em defesa de brenno


 

a revista domínios de linguagem dedicou seu último número (v. 5, n. 3, 2011, disponível aqui) à atividade de tradução. entre os artigos encontra-se “edgar poe em português: limites entre tradução e adaptação”, da autoria de élida paulina ferreira e karin hallana santos silva.

sem pretender me deter nos indiscutíveis méritos do artigo, faço inicialmente uma pequena retificação: a identificação entre tales of the grotesque and arabesque e histórias extraordinárias não passa de um tolo despautério editorial perpetrado pela abril cultural em 1978, que acabou gerando alguns equívocos. sobre o histórico do uso desse título histórias extraordinárias no brasil desde 1958 e os descaminhos pelos quais enveredou a partir de 1978, pode-se consultar meu artigo, “alguns aspectos da presença de edgar allan poe no brasil”, em esp. IV.3, aqui.

o reparo mais importante que tenho a fazer sobre o artigo de élida ferreira e karin silva, porém, diz respeito ao exemplo apresentado como prova dos acréscimos que brenno silveira teria feito ao texto original de edgar allan poe, no conto “berenice”:

Nesse âmbito, além de omissões também  observamos acréscimos de trechos. Quando o tradutor opta por acrescentar algo à tradução que não consta no original, ele amplia de forma a trazer mais elementos interpretativos, interferindo na recepção do texto e, eventualmente, criando uma imagem diferente desse texto na língua de chegada. (p. 26, negritos meus) o exemplo dado como acréscimo de algo “que não consta no original” é o seguinte, às pp. 26-7 (em destaque meu):

Poe: “I held them in every light – I turned them in every attitude. I surveyed their characteristics – I dwelt upon their peculiarities – I pondered upon their conformation – I mused upon the alteration in their nature – and shuddered as I assigned to them in imagination a sensitive power, and even when unassisted by the lips, a capability of moral expression. Of Mad’selle Sallé it has been  said, ‘que tous ses pas etaient des sentiments’, and of Berenice I more seriously believed que tous ses dents etaient des idées.

Silveira: “Via-os sob todos os aspectos; revolvia-os em todos os sentidos; estudava suas características. Refletia longamente sobre suas peculiaridades. Meditava sobre sua conformação. Cogitava acerca de sua natureza. Estremecia ao atribuir-lhes, em minha imaginação, uma faculdade de sensação e de sensibilidade e, mesmo quando não ajudados pelos lábios, uma capacidade de expressão moral. De Mademoiselle Sallé foi dito – aliás muito bem  – que ‘tous ses pás étaient des sentiments’, e, de Berenice, eu acreditava ainda mais seriamente que toutes ses dents étaient des idées! Des idées!- ah! Aqui estava o pensamento idiota que me destruiu! Des idées! –Ah era por isso que eu os cobiçava tão loucamente! Sentia que somente a posse deles poderia restituir-me a paz, fazendo-me recobrar a razão.”

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seria de fato surpreendente que brenno, um dos tradutores mais cuidadosos e atentos à letra e ao sentido das obras que traduzia, tivesse acrescentado à sua tradução as frases: “Des idées!- ah! Aqui estava o pensamento idiota que me destruiu! Des idées! –Ah era por isso que eu os cobiçava tão loucamente! Sentia que somente a posse deles poderia restituir-me a paz, fazendo-me recobrar a razão”, apenas a título de “comentário interpretativo”, como afirmam as autoras à p. 27.

na verdade, a questão é bem mais simples. trata-se apenas de duas versões diferentes de “berenice”: as  autoras tomaram como referência a versão de 1835, reproduzida na edição das TGA de 1840, ao passo que brenno silveira utilizou a versão definitiva, que poe havia estabelecido para publicação desde 1845. veja-se a versão final do texto de poe (negrito meu):

I held them in every light. I turned them in every attitude. I surveyed their characteristics. I dwelt upon their peculiarities. I pondered upon their conformation. I mused upon the alteration in their nature. I shuddered as I assigned to them in imagination a sensitive and sentient power, and even when unassisted by the lips, a capability of moral expression. Of Mademoiselle Sallé it has been well said, “Que tous ses pas etaient des sentiments,” and of Berenice I more seriously believed que tous ses dents etaient des idées. Des idées! — ah here was the idiotic thought that destroyed me! Des idées! — ah therefore it was that I coveted them so madly! I felt that their possession could alone ever restore me to peace, in giving me back to reason.

em suma, o tradutor não procedeu a qualquer acréscimo ou comentário interpretativo a esta passagem: o acréscimo fora feito pelo próprio autor, edgar allan poe, na versão definitiva de “berenice”, ela sim utilizada por brenno silveira em sua tradução.

