Editar ou não editar – eis a questão!


Os problemas fora do lugar: editar ou não editar – eis a questão!
(perdeu-se o curso, e o discurso se perdeu)

Autores não escrevem livros, nem sequer seus próprios livros. Livros (…) sempre são resultado de múltiplas operações que supõem uma ampla variedade de decisões, técnicas e habilidades. (Roger Chartier, A mão do autor e a mente do escritor)

 

Quando tomei conhecimento do protesto de alunos da turma de Ecdótica (disciplina obrigatória do curso de Editoração da ECA-USP) contra o veterano professor, ainda não tinha informações detalhadas sobre a gênese da polêmica e seus desastrosos desdobramentos. Sabia basicamente que a classe recusou a proposta de reeditar a obra Romance Tropical, de Théo-Filho, publicada em 1944, sob a alegação de que seu teor racista e misógino era frontalmente contrário às lutas contra a opressão. Através de diferentes fontes, então, fui recebendo alguns textos fundamentais para me pôr a par das questões problematizadas: o artigo de um conhecido colunista da Folha de S. Paulo condenando a atitude “autoritária” dos futuros editores, a mensagem de um ex-diretor do curso e experiente editor chamando à razão os alunos exaltados, outra de uma professora da instituição ponderando com o colega sobre a provável causa desencadeadora dos ataques furiosos, mais uma de uma estudante tentando acalmar os ânimos bélicos dos pares, outro de um notável acadêmico, crítico literário e ex-diretor da Editora da Unicamp, solidário com o docente bombardeado, e, evidentemente, o e-mail acusatório do indignado grupo discente. Convém esclarecer que, se não nomeei os enunciadores, identificando-os apenas por seus respectivos papéis institucionais, é menos porque todos já sejam conhecidos pelas partes interessadas do que para evitar a tão sedutora quanto perigosa “personalização” do debate: afinal, o que nos importa aqui é focalizar o objeto, cuidando de não o eclipsar pela projeção individual dos sujeitos. Aliás, por falar nisso, em que pesem sejam corretos muitos dos argumentos do articulista da Folha, seu grande equívoco foi exatamente iniciar o texto já com o nome do professor, seguido de suas notáveis credenciais acadêmicas: a aparente “fulanização”, certamente, acabou dando margem a que seus opositores arguissem se tratar de artigo feito sob encomenda, publicado em defesa particular do amigo – parcial e tendencioso, portanto – e não da causa em si. A propósito, diante desse descuido do autor, em tom de desaprovação pelo uso do recurso retórico ad hominem, lembraria a ele – repetindo a proverbial sabedoria popular – que nada pode ser pior para uma boa causa do que um mal defensor.

Posto isso, aproveito a deixa para deixar bem claro que, apesar de conhecer há três décadas o articulista, tendo profundas divergências quanto às suas posições políticas, nunca o poupei de duras críticas, que nos custaram inclusive o afastamento: isso não implica, contudo, que não possa eventualmente concordar com certos posicionamentos dele, como é o caso do polêmico texto. Convém dizer também que conheci o professor na mesma época, e que ele, diferentemente do outro, é um amigo com quem tenho grandes afinidades éticas e estéticas: isso não significa, entretanto, que tenha o compromisso de defendê-lo em quaisquer situações. Aos meus amigos, aliás, sempre deixo bem claro um rígido princípio norteador de minha conduta, que Hemingway me ajudou a formular: se a lealdade, em se tratando da amizade, é de fato uma virtude, em matéria de juízo crítico, pode levar a distorções pavorosas. Para bom entendedor, é dispensável legenda; todavia, não sendo este o caso da maioria dos leitores, é indispensável “desenhar”: se um amigo defender uma causa equivocada e for atacado, o máximo de lealdade devotada a ele seria eu me silenciar, não me somando àqueles com cujas críticas concordo para não ajudar a destruí-lo. Em contrapartida, se os valores que ele defender estiverem de acordo com os meus, nem precisaria me lançar em sua defesa porque, lançando-me antes em defesa deles, consequentemente eu já o estaria defendendo também. Qualquer semelhança neste infausto caso específico, é claro, não haveria de ser mera coincidência: sem precisar “personalizar” a defesa, não poderia deixar de defender o amigo (ainda que – ainda bem! – não explicitamente) por não poder deixar de defender – em primeiríssimo e exclusivo lugar – os princípios basilares em que ambos cremos.

