Exílio


 

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Em Exílio, novo romance da escritora Marcela Tagliaferri, após passar 15 anos preso em um hospital psiquiátrico, Vicente tenta perfazer o caminho de volta para a família que ele um dia gestou e criou. Entre a hesitação e o desejo de lar, ele constrói e desconstrói mentalmente os acontecimentos que lhe levaram a chegar a tal ponto da existência. Na casa outrora lar, aconchego, Sílvia, a esposa de Vicente, também reconstrói tempos e espaços felizes do passado. Ambos, vítimas do pai dela, um viúvo apaixonado pela filha e disposto a tudo para mantê-la presa aos seus desejos.

Como sabemos, a polifonia é uma chave de leitura proposta por Bakhtin para a obra de Dostoievski (ler Problemas da poética de Dostoievski). Para Bakhtin, a polifonia de um texto vem da coexistência e da interação de várias camadas sociais e suas vozes, com a expansão do capitalismo. Na malha do texto polifônico que compõe o seu livro, Tagliaferri faz uso da troca de turnos discursivos entre as personagens. Do recanto escuro das lembranças do trio central – pai, filha e genro – o texto é montado e planos diversos passam a dialogar. E a cada voz, a cada troca de voz, tão sutil que faz o leitor estranhar quem está “falando” a cada instante, há um gesto em direção às artimanhas fatais do enredo das subjetividades em circulares afetações.

A sobreposição e a justaposição de projetos de narrativas, aliadas aos contracantos (quase) invisíveis em rendado escritural, segredam a beleza do texto de Marcela Tagliaferri. E ampliam a sensação de falta de possibilidades para Vicente e para Sílvia. O que lemos é o bordado e seu avesso. O plano da forma e o plano do conteúdo se encontram e se equalizam para manter a tensão narrativa e o desenho de cada ator-personagem. Por exemplo, a estética wagneriana e sua tetralogia com a valorização dos mitos e do folclore germânico, deturpadas pelas propostas nazistas, são recuperadas por Tagliaferri na predileção sonora que o pai de Sílvia tem por Tristão e Isolda, composição de Wagner cujos significantes míticos parecem interferir na trama das personagens do livro.

Dito de outro modo, em Exílio o artifício polifônico enfatiza nas camadas de verdades vindas de cada um dos narradores-personagens, tornando o exercício de escrever e justapor as vozes a excelência do livro de Tagliaferri. As vozes são trançadas em uma colcha de retalhos, que é como se imagina que seja o exílio e o exilado. “O primeiro esforço no sentido de me reconhecer em mim mesmo se deu na forma de uma tentativa de chorar: se eu estava em tão má situação (…), se ninguém ouvia minhas perguntas, certamente seria suficiente que me concentrasse em tais constatações para que lágrimas começassem a correr, soluços e espasmos me sacudissem. Mas não. Essa intimidade do espírito com o corpo que o pranto propicia era-me negada”, anota Caetano Veloso, no seu livro Verdade tropical

“Deixo a vida carregar as sobras do tempo em que fiquei encarcerado. Envelheci. Que tempo é esse que marca fronteiras se por dentro permaneço o mesmo”, pergunta-se Vicente. A poética do exílio é a do não-pertencer mais que não-pertencer. É o altíssimo grau de complexidade do estranhamento da identidade. Estranho a tudo, estrangeiro, “forasteiro do que vê e ouve”, o exilado se estranha. Eis o atual perfil de Vicente, com a potencialização da vulnerabilidade da subjetividade: a morte de Narciso. E isso está organicamente exposto na forma da narrativa do livro, no todo que é partes agrupadas, contaminadas.

Ou seja, paralela à história bem contada, a construção do livro é, mais uma vez, o forte da escrita de Tagliaferri. Mas, diferente do romance anterior, A filha do livreiro (2008), quando a escritora inventou um lugar ficcional para fazer suas personagens transitarem, em Exílio ela não tem medo de roçar o real, de colocar em prática uma das potências da ficção, ou seja, (re)compor narrativas para fatos que a realidade não dá conta. O texto mistura a dimensão da mentira, do testemunho e da subjetividade com elementos que estão no consciente coletivo quando o assunto é o golpe militar.

No momento em que uma Comissão da verdade é formada para desvelar o terrível inominável e um livro como Memórias de uma guerra suja, de Cláudio Guerra, um dos policiais mais poderosos dos anos 1970, chega ao público, Tagliaferri toca no lugar da mescla entre artesania ficcional e releitura da história: pelo individual, preencher lacunas das grandes questões coletivas. A ficção entra e organiza onde a verdade não tem lugar, onde esta precisa de uma comissão para ser tratada. Sem nome, o pai de Sílvia pode ser qualquer um. Sob o anonimato, a personagem alimenta a impunidade. “Vicente não era comunista. Na verdade não era nada. Um nada. Totalmente desprezível. Nem na lista dos inimigos foi registrado. Não existia. Mas um entre tantos homens suburbanos de classe média, vivendo no limiar da mediocridade”, diz.

Dividido em duas partes: “O caminho”, do pertencer, e “Os descaminhos”, do despertencer, Exílio figurativiza o exilado como alguém que segura uma pedra em brasa nas mãos. Cantor-de-si e estranho aos cantos ao redor, ele canta a vida segurando essa pedra pesada e acesa: a própria (des)identidade. É por isso que as canções de exílio – em geral – são doídas, de tons baixos, voz despida de brilho e calor: uma quase não-voz, porque cantada de um quase não-lugar. É esta a voz que temos em Exílio. Uma voz disposta à verdade, mesmo que o pior ainda esteja por vir.

 

 

 

 

 

 

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Leonardo Davino de Oliveira é Paraioca. Pesquisador, ensaísta e escritor, especialista e mestre em Literatura Brasileira. Doutorando em Literatura Comparada com projeto sobre Canção (Poéticas vocais) e Teoria da Literatura. Assina o blog Lendo canção: http://lendocancao.blogspot.com E-mail: leonardo.davino@gmail.com




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