 

 

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ainda sobre o artigo “edgar poe em português: limites entre tradução e adaptação”, da autoria de élida paulina ferreira e karin hallana santos silva, publicado na revista domínios de linguagem (v. 5, n. 3, 2011, disponível aqui), ter-se-ia que brenno silveira teria ferido “o princípio de fidelidade” e “quebra[do] a atmosfera de suspense e mistério” do conto “metzengerstein”, de poe, devido à “supressão” de vários trechos do original em sua tradução. de mais a mais, brenno teria alterado a idade de um dos personagens de quinze para dezoito anos.

como seria muito longo transcrever todos os trechos supostamente suprimidos, reproduzo aqui apenas o breve trecho em que brenno teria alterado a idade do protagonista, citado às pp. 25-26 do referido artigo:

Frederick was, at that time, in his fifteenth year. In a city fifteen years are no long period — a child may be still a child in his third lustrum: but in a wilderness — in so magnificent a wilderness as that old principality, fifteen years have a far deeper meaning.

Frederick contava, a essa altura, dezoito anos. Numa cidade, dezoito anos não são muito tempo; mas na solidão  – numa solidão tão magnífica como a daquele velho principado – o pêndulo vibra com um significado mais profundo.

as autoras consideram que se trata de uma opção proposital de brenno,* para adaptar o original ao contexto brasileiro, onde se atinge a maioridade aos dezoito anos, ademais suprimindo a frase “a child may be still a child in his third lustrum” para melhor adequar o texto em português a seus propósitos de “contextualização”. o veredito é o seguinte:

Essa contextualização, no entanto, implica uma interpretação distinta do original no que concerne à visão que se tem da personagem, uma vez que com quinze anos ele é considerado uma criança e explicaria suas atitudes diante da perda dos pais. Sendo um adulto o fragmento perde todo o sentido em português. [p. 26; negrito meu]

ok, magister dixit. veja-se, porém, o texto original de poe em sua versão definitiva:

Frederick was, at that time, in his eighteenth year. In a city, eighteen years are no long period; but in a wilderness — in so magnificent a wilderness as that old principality, the pendulum vibrates with a deeper meaning. (1850)

tal como no caso dos supostos acréscimos e do “comentário interpretativo” que brenno silveira teria incluído em sua tradução de “berenice” – e que comentei aqui -, também aqui, nas alegadas supressões e alterações que ele teria efetuado em sua tradução de “metzengerstein”, o simples fato é que, na verdade, as diferenças resultam da revisão que o próprio autor, edgar allan poe, fez em seu conto. a versão de “metzengerstein” utilizada por brenno é a definitiva, como consta na edição de 1850, ao passo que as autoras do artigo utilizaram a versão de 1840 para basear sua análise, apontar supostos acréscimos, supressões e contextualizações na tradução brasileira e tecer juízos sobre pretensas perdas de sentido em português, sobre uma alegada destruição da atmosfera de suspense resultante de tais supostas intervenções do tradutor e assim por diante.

não sei o que dizer. de certa forma, os fatos falam por si sós. mas fico com a impressão de que seria talvez desejável um pouco mais de pesquisa, de dedicação e humildade em relação ao objeto de estudo, até para conseguir entendê-lo melhor.

 

 

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* e de clarice lispector também, com sua adaptação tratada em paralelo com a tradução de brenno.

 

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[Do blogue não gosto de plágio]

 

 

 

 

 

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Denise Bottmann, curitibana, 56 anos, é historiadora e tradutora de ciências humanas e literatura, em inglês, francês e italiano. Mantém os blogs http://naogostodeplagio.blogspot.com e http://lendowalden.blogspot.com.  E-mail: dbottmann@uol.com.br e twitter @dbottmann.




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