Levando isso em conta, aliás, entre os vários textos que me chegaram às mãos – todos lidos e relidos muito atentamente – e que poderiam servir de pretexto para dar início à minha análise dos fatos, nenhum haveria de cumprir melhor papel do que o dos alunos: até diria a eles – evocando às avessas aquela proverbial sabedoria popular – que nada pode ser melhor para uma causa ruim do que um péssimo defensor. Sendo mais direto, o que quero dizer é que, no ímpeto juvenil iconoclástico de destruir a reputação do experiente professor que ousou contrariá-los, a garotada acabou trocando os pés pelas mãos, dando tiro no próprio pé: diante das imperícias do libelo, pois, nem seria preciso mesmo defendê-lo ou atacá-la, porque, atacando-o, ela mesma acabaria se tornando – tragicomicamente – a sua própria melhor acusadora. Antes de comentar detalhadamente alguns parágrafos do e-mail, apontando as inúmeras falhas que desautorizam as críticas, sublinho que os pretensiosos alunos atribuíram a si uma suposta “credibilidade” que, em primeiro lugar, os legitimaria frente ao articulista “leigo”, e, em segundo, estaria sendo abalada pela tal atitude “antiética” do professor, que alegam tê-los exposto – e ao curso – na grande imprensa. O que gostaria de mostrar-lhes, pois, é que a falta de “credibilidade” é de sua única e exclusiva responsabilidade, uma vez que o seu próprio discurso atesta inequivocamente o enorme despreparo da turma – tanto intelectual quanto técnico – para assumir um papel que exige o concurso de uma série de saberes.

A quem é da área é redundante dizer que, para ser editor, em linhas gerais, é preciso, em primeiro lugar, ter sólido repertório de leitura – de obras de diferentes gêneros, países e períodos históricos. Em segundo lugar, é necessário ter conhecimentos específicos de ordem linguística (por exemplo, o que são variantes históricas, regionais, sociais e de situação) e paralinguística (tanto “supratextuais” – como o uso de itálico, negrito, aspas, etc. – quanto “paratextuais” – como a elaboração de índices, glossários e notas, por exemplo). Em terceiro, é fundamental ter informações quantitativas e qualitativas sobre o mercado editorial (que gêneros vendem mais, a que perfil de leitor se destinam os livros, que obras fora de catálogo merecem reedição, etc.). Sem mais, enfim, para não cansar o público especializado com tantas obviedades, apresentarei a seguir, respectivamente, os trechos do e-mail – entre aspas – e os meus comentários pontuais sobre os comprometedores deslizes:

 

Com esse email, viemos aqui apresentar nossas justificativas para a não publicação do livro. A primeira justificativa (…) foi a do racismo explícito da obra. (…) No contexto, que o próprio professor chamou de democrático, nós decidimos pela não publicação do livro, a partir de uma votação, após ouvir argumentos contra e a favor da publicação. Em primeiro momento, achávamos que tínhamos sido acatados, mas logo percebemos que não, quando a discussão foi retomada mais duas vezes em aula, com falas que poderiam soar racistas, por exemplo, afirmar que não vê cor, assim como dizer “eu não me sinto branco” (…). Além disso, o professor chegou a cantar um trecho de uma marchinha racista, desencadeando reações negativas em vários alunos.

 

