F. Scott Fitzgerald e o Cinema



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Sabe-se que o escritor F. Scott Fitzgerald teve uma relação difícil com Hollywood.  Precisando manter a mulher mentalmente perturbada, Zelda, em tratamento, e dependendo de vigorosos porres para escrever, ele precisava da profissão de roteirista. E, no entanto, não conseguia fazer o que lhe era pedido, talvez por ser literato demais e não entender as demandas dos diretores e produtores por histórias menos sofisticadas e matizadas psicologicamente.

Hollywood queria profissionais que simplesmente respeitassem as regras daquele jogo, pagando-os bem para isso. Mas Fitzgerald não levava jeito ou era orgulhoso demais para seguir aquelas regras – queria, como todo escritor que valha a definição, estabelecer as suas. E quebrava a cara, naturalmente, porque há pouca discussão possível com os que só têm o lucro como mirada e acham que escrúpulos artísticos são, no máximo, frescura.

O folclore em torno de dois grandes escritores americanos e suas dificuldades em Hollywood, ele e William Faulkner, é bastante conhecido. Entre os escritores, há uma espécie de compreensão respeitosa e solidariedade inevitável com o que eles padeceram; entre homens de cinema, como o diretor Billy Wilder, que também foi roteirista (ver entrevista no livro “As entrevistas da Paris Review”), há uma visão um pouco diferente: para Wilder, Fitzgerald, como outros escritores (Dorothy Parker, entre eles) que tinham ido de New York para Hollywood atraídos pelo dinheiro fácil do cinem nunca se deram ao trabalho de entender como funcionava o trabalho de roteirista realmente. Não tinham, em resumo, respeito por Hollywood e por isso não sabiam veicular suas ideias fazendo as devidas concessões ao “box-office”. Talvez pareça filisteísmo de Wilder, mas é também sua visão pragmática e esperta do que era sobreviver naquela selva iletrada. Fitzgerald e Faulkner abominavam tudo isso e se amargavam com as concessões e mais: se fizessem sucesso nos termos exigidos por Hollywood, cairiam no total auto-desprezo. Um impasse que nunca foi resolvido e, que com o tempo, parece purista e ingênuo, visto que muita gente aprendeu as regras do jogo muito bem e acharia esse sofrimento todo desnecessário, hoje em dia. Mas também hoje a condescendência com o lixo aumentou terrivelmente. Atualmente, cineastas e roteiristas se improvisam como homens de negócios com maior facilidade e até leviandade e blefam com menos penitência e mais competência para fazer o que querem fazer, ainda que os resultados do “box-office” continuem como sempre implacáveis e tirem do jogo os fracassados, sem maior consideração pela arte ou pelas generosas ideias embutidas em projetos grandiosos. Nada mudou, para a indústria: filme bom é aquele que dá lucro.

Sob esse ponto de vista, natural que os filmes que Hollywood fez a partir de livros de Fitzgerald pareçam sempre dominados pela mediocridade e talvez por um desprezo inconsciente dos produtores e diretores pelo escritor, como uma revanche. Andei vendo alguns desses filmes, e, francamente, não os recomendo a ninguém, a não ser como curiosidades e por alguns atrativos aqui e ali, especialmente para os que curtem nostalgia sem maior senso crítico.

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DRAMALHÕES, MISCASTING E OUTRAS FALHAS

O filme está em DVDs pelas bancas até e vai iludir muita gente pelo chamariz dos astros, Gregory Peck e Deborah Kerr, e os ares de importância, mas é um fracasso constrangedor. Chama-se “O ídolo de cristal”, é de 1959 e foi dirigido por Henry King. É a história da relação amorosa de Fitzgerald com a colunista inglesa Sheila Graham, que reinou em Hollywood com suas notícias e fofocas sobre o mundo do cinema.

