Eis o mundo de fora – IV


 

IV

Comecei a morrer no dia em que nasci, a morte vive em mim desde o meu início, feito um parasita. A morte se fortalece com a minha vida.

Irene diz que é a morte de algumas células que faz nascerem outras, que a morte não existe e a vida é transformação e sinapses. Que todo fim é o começo de alguma outra coisa afinal, os finais vestem a morte de cores. Irene diz muitas coisas, nem sempre tenho ouvidos. Não gosto de pensar que estou morrendo para me manter vivo. Melhor morrer de vez, ou viver sem ter espaço para armazenar essas ideias. Mas, se Irene estiver certa, e a morte não existir não me sobra muito além de sobreviver aos intermináveis ritos de passagem.

Passo de um lado ao outro da cama embrulhando-me. Abro-me para a morte de mais um dia, é o final da tarde e da minha paciência. Os dias transformaram-se em corredores que levam a outros corredores. O mundo, na definição de Irene, é um lugar para ser caminhado.

Já não me suporto, nem à minha inércia, dói-me a consciência e o corpo. O dia inteiro deitado. Irene vai reclamar, eu sei, mas sei também que depois ela vai me ajudar a levantar executando o ritual de vida que a obrigo a cumprir desde meu quase suicídio.

Havia entre os antigos ritos de morte um que dizia ser necessária uma moeda de ouro na boca do defunto, pois, caso não pagasse a Hades, a alma estaria condenada a perambular para sempre às margens do rio Estige, sem permissão para entrar em seu reino. Hades é o encerramento, a milionésima fração de segundo antes que se possa enxergar o recomeço.

O reino dos mortos é habitado por todos os finais.

Era um final de semana, quase morto, domingo à tarde e eu tentava assistir a um filme no cinema. Quando a fila se desfez diante do aviso de sessão lotada encontrei Raul também abandonado pela fila. Sorrimos. Sorri ao ver Raul sem Silvio.

Conheci Raul no teatro. A peça já nem sei qual foi. Raul eu levei na retina, guardei impressões de seus dedos. No palco, dividimos cenas, equacionamos um amor mal resolvido. No camarim, multiplicou-se o meu tesão por ele, mas existia Silvio e Raul era fiel. Eu permaneci fiel a esse desejo e esperei.

Irene deve estar chegando.

Hoje o calor dos lençóis cozinha minha covardia enquanto espero que o suor se solidifique no meu rosto me livrando do desconforto de senti-lo escorrendo. Em vão. Os vãos de tempo entre uma e outra gota de suor, que prefiro contar, em vez de passar a mão pelo rosto ou puxar o lençol. Outra vez febril e esperando. Espero na cama que alguém aperte um botão e me ejete daqui. Meu colchão flutuará sobre a cidade, acima do bem, abaixo do mal.

Mal acreditei na minha sorte, por sorte Raul estava afastado de mim, enxergo melhor de longe. Hipermetropia 1,5 grau no olho esquerdo e 2,25 no direito.

A espera na longa fila do cinema rendeu um encontro, saímos para um café. O café foi pretexto para conversarmos a sós, para executarmos na vida uma cena de Teatro Mínimo. As palavras sobravam, olhares e sorrisos cumpriam seu papel nas lacunas da fala. Dizíamos o indizível. A geometria ajudou, encontramos pontos de convergência nos nossos gostos. Gostei do toque azul do olho dele no meu. Ofereci-lhe o meu melhor sorriso e o meu músculo cardíaco. Pulsando. Ele recebeu.

Concentro agora a pulsação nos dedos, tateando a virilha, estimulando minhas mucosas, buscando meus fluidos corporais, procurando resquícios de Raul no pensamento e nos poros para me sentir outra vez vivo. Meus dedos, eretos, se recusam a seguir, Raul foge de mim. O gozo permanece lembrança.

Raul abriu a porta do quarto do motel e entrou na minha vida, invadiu a minha morte e as minhas veias. Espalhou o meu suor pelo corpo e me levou para o seu paraíso particular.

Fui barrado na porta do inferno, estou no limbo protegido pelos meus lençóis, o único som possível é o ranger dos nervos do colchão. E o telefone tocando na sala.

Irene já devia ter chegado.

Hades sempre cobra seu preço. Engoli a moeda colocada na minha boca, por isso ele agora arranca as minhas tripas.

Não é a mão de Raul que acaricia o meu pau. É minha a mão que me trata como uma criança travessa, descobrindo. Manipulando o meu membro com pouca vontade. É minha a mão que me nega um ato de virilidade. Porque minha mão acredita que estou morto. E nos mortos essa virilidade é exercida de maneira sutil, pelo sorriso.

Abortei a tentativa de masturbação.

Não se entra no reino da morte vestido. Conheci as mãos de Raul, a saliva macia, sua boca aberta, engolindo-me pedaços e líquidos. Acordamos o dia no final da noite gozando o fato de sermos machos. Fomos homem um para o outro.

O telefone gritando por alguém e Irene ainda não chegou.

Dizem que a vida é o domínio de Eros, mas Hades e Eros são cúmplices porque o sexo também traz um tipo de morte, um abandono no corpo do outro, um desmaio. Perdi meus sentidos sentindo os cheiros de Raul. Foi loucura, tesão, questão sem resposta.

Raul me disse sim quando, no café, perguntei se ele queria ir para um outro lugar.

Respondi “Alô” ao telefone.

 

 

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Adrienne Myrtes nasceu no Recife/Pernambuco e vive em São Paulo desde 2001. É também artista plástica. Publicou o livro de contos: A Mulher e o Cavalo e outros contos (Editora Alaúde, EraOdito Editora, 2006), a novela juvenil: A Linda História de Linda em Olinda (Editora Escala educacional, 2007) este último em parceria com o escritor Marcelino Freire e participou, das antologias Os Cem Menores Contos Brasileiros do Século (Ateliê Editorial, 2004) e 35 Segredos para Chegar a Lugar Nenhum – Literatura de Baixo-Ajuda (Bertrand Brasil, 2007) entre outras. E-mail: adriennemyrtes@hotmail.com




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