  • Como ponto de partida, chamo a atenção dos “futuros editores” para as impropriedades gramaticais do parágrafo introdutório: o pronome demonstrativo “esse”, empregado como “dêitico”, produz efeito de sentido de distanciamento, incompatível, portanto, com o advérbio de lugar “aqui”, que põe em presença os enunciadores. O gênero textual “e-mail” – atenção! – é grafado com hífen: a forma “email”, pois, está em desacordo com o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP). Quanto à flexão verbal de tempo, a forma “viemos” está no pretérito perfeito: se a enunciação é “aqui e agora”, o verbo “vir” deveria estar flexionado no presente, cuja forma correta, na primeira pessoa do plural, é “vimos”.
  • Outro problema, agora no nível da “coerência textual”: se o objetivo do e-mail é “apresentar as justificativas”, no plural, isso implica ao menos duas, certo? Os autores, contudo, só apresentaram uma: “o racismo explícito”. Aliás, o adjetivo – com o perdão do trocadilho – explicita outro problema: se fosse “implícito”, o racismo não seria mais justificativa para a “não publicação do livro”?
  • Além do fato de que “a primeira justificativa” pressupõe que haja outra, que não foi apresentada, comprometendo a progressão argumentativa, a repetição do termo “justificativa” deveria ter sido evitada. Do ponto de vista estilístico, como recurso coesivo, ela produz a impressão negativa de pobreza vocabular. Seria recomendável que os autores, retomando a ideia com outra palavra, procedessem à “coesão lexical” substituindo-a, por exemplo, pela palavra “razão” (ou “motivo”). Como se dissessem que repetição pouca é bobagem, para piorar, ainda a deixaram implícita pelo emprego coesivo – absolutamente desnecessário – do artigo “a”, na construção “foi a [justificativa] do racismo”. Reescrevendo o trecho, pois, se fossem mais criteriosos, teriam dito: “O primeiro motivo foi o racismo”. Aliás, em atenção à eufonia, “motivo” seria preferível à palavra “razão”, evitando a “colisão” – tipo de “vício de linguagem” – com o /r/ de “racismo”.
  • Considerando que o objetivo do e-mail seria “apresentar as nossas justificativas para a não publicação do livro”, mais do que dizer sumariamente que a “votação” se deu “após” – é óbvio – a classe “ouvir argumentos contra e a favor da publicação”, as duas posições deveriam ter sido explicitadas: ou seja, seria imprescindível que apresentassem quais foram, em síntese, as linhas argumentativas determinantes de cada lado.
  • Como quem pensa mal escreve mal – e problema pouco é bobagem -, os displicentes discentes descontentes (a “colisão” e o “eco” enfatizam os “vícios” – não só de linguagem) construíram um nexo de causalidade incoerente entre os fatos, conforme se depreende (quantos “ecos”!) deste trecho: “achávamos que tínhamos sido acatados, mas logo percebemos que não, quando a discussão foi retomada mais duas vezes em aula”. Para não haver dúvida, é prudente “desenhar”: o fato de a discussão ser retomada não implica que a escolha não tenha sido acatada, porque o debate posterior não teve por finalidade propor nova votação, mas estimular uma reflexão mais profunda, autocrítica, sobre um relevante posicionamento editorial assumido há pouco. A estreiteza de visão dos irascíveis, focalizando o professor como o touro ao pano vermelho, não os deixou ver que o romance “racista”, na verdade, era apenas um exemplo metonímico de como um editor procederia diante de obras literárias em desacordo com valores culturais, religiosos, morais e éticos, ou com princípios políticos e ideológicos.