O tema era promissor, mas o “miscasting” foi fatal: nem Gregory Peck tinha jeito para incorporar o Fitzgerald embriagado, lúcido e amargo sob o despotismo de Hollywood que temos em imaginação nem Kerr, sempre encarnando a virtude e a elegância de senhora burguesa, era apropriada para passar a língua ferina e a ambição desvairada de Graham. O filme até começa bem, quando Sheila aparece já com uma frase peçonhenta dita a uma atriz medíocre durante uma filmagem, mas daí a pouco ela vai se tornando a santa mulher apaixonada pelo marido e abnegada, disposta a sofrer todos os caprichos masculinos por amor, de todos os melodramas. E o filme até comove os de choro fácil, mas como “novelão”, pois sente-se que um manto de falsidade e pieguice conveniente cobriu todo o projeto – Fitzgerald e Graham jamais seriam aqueles dois. Curiosamente, o filme só é convincente num curto trecho em que os dois brigam feio, ele embriagado, partindo até para a violência sobre ela. E há algo de forte quando ele morre, em meio à criação daquele que Edmund Wilson consideraria seu melhor romance, o inacabado “O último magnata”. Mas é só.

O curioso é que o diretor, King, não se mancou: em 1962 voltou ao terreno de Fitzgerald, mas aí saindo da biografia dúbia e partindo para a ficção do próprio, e realizou “Suave é a noite”, baseado no romance homônimo bem conhecido. A produção foi cara, a fotografia é bonita, o figurino é convincente, mas o pecado capital foi cometido a partir do elenco, novamente: como acreditar em Jason Robards no papel do psiquiatra Dick Diver? Ele tinha que carregar o filme nas costas, e Robards não tinha matizes suficientes para dar conta do personagem – era apenas uma versão inferior de Humphrey Bogart. Jennifer Jones se esforçou para ser Nicole e conseguiu dar um pouco de vida ao personagem, mas já era uma atriz veterana e não conseguia esconder certas marcas de envelhecimento (ou plásticas mal feitas?) que a tornaram um pouco esquisita (em “Adeus às armas”, contracenando com Rock Hudson, isso já era notório). Tom Ewell como o amigo pianista de Diver estava constrangedor, e a música da trilha-sonora, com Earl Grant (gravada em versão brasileira por Moacyr Franco), fez sucesso. Mas o filme, revisto, parece longo, interminável, e oprime, porque sabemos que a história – ainda que não tenhamos lido o livro original – só poderá terminar mal. Para quem é nostálgico, um ou outro trecho pode ser compensador. Mas, no conjunto, o filme é medíocre e a gente mais o tolera que o vê.
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Parece que os atores ruins, chatos ou inexpressivos ficavam sempre à frente dos projetos baseados em livros de Fitzgerald. Outro caso é “A última vez que Paris”, filme de 1954  baseado no conto “Babylon revisited”. O inexpressivo da vez foi Van Johnson, que tinha que fazer um escritor alcoólatra que retorna a Paris no fim da Segunda Guerra Mundial e recorda o romance que teve com uma garota americana, e seguiu sua lógica de canastrão esforçado, pois não era mais que isso. O diretor, Richard Brooks, dizem, estava apaixonado por Elizabeth Taylor (ele e o resto da humanidade masculina mundial), e o filme só se sustenta pelo encanto da estrela e a beleza de uma canção da trilha sonora, até hoje muito lembrada. Além do mais, circula em DVD brasileiro numa cópia sofrível.

Pensava-se que Fitzgerald seria um dia redimido pelo cinema americano, mas nos anos 70, o que aconteceu? Ver “O grande Gatsby”, de 1974, chega a dar pena: um filme que tinha um orçamento gigantesco, um roteirista que era ninguém menos que Francis Ford Coppola, astros como Robert Redford e Mia Farrow nos papéis principais e a direção do inglês Jack Clayton (que fez a obra-prima “Os inocentes”), simplesmente se afundou na inexpressividade e na indiferença, só chegando a ter algum sucesso de público por impor à moda uma voga passageira de roupas e carros dos anos 20. Nele, o estigma de papel principal estragado ficou para Robert Redford, que não conseguiu injetar paixão alguma a um personagem apaixonado que chega ao gangsterismo por amor. E nem o objeto de sua paixão convenceu ninguém – Mia Farrow está simplesmente esquisita, ora histérica ora apática como Daisy Buchanan, tanto que o filme foi escandalosamente roubado por dois atores menores, Bruce Dern e Karen Black, fazendo um casal secundário. Aliás, um outro escritor, Truman Capote, ficou incumbido do roteiro no início, mas a Paramount não gostou do que ele fez e ele, profético, ao sair da produção, disse: “Eles terão problema com o filme”.

