texto e descobri a Buenos Aires dos grandes escritores e poetas que la viveram e que voce cita com todo seu encanto!! parabéns!! tambem fiquei com vontade de ir viajar nestas ondas!!
    10 agosto, 2012 as 3:49
  5. Ana Peluso, Edson, obrigada por levar até Buenos Aires com você!
    13 agosto, 2012 as 0:24
  6. Cesar Cardoso, Caro Edson, Que bela viagem literária! Faz nascer na gente o desejo dessa e de outras viagens literárias. É uma ideia ótima. Estive em Buenos Aires em janeiro e também conheci alguns dos lugares que você mostra, algumas dessas livrarias e também o El Obrero, lá na Boca. E como tem livrarias a cidade, é impressionante! Um abraço, Cesar
    22 agosto, 2012 as 12:27
  7. admin, opa, Cesar. foi emocionante para mim estar em Buenos Aires dessa forma. uma viagem inesquecível. aliás, anote a sua e mande pra Musa. acho q é um filão bacana para explorarmos. viagens literárias… q tal? edson
    22 agosto, 2012 as 13:42
  8. Tânia P., Delícia de texto, passeio saboroso!
    14 fevereiro, 2013 as 14:56

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