  • Para problematizar o argumento do “racismo explícito” que justificaria a não publicação do livro Romance Tropical, perguntaria aos alunos se ele valeria também para condenar o autor inaugural da literatura do Ocidente. Um “futuro editor” certamente terá lido Homero, e não haverá de ignorar, portanto, o que o bardo cantara no introito da Odisseia, rotulando os etíopes como “gente remotíssima, de cara queimada”, que “vivem no Oriente”, bem perto de “onde ele [Hipérion, o Sol] nasce.” (HOMERO. Odisseia, v.1: Telemaquia. Tradução do grego, introdução e análise de Donaldo Schüler. Porto Alegre: L&PM, 2014, p. 13). Não faltam também exemplos na obra daquilo que à época – em que era prática comum o “rapto de mulheres” – estava muito longe de se acusar de “misoginia”, conforme se depreende deste trecho em que Telêmaco, no papel falocêntrico do pai ausente, trata Penélope como ser subalterno, mostrando à mãe seu “lugar” – de reclusão, de silêncio – na sociedade machista grega antiga: “Recolhe-te, pois, a teus aposentos e cuida dos teus afazeres: o tear e a roca. Queres que tuas criadas te acompanhem? Retira-te com elas. Discurso é tarefa de homens, sobretudo minha. Quem manda nesta casa sou eu.” (Obra citada, p. 31).
  • Aliás, como os intempestivos críticos do professor tentaram difamá-lo por ter cantado “um trecho de uma marchinha racista, desencadeando reações negativas em vários alunos”, perguntaria a eles se valeria o mesmo argumento se ele – profundo conhecedor da cultura clássica – houvesse recitado – com seus “pulmões épicos” e voz tonitruante – esses versos homéricos. Aproveitando a deixa, se o acusado comentasse, logo após, que “não vê cor” em Homero, porque o conjunto de sua obra é uma súmula dos grandes dilemas existenciais do homem, atravessando tempos e espaços como grande clássico da literatura universal, essa seria uma das tais “falas que poderiam soar racistas”?
  • Para dar mais um exemplo, citando outro gênero discursivo sem sair do berço grego fundador, gostaria de saber o que diriam os escolásticos defensores do “politicamente correto” se o professor propusesse a reedição dos diálogos filosóficos da Política de Platão, citando provocativamente estes trechos para aguçar a consciência crítica dos “editores do futuro”: “Lembras-te que falamos desta arte que concede um poder autodiretivo sobre os animais e que deles cuida não individual, mas coletivamente, e a qual, aliás, logo chamamos de arte de cuidar de rebanhos? (…) Quanto aos animais domésticos, à parte os escravos, poderemos incluí-los na arte de cuidar de rebanhos (…). Uma raça de tribos numerosas, ao que parece à primeira vista. São homens que em grande número se parecem com leões, centauros e outros monstros dessa espécie e que, em maior número ainda, se assemelham a sátiros e outros animais fracos (…).” (PLATÃO. Diálogos. In: Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979, pp. 206, 237 e 239).
  • Não seria absurdo supor – diante de tantos absurdos – que os empoderados votantes, além de rejeitar as obras de Homero e Platão, recusariam também reeditar Aristóteles, somando este trecho do Estagirita ao rol de acusações de “falas [do professor] que poderiam soar racistas”: “Há também, por obra da natureza e para a conservação das espécies, um ser que ordena e um ser que obedece. Porque aquele que possui inteligência capaz de previsão tem naturalmente autoridade e poder de chefe; o que nada mais possui além da força física para executar, deve, forçosamente, obedecer e servir (…). Há na espécie humana indivíduos tão inferiores a outros como o corpo em relação à alma, ou a fera ao homem; são os homens nos quais o emprego da força física é o melhor que deles se obtém (…), tais indivíduos são destinados à escravidão (…).” (CARBONI, Florence e MAESTRI, Mário. A linguagem escravizada: língua, história, poder e luta de classes. São Paulo: Expressão Popular, 2012, p. 82-83).
  • Para concluir, enfim, sem deixar passar nenhum detalhe dos tantos deslizes, faço ainda aos “futuros editores” mais um reparo de ordem gramatical ao parágrafo, lembrando-lhes que não se deve usar o mesmo complemento para dois termos com regências diferentes: o correto seria dizer, portanto, “contra a publicação do livro e a favor dela”, e não “contra e a favor da publicação”. Outra alternativa, caso quisessem empregar o mesmo complemento, seria substituir a preposição “contra” e a locução prepositiva “a favor de” pelos adjetivos “contrários” e “favoráveis”, que regem a mesma preposição “a”: nesse caso, evidentemente, não seria errado dizer “argumentos contrários e favoráveis à publicação”.

 

Ficamos tranquilos com o fato de não termos nossos nomes vinculados a um livro cujo conteúdo não concordamos, por questões que vão além de estéticas, como seria se estivéssemos na ficha de créditos da obra. Imaginem, no entanto, nossa surpresa ao perceber que não somente nossos nomes estão ligados à polêmica, agora pública, por meio deste email, mas também nosso curso ─ já tão defasado e pequeno ─, marcado para sempre por um artigo na Folha de S. Paulo, que nos julgou puramente identitários, não abordando nossas razões, nossas vivências e nossas escolhas.

 

  • Como besteira gramatical pouca é bobagem, depois do deslize de regência nominal na construção “contra” e “a favor”, os “futuros editores”, tão zelosos pela “credibilidade”, escorregaram na regência verbal com o pronome relativo “cujo”. Na construção “um livro cujo conteúdo não concordamos”, faltou a preposição “com”, regida pelo verbo transitivo indireto “concordar”: o correto, pois, seria dizer “um livro com cujo conteúdo não concordamos”.
  • Se esse problema de “coesão”, contudo, não afetou a “coerência”, o mesmo não se pode dizer deste ambíguo excerto: “nossos nomes estão ligados à polêmica, agora pública, por meio deste email (sic)”. O adjunto adverbial “por meio deste e-mail” (com hífen, por favor) pode estar associado tanto à palavra “polêmica” quanto ao termo “pública”, permitindo duas interpretações: os “nomes” estariam relacionados “à polêmica” em razão do e-mail, ou a polêmica teria se tornado “pública” por causa “deste e-mail”? Ou será que os seus “nomes” estariam associados à “polêmica” e ambos, logo, tornados indissociavelmente “públicos” – a intenção deles não era fazer um trocadilho – “por meio deste e-mail”? Em uma ou noutra hipótese, enfim, se os seus “nomes estão ligados à polêmica”, ou se ela se tornou “pública” e automaticamente os expôs, única e exclusivamente em razão do “e-mail”, que culpa haveria de ter o professor, que não o escreveu e sequer o assinou? Aliás, se o “e-mail” é assinado pela “turma de Ecdótica do curso de Editoração da ECA-USP”, sem a identificação de quaisquer alunos, como seus “nomes” – anônimos – poderiam estar ligados explicitamente ao problema?
  • Aproveitando a deixa, como uma polêmica tão específica, associada a uma turma novata e inexpressiva de um dos cursos da ampla grade curricular da Editoração, poderia ter maior alcance, a ponto de afetar a imagem de todo o curso? A propósito de tamanho despropósito, além de a turma atribuir-se uma importância muitíssimo maior do que de fato tem, atribui à Folha de S. Paulo – convenhamos – um papel muitíssimo maior do que sua magérrima silhueta hoje sustenta. Ainda que o periódico tivesse mais consistência e relevância, enfim, é de uma ingenuidade pueril crer que um mero artigo de opinião circunstancial tenha o poder de “marcar para sempre” qualquer objeto criticado, por mais relevante que de fato o fosse: muito menos, é claro, em se tratando de um curso universitário “já tão pequeno e defasado”, quase ignorado pela maioria dos poucos – e predominantemente leigos – leitores de jornal. Quantos, dessa ínfima minoria, saberiam qual disciplina ministra o professor que, segundo o jornalista, “dedica-se a (re)descobrir e oferecer ao público textos literários de qualidade que foram esquecidos pelo mercado editorial”? Aliás, se porventura eu publicar este texto, como citei a palavra “Ecdótica” sem aposto explicativo, quantos – dos pouquíssimos interessados – não consultariam o Houaiss para saber que se trata da “ciência que busca, por meio de minuciosas regras de hermenêutica e exegese, restituir a forma mais próxima do que seria a redação inicial de um texto, a fim de que se estabeleça a sua edição definitiva”?
  • Aliás, não fosse esse delírio narcísico tão tipicamente juvenil, quadro sintomático em que a autoimagem hiperbólica – como num espelho de circo – simula a grandeza para dissimular a pequenez, a intrépida trupe liliputiana não usaria palavras bem maiores do que os objetos, muito mais pesadas que os seus ombros suportam. Um “futuro editor” deveria saber, obviamente, que, dos meios impressos de registro e circulação da memória, o jornal – antípoda do livro – é o de maior alcance, mas menor profundidade e duração. O artigo que supostamente teria ferido a “credibilidade” (palavra grande, boa para jogar “forca”) que os “futuros editores” – sem qualquer “prova real” de competência – supostamente teriam, no dia seguinte já virou embrulho de peixe, tapete de banheiro de boteco, recorte de trabalho escolar, aviãozinho, chapéu de Napoleão, privada de cachorro, forro de sapato, calço de mesa, cama de mendigo, lixo. Quando os tão catastrofistas quanto ingênuos alunos creem que um gênero em suporte textual descontínuo, fragmentado e efêmero – mesmo em meio digital – possa eternizar qualquer memória, marcando algo ou alguém “para sempre”, ignoram que o jornal é, em certa medida, como o “librillo de memoria” de Dom Quixote, aquele objeto paradoxal em que “anota-se tudo que não se quer confiar à fragilidade da memória, e que se apaga depois para que suas folhas possam ser usadas de novo”. Na semana seguinte, sob o nome do mesmo articulista, o artigo já terá sido sobre outro assunto: ou seja, provavelmente nenhum de seus leitores, quiçá nem mesmo o autor, se lembrará hoje daquela crítica aos “futuros editores” pela recusa (ou “censura”) em reeditar uma obra literária – absolutamente desconhecida do público -, por mero “purismo” (ou “fundamentalismo”) “identitário”.
  • É muito sintomática também a reclamação, tipicamente adolescente (o “vício” do “eco” não nega), de que o artigo os teria julgado “não abordando nossas razões, nossas vivências e nossas escolhas”. Perguntaria à garotada reclamona, então, quais seriam exatamente as razões de sua escolha, já que o e-mail que li e reli, prometendo “apresentar as justificativas para a não publicação do livro”, não cumpriu a promessa. A sua notória dificuldade em “apresentar” com objetividade e clareza os termos do debate, as teses defendidas por ambos os lados, os percursos argumentativos conflitantes, enfim, produz uma imagem negativa do enunciador coletivo. Em outras palavras, as inúmeras inconsistências e impropriedades – retóricas e gramaticais – dão ao leitor do e-mail a impressão de grande imaturidade e enorme fragilidade intelectual dos alunos. A falta de “credibilidade”, pois, não é decorrência das duras críticas do articulista, tampouco obra “maquiavélica” do professor tão duramente criticado, mas resultante da “discurseira de arrastão” (ah, Mário de Andrade!) da própria “turma de Ecdótica do curso de Editoração da ECA-USP”. É sempre mais fácil acusar o outro do que assumir as responsabilidades por suas próprias deficiências: como cantou Caetano, “Narciso acha feio o que não é espelho” – não é mesmo assim? A autocrítica, afinal, é sempre um parto dificílimo…