Quanto a “O último magnata”, de 1976, quem topar com ele nas locadoras vai se deslumbrar com o elenco: De Niro, Tony Curtis, Robert Mitchum, John Carradine, Jeanne Moreau, Jack Nicholson e Anjelica Huston. E com o nome da direção: Elia Kazan. Tudo o recomenda, porque traz ainda a fama de obra-prima inconcluída do original. Mas é um filme que ninguém verá duas vezes, a menos que seja um caso de devoção masoquista. Lento, amargo, abordando a vida do grande produtor dos anos dourados de Hollywood, Irving Thalberg, traz esses atores que valem ser vistos, seguindo um roteiro do célebre dramaturgo Harold Pinter, mas, decididamente, não deu certo. E como, nesse caso, tudo, do elenco ao diretor, passando pelo diretor, conspirava para que fosse um clássico indispensável, é quase infalível concluir que Fitzgerald dava azar com o cinema.

Melhorou alguma coisa a adaptação do conto “O estranho caso de Benjamin Button”, realizado em anos recentes, com Brad Pitt à frente do elenco e David Fincher na direção? Há muita gente que considera este filme uma alegoria poética bem realizada. Quanto a mim, achei-o visualmente bonito e insosso, como uma versão catatônica de “Forrest Gump”, e Fincher, o diretor, não é bom nem para melodrama, porque a história não chega a comover, a despeito do personagem apelativo de Cate Blanchett que nos quer fazer chorar no seu leito de morte, onde relembra seu amado Button. Claro que Brad Pitt às vezes até surpreende (eu o acho bom é para comédias) num filme ou noutro, mas não sei se não deve ser enfileirado entre os muitos atores fracos que vieram liderando elencos dos vários filmes adaptados de histórias de Fitzgerald até hoje.
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PROMESSAS OU AMEAÇAS?

Eu não poderia concluir este artigo sem dizer que estou apreensivo por três novas adaptações de obras de Fitzgerald que apontam no horizonte e poderão estar circulando pelos cinemas em 2012: “O grande Gatsby”, “Suave é a noite” e “Belos e malditos”. Os erros das adaptações de Jack Clayton e Henry King devem ter convencido alguns diretores que, com remakes apropriados, talvez Fitzgerald finalmente pudesse ser salvo. Quanto a “Belos e malditos”, até onde sei, não foi adaptado para o cinema e passará por sua prova de fogo.

Anuncia-se que “Suave é a noite” pode voltar com Matt Damon e Keira Knightley. São dois bons atores, e Keira provou talento especial como a excelente Cecília de “Desejo e reparação”. Curiosamente, é o nome dela que é cogitado também para viver Zelda, a mulher de Fitzgerald, na adaptação de “Belos e malditos”, que seria dirigida por Nick Cassavetes (este me dá medo, pois fez aquele dramalhão constrangedor com Denzel Washington, “Um ato de coragem”).

Mas o que me inspira mais apreensão é a notícia de que Baz Luhrman, diretor voltado para a estética pop de “Moulin Rouge” ou o drama épico fracassado de “Austrália”, estaria filmando “O grande Gatsby”. É pelo menos um alívio saber que esse novo Jay Gatsby será vivido por Leonardo DiCaprio, ator que foi se tornando cada vez melhor e tem o tipo físico adequado para o papel, mas ainda assim, temo que Luhrman faça um Gatsby rodopiante, musical, estridente, “pop”, em suma, diluindo por completo o romance original.

É pagar para ver. Com Fitzgerald, marcado pela sombra do bico do urubu em sua vida de roteirista falhado e de romancista incompreendido por Hollywood, os azares têm se provado sucessivos, mas pode ser que este novo milênio venha a dar filmes sobre ele ou a partir das obras dele que sejam finalmente dignos e “fitzgeraldianos”.

