Encantação pelo Rio


.
Em 2004, André Vallias criou uma instigante obra interativa, em Flash, intitulada ORATORIO.  Uma elaborada suíte de poemas em homenagem ao Rio de Janeiro, cujo título contém a palavra “Rio”, inspirada por três localidades da cidade: a Rocinha (sua maior favela), o Corcovado e o Sambódromo. Ao longo dos poemas, Vallias consegue, em um refinado jogo verbal, sonoro e visual – com paranomásias, paragramas, rimas, alusões, ecolalias, repetições – produzir um texto maravilhosamente orquestrado e posto em camadas que examina o Rio em seus aspectos sedutores e, não raro, contraditórios – históricos, geográficos, políticos e estéticos.

Mas por mais que a versão digital de ORATORIO seja intrigante, a obra demandava a forma do livro que Vallias agora publica. Somente a versão impressa possibilita ao leitor saborear as complexas associações e duplos sentidos que constituem esse texto poético, e Vallias, um artista visual sofisticado, também nos fornece mapas e diagramas que, para usar uma frase de John Cage, “adensam a trama”. A edição vem acrescida de um poema sobre São Sebastião e de notas para as referências mais difíceis da suíte. Como tal, ORATORIO é muito mais um poema para o nosso momento: os leitores irão descobrir um “Rio” inaudito – uma fantasmagoria que só Vallias poderia ter feito.

 

Marjorie Perloff

 

 

 

 

* * *

.

Do posfácio de Alexandre Nodari (“EX-ENTRE-CIDADE” ):

 

Se toda poesia é uma “canção da terra”, como argumentou Daniel Link, então ORATORIO nos ajuda a ver como ela constitui um limiar em que antropomorfismo e geomorfismo devêm reversíveis, o espaço em que o belo “humano” e o sublime “natural” se ecoam mutuamente, dando acesso a uma dimensão entre ambas que, na falta de melhor rótulo, podemos chamar de excêntrico – pois o movimento de mão dupla que o entre-espaço poético permite é ausente de um centro fixo, assim como a cidade de que trata o poema de Vallias, é excêntrica: singular, mas também um ex-centro.

Tomemos, por exemplo, as passagens “rio / logo / morro” e “morro / logo / rio”. Aqui, o suposto centro (visual, mas também sintático, pois articula a oração), o advérbio “logo”, é antes de tudo uma força centrífuga, elemento entre elementos que serve para produzir um movimento recíproco e ambivalente. Pois não só as posições de “rio” e “morro” se alternam, como também o seu sentido muda, com a mudança de sentido do advérbio: de substantivos que indicam elementos da paisagem (natureza), quando a sequência indicada por “logo” é tomada em sentido espacial a verbos que indicam ações humanas (cultura), quando a sequência é tomada em sentido temporal, de causa e consequência. Ou seja, o próprio “centro” é ele mesmo uma linha de fuga, um caminho de ida e volta. Daí que a topografia carioca se converta em uma topoética, em que os diversos sentidos de topos (geográfico, retórico, etc.) se ecoem e interajam com uma intensidade ímpar.

Desse modo, o experimento que é ORATORIO arranca da perícia métrica (seja da topologia de São Sebastião do Rio de Janeiro, seja do fazer poético), e da vida cotidiana de uma cidade parasitada por esquadrões da morte oficiais e para-oficiais (a “dança / macabra / e rubra / das falanges / e comandos”) que querem destruir toda experiência, algo que nenhum tratado de sociologia seria capaz de fazer – e tal arrancamento está na raiz de toda experiência: ex-perire, salvar da morte, mas também, atravessar (ex-) uma prova (per-), testar os limites, não para superá-los, e sim para chegar a uma dimensão que estes não atingem.

.

 

 

.




Comente o texto


*

Comente tambm via Facebook