 

(…) um jornalista que provavelmente não leu o livro da forma que lemos. Em aula fizemos a transcrição fidedigna e a modernizada, revisamos e escrevemos os paratextos do livro e, por isso, achamos que temos alguma propriedade para dissertar sobre os aspectos dele.  Dessa forma, não deixamos de nos questionar: estaria o jornalista apenas repetindo as palavras do professor De Paula? Ou estaria ele criando um discurso a partir de algo que ouviu? De qualquer maneira, ele não tem a mesma credibilidade de falar sobre a obra quanto nós temos. Já estamos envolvidos com o livro há meses, ainda que sejamos apenas ‘alunos do segundo ano’ (…).

 

  • Como presunção pouca é bobagem, e os calouros do ano passado já se veem no espelho narcísico como “futuros editores”, não seria de estranhar que acreditem ter mais “propriedade para dissertar” sobre o livro do que qualquer leitor muito mais experiente que não tenha cursado Editoração. É o caso, por exemplo, do articulista da Folha, que tentam deslegitimar por tê-los criticado impiedosamente, sob o falacioso argumento de que “ele não tem a mesma credibilidade de falar sobre a obra quanto nós temos” – no suposto lugar autorizado de estudantes de Editoração. Apesar de eu ter muitas divergências com o jornalista, conforme deixei claro aqui, jamais haveria de negar o óbvio: o desafeto é um grande intelectual, com sólida formação acadêmica e autor de diversas obras de referência na área de Geopolítica. Como fomos colegas de sala de aula por alguns anos, e também trabalhei por uma década em um jornal editado por ele e José Arbex Jr. (ex-correspondente internacional da Folha e ex-editor da Caros Amigos), posso lhes assegurar que o articulista tem muito mais experiência profissional (como se os alunos tivessem muita, né?), repertório cultural e “credibilidade” editorial do que os “segundanistas” da ECA-USP. Em vez de tentarem se valer de um argumento de autoridade que não tem, portanto, almejando descredenciar o adversário, deveriam provar sua suposta competência replicando os argumentos do artigo. Se os pretensiosos estudantes insistem tanto em afirmar que podem “dissertar” com mais “propriedade” sobre o tal livro, por que não o fizeram no e-mail? Vejam só que argumento mais ingenuamente insustentável: ao mesmo tempo que afirmam não ter ele – que dissertou sobre o livro – “a mesma credibilidade de falar sobre a obra” quanto os alunos de Ecdótica teriam, os “especialistas” não escreveram uma linha sequer sobre o preterido Romance Tropical.
  • Inebriados pela nociva soberba universitária, que paradoxalmente deixou ainda mais evidente a sua inépcia, o descarado coro dos descontentes acredita – por inacreditável que pareça – que bastaria dizer que “fizemos a transcrição fidedigna e a modernizada, revisamos e escrevemos os paratextos do livro”, e que “já estamos envolvidos com o livro há meses”, enfim, para serem dignos de “credibilidade”. Depois de tanto trabalho, como prova efetiva do envolvimento com a obra, por que não explicaram, por exemplo, as diferenças entre a “transcrição fidedigna e a modernizada”, comentando os critérios para a atualização do texto, bem como esclarecendo a função editorial dos elementos paratextuais para orientar a leitura? A propósito dos despropósitos, outra pergunta que não quer/não pode calar: a imperdoável omissão teria sido mesmo por mera ignorância, ou por não quererem revelar o quanto realmente aprenderam com o experiente e dedicado professor, que tanto vêm difamando?
  • Por falar nisso (mais uma vez), não poderia concluir os comentários do parágrafo sem apontar (mais uma vez) uma falha de “coesão” de quem não tem “credibilidade”, comprometendo a “coerência textual” porque afeta a progressão argumentativa. A expressão anafórica “dessa forma” – retomando os comentários sobre os trabalhos de transcrição, atualização e revisão, bem como de elaboração dos paratextos, como argumento de autoridade para “dissertar com propriedade” sobre o livro – não fundamenta o irônico questionamento subsequente. Ou seja, o termo não costura as ideias para fundamentar a leviana seguinte pergunta retórica: “estaria o jornalista apenas repetindo as palavras do professor De Paula? Ou estaria ele criando um discurso a partir de algo que ouviu?”. Para não perder tempo explicando o óbvio – isto é, que “dessa forma” não liga o que foi dito antes com o que se perguntou depois -, vou direto aos pontos críticos: em primeiro lugar, o articulista tem suficiente bagagem cultural e autonomia intelectual para não precisar repetir palavras de ninguém; em segundo, o professor não lhe encomendou o texto, mas tão somente confidenciou a um velho amigo sua frustração com os frouxos motivos da recusa – tão equivocada quanto intransigente – dos alunos em publicar o livro. Se fosse eu o seu confidente, confesso-lhes que procederia da mesma forma: considerando a relevância do problema, a superficialidade dos argumentos e a soberba dos “futuros editores”, escreveria uma crítica ainda mais contundente – ainda que em outros termos, sem os rotular de “evangelistas” ou os caricaturar como “inquisidores” – contra os incautos jovens presunçosos: sem me dar sequer ao trabalho de consultar ou pedir autorização ao velho amigo. Aliás, vale ressalvar que este artigo não poderia mesmo ter sido encomendado – que fique bem claro, como tudo o que escrevo – pelo professor: a minha mão só obedece, afinal, ao comando da minha consciência.

