Em tradução livre


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Ridicularizar erros de tradutores é um passatempo informal dos resenhadores de livros. Como me incluo em ambas as categorias, posso proclamar minha neutralidade. Ou, melhor ainda, meu completo envolvimento com os dois lados desse cabo-de-guerra.Traduzir não é uma ciência exata, e nem chega a ser uma ciência – é uma arte a mais na periferia da literatura. (Só nos resta lutar por um mundo onde a resenha de livros seja feita como arte também.)

Muitas pessoas de fora do mundo literário têm uma visão engenheira do que seja traduzir. Para elas, há uma correspondência ponto-a-ponto entre quaisquer duas línguas, de modo que basta ir ao dicionário e copiar o ponto que corresponde a cada palavra ou expressão do texto original. Na verdade, o que temos é uma nuvem turbilhonante de significados instáveis em inglês ou russo, e a tarefa de produzir uma nuvem de dinâmica parecida em português. O significado é uma resposta evocada na memória verbal de cada indivíduo por uma palavra ou expressão. Ninguém tem dois repertórios iguais, e um dos milagres da Civilização, mais do que a eletricidade ou o cimento armado, é o fato de que sejamos capazes de nos entender quando falamos. Isso se deve talvez ao fato de que dois terços de nossas comunicações verbais são uma imensa reiteração do óbvio, do visível e do já sabido.

Em seu blog Todo Prosa, Sérgio Rodrigues anuncia o Prêmio Nobel concedido ao chinês Mo Yan, cita seu livro “Life and death are wearing me out” e diz: “Algo como ‘A vida e a morte estão acabando comigo’”. Esse ‘algo como’ é a típica linguagem defensiva (equivalente a dizer “Em tradução livre: …”) com que a gente se protege quando os engenheiros da língua, de Webster em punho, questionam a expressão usada. Que aliás me parece correta, e eu não traduziria por outra – embora alguém pudesse preferir, sei lá, “estão me matando aos poucos”, ou, paraibanamente, “estão me deixando numa peínha de nada”.

Tradução livre é o álibi que invocamos quando, escrevendo às pressas, jogamos no papel nosso primeiro impulso verbal de reconstituição em português do que acabamos de ler, sem ligar para os regulamentos. Toda tradução deveria ser livre. Ser livre não garante que seja a tradução correta, nem que seja a melhor tradução; mas não ser livre também não garante coisíssima nenhuma. Quando o tradutor joga a toalha e diz: “É algo como…”, seu único e fugaz consolo é pensar que o autor original, seja Mo Yan ou Marcel Proust, tinha algo turbilhonando em seu cérebro, e, depois de muita luta em busca das palavras mais evocativas, da melhor cadência, da melhor arquitetura sintática, resignou-se também a dizer: “É algo como…”.

 

 

 

 

 

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Braulio Tavares é escritor e compositor. Estudou cinema na Escola Superior de Cinema da Universidade Católica de Minas Gerais, é Pesquisador de literatura fantástica, compilou a primeira bibliografia do gênero na literatura brasileira, o Fantastic, Fantasy and Science Fiction Literature Catalog (Fundação Biblioteca Nacional, Rio, 1992). Publicou A máquina voadora, em 1994 e A espinha dorsal da memória, em 1996, entre outros. Escreve artigos diários no Jornal da Paraíba:http://jornaldaparaiba.globo.com/ Blog: http://mundofantasmo.blogspot.com/ E-mail:btavares13@terra.com.br




Comentários (3 comentários)

  1. denise bottmann, que legal, bráulio, muito bem posto!
    30 outubro, 2012 as 2:27
  2. Maira Knop, …é, há muitos que traduzem, “tipo NET”, né??!!!, uma pena. Tradução é uma difícil arte, e não é para qualquer um.
    30 outubro, 2012 as 14:59
  3. Suzana Salles, Bacana, Bráulio… quando criança, lia em primeiríssima mão Luluzinha traduzida por minha mamãe Flora, com os balõezinhos numerados e seus correspondentes brasileiros em folhas datilografadas ( e rabiscadas E reescritas ), as mais deliciosas lembranças da infância…
    30 abril, 2013 as 12:59

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