 

 

 

 

 

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Chico Lopes nasceu em Novo Horizonte, SP, em 1952, está radicado em Poços de Caldas desde 1992. Em Poços, é programador e apresentador de filmes do Cinevideoclube do Instituto Moreira Salles desde 1994. Tem vários livros inéditos de ensaios sobre filmes e literatura, além de ter publicado três livros de contos: “Nó de sombras” (2000), “Dobras da noite” (2004) e “Hóspedes do vento” (2010). Em 2011, deve estrear na publicação de novelas e romances. E-mail: franciscocarlosl@yahoo.com.br




Comentários (6 comentários)

  1. Raymundo Silveira, Muito raramente casamentos felizes resultam da Literatura co o Cinema. Entre os mais “coroas” citaria “ANA KARENINA” (com Garbo no papel principal) e “GUERRA E PAZ” (com Audrey Hepburn). De média idade (1968) “O NADADOR” Conto de John Cheever. No cinema, com Burt Lancaster. Excelentes ambos; não é exagero: li e reli o conto e assisti e reassisti ao filme, mais de dez vezes. Acabo de ver agora “CRÔNICA DE UM AMOR LOUCO” (de Bukowsky). O filme é do diretor Marco Ferreri (A Comilança). Outro”matrimônio” que deu certo!
    2 fevereiro, 2012 as 21:43
  2. CHICO LOPES, Raymundo: Lembraria, como adaptação feliz, a que me parece a melhor dentre todas – “Os inocentes”, de Jack Clayton, adaptação de “A volta do parafuso”, de James. O mesmo Clayton, no entanto, não soube adaptar Fitzgerald ao dirigir “O grande Gatsby” e foi um fiasco. “A hora da estrela”, filme de Suzana Amaral adaptado de Clarice Lispector, ficou ótimo. E uma das obras-primas do cinema da década inicial do primeiro milêncio, “Desejo e reparação”, foi adaptada de romance homônimo de Ian McEwan com felicidade. Nem se diga, então, de “O leopardo”, de Lampedusa, adaptado por Visconti. Lembrar, porém, que a qualidade literária dessas adaptações esteve, em dois casos, garantida pelas presenças de Truman Capote (no roteiro de “Os inocentes”) e do próprio McEwan (no roteiro de “Desejo e reparação”). Isso não é revelador?
    8 fevereiro, 2012 as 11:40
  3. Daniel Lopes, Sabe Chico, acho que mesmo antes de Hollywood, Fitzgerald já estava quebrado. Pra mim, o melhor livro dele é de longe, Crack up o mais verdadeiro, o mais pungente e o mais triste. Ali ele percebe que tudo aquilo porque lutou, a fama enquanto escritor, o dinheiro o respeito, eram ilusões. Ali ele revela suas insônias,suas depressões e a crise que o partiu ao meio depois da fantástica era do jazz. Depois da experiência pascalina, não havia mesmo como fazer sucesso em Hollywood. Belíssimo texto, Abraço
    11 fevereiro, 2012 as 17:10
  4. CHICO LOPES, De fato, esse Crack Up é um livro perturbador. Um homem sensível como Fitzgerald, mergulhando na depressão, nunca mais voltará à tona sem modificações consideráveis. O livro me fez pensar nos muitos depressivos que há no mundo literário e como a depressão é quase penitência e musa inevitáveis para escritores. Creio que todo famoso (especialmente os americanos), quando a fama é grande, atinge um point of no return de decadência, desgosto e conhecimento nauseado do mundo. Truman Capote também se afundou após o grande sucesso de “A sangue frio”. Há um livro interessante sobre a depressão e o suicídio entre escritores, do ensaísta inglês A. Alvarez (apesar deste nome, é inglês sim) chamado “O deus selvagem” (da Cia. das Letras). Recomendo sua leitura vivamente.
    11 fevereiro, 2012 as 21:35
  5. Chico Lopes, Bem, fui profético. O GRANDE GATSBY que Baz Luhrmann fez parece mesmo pura lantejoula. Infelizmente…
    7 julho, 2013 as 13:00
  6. Eloisa Helena, Ótimas observações e comentários, Chico. Toda essas citações nos remetem a filmes e obras diversas. Li também os comentários dos leitores. Muito bons! O Leopardo é mesmo um grande filme, será melhor que o livro? Existe traduzido o livro Crack up? Quero lê-lo. Helena
    7 julho, 2013 as 15:46

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