 

A votação ‘democrática’ em aula parece não ter sido válida, já que saímos prejudicados em uma escala potencialmente nacional, com nossos futuros empregos em risco e a nossa credibilidade em dúvida, além de sujar a imagem da ECA nacionalmente, mesmo tendo a impressão de que a única pessoa que desonrou com o contrato, de aceitar a votação independente do resultado, tenha sido o professor (…).

 

  • Como redundância pouca é bobagem, lendo o início deste parágrafo, tenho a impressão de estar ouvindo a mesma faixa no “repeat”: mais uma vez, a mesmíssima ladainha da “votação ‘democrática’ em aula [que] parece não ter sido válida”, sob o mesmíssimo argumento de que o professor “antiético” não teria aceitado o resultado, apelando à grande imprensa para punir os alunos e expor o curso publicamente, comprometendo-lhes a suposta “credibilidade”. Em primeiro lugar, e pela milésima vez, não há dúvida de que o pleito foi válido, e que o professor não desrespeitou a vontade da maioria: o repudiado livro de Théo-Filho, afinal, não será reeditado. Esse argumento só poderia ser levado em conta, pois, se o professor – ainda que excluísse os nomes dos alunos dos créditos, respeitando-lhes parcialmente a vontade – levasse a cabo a publicação do Romance Tropical. Como não foi este o caso, é não só improcedente, mas também leviana – vejam bem – a acusação de que ele teria “desonrado o contrato”. Aliás, como besteira gramatical pouca é bobagem, não custa lembrar aos despreparados “futuros editores” que o verbo “desonrar” é transitivo direto, ligando-se ao objeto “contrato”, logo, sem preposição: se fossem mais zelosos com a regência verbal, para não pôr em risco a tão preciosa “credibilidade”, não teriam dito que ele “desonrou com o contrato”.
  • A bem da verdade, é fundamental deixar claro que, ainda que não estivesse errada a regência, de toda forma estaria errada a frase acusatória: afinal, se o “contrato” se referia apenas à “votação democrática” sobre a publicação ou não da obra, e a recusa majoritária da classe foi respeitada, a acusação de que o professor a teria desonrado é inverídica. A propósito de tantos despropósitos, devo alertar os irresponsáveis acusadores de que não só estão sendo injustos com ele, mas sobretudo que estão cometendo graves crimes contra a sua honra: acusando-o de racista, e sendo o racismo tipificado como crime, os alunos podem ser processados por “calúnia”; como a acusação compromete a sua reputação profissional, os alunos podem ser processados por “difamação”; considerando que os epítetos jocosos afetam sua “honra subjetiva”, abalando sua autoestima, os alunos podem ser processados por “injúria”. Em síntese, para concluir, os alunos acusam e condenam sem provas o professor, caluniando-o, difamando-o e o injuriando: por crime de racismo que não cometeu, por discurso reacionário que não fez, por comportamento antiético que não teve. Em contrapartida, o e-mail é prova da gravidade das acusações que vêm provocando efeitos danosos nas relações profissionais e pessoais da vítima: exposta tão leviana, cruel e ostensivamente ao descrédito e à vergonha, sob afirmações vagas e exemplos descontextualizados.
  • Se ainda estivesse lecionando, usaria este e-mail como antimodelo de redação, para mostrar aos meus alunos tudo o que não se deve fazer em um texto. Numa aula sobre “coesão e coerência”, por exemplo, viria bem a calhar este trecho: “A votação ‘democrática’ em aula parece não ter sido válida, já que saímos prejudicados em uma escala potencialmente nacional (…)”. Chamaria a atenção da turma para o nexo de causalidade equivocado estabelecido pela locução conjuntiva “já que”, mostrando-lhes que o suposto fato de “sair prejudicado” pelo artigo da Folha de S. Paulo não produz como efeito a invalidação da votação: a exposição pública na imprensa não é causa da deslegitimação do pleito (que, aliás, não houve, porque a decisão majoritária – repito – foi respeitada: o livro não será publicado), nem implica que estejam os “futuros empregos em risco”.  Como já apontei, um artigo circunstancial, sobre um fato específico que não teve desdobramento na imprensa, envolvendo um pequeno grupo de estudantes de um curso pouco conhecido, não haveria de produzir consequências maiores, sobretudo num futuro longínquo, não é mesmo?
  • Como o coro dos descontentes reitera a acusação de que o articulista e o professor, em conluio, teriam agido para colocar a sua suposta “credibilidade em dúvida”, gostaria de lembrar-lhes uma lição do linguista José Luiz Fiorin sobre a construção da imagem de autoridade do enunciador, evocando primeiro a Retórica de Aristóteles. Segundo o Estagirita, vejam bem, “é preciso que essa confiança seja resultado do discurso e não de uma prevenção favorável a respeito do orador [modernamente, do enunciador].” Esclarecendo os princípios da Nova Retórica, Fiorin vai direto ao ponto: “Em termos mais atuais, dir-se-ia que o ‘éthos’ não se explicita no enunciado, mas na enunciação. Quando um professor diz ‘eu sou muito competente, está explicitando uma imagem sua no enunciado. Isso não serve de prova, não leva à construção do ‘éthos’. O caráter da pessoa competente constrói-se na maneira como organiza suas aulas, como discorre sobre os temas, etc. À medida que vai falando sobre a matéria, vai dizendo ‘sou competente’ (…). Portanto, a análise do ‘éthos’ do enunciador nada tem do psicologismo que, muitas vezes, pretende infiltrar-se nos estudos discursivos. Trata-se de apreender um sujeito construído pelo discurso e não de uma subjetividade que seria a fonte de onde emanaria o enunciado, de um psiquismo responsável pelo discurso.” (FIORIN, José Luiz. In: Em busca do sentido: estudos discursivos. São Paulo: Contexto, 2012, p. 139).
  • Substituindo o exemplo do professor – dizendo “eu sou competente” – pelo dos alunos, não adianta repetirem no enunciado, à exaustão, “nós temos credibilidade”. Contextualizando a explicação didática de Fiorin, “isso não serve de prova” de competência: o caráter daqueles que se dizem “dignos de credibilidade” constrói-se na maneira como organizam seu discurso, “como discorrem sobre os temas”. Moral da história: este e-mail repleto de erros gramaticais, de problemas de coesão e coerência, com argumentação inconsistente, sem progressão semântica, portanto, é que desautoriza a pretensão dos enunciadores, comprometendo-lhes fatalmente a “credibilidade”.
  • Nessa perspectiva, o articulista errou – contribuindo para a dispersão de foco – ao acusá-los provocativamente de “evangelistas” e “inquisidores”, quando o problema, na verdade, é bem mais embaixo (como diria Marx, a situação “sem dúvida, está abaixo do nível da história, abaixo de toda a crítica: não obstante, continua a ser um objeto da crítica” (MARX, Karl. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. Boitempo, São Paulo, 2013, p. 153). Infelizmente, o jornalista acabou lhes fornecendo um estratégico pretexto para seguir fugindo ao problema central, que está na gênese dessa polêmica toda: quais seriam, objetivamente, as tais “justificativas para a não publicação do livro”, que o e-mail acusatório se comprometeu em expor, mas não o fez?
  • Não é demais repetir que o articulista não teve a intenção, nem teria o poder, tampouco o professor acusado, “de sujar a imagem da ECA nacionalmente”. Quem poderia comprometer a imagem da instituição, se tivesse maior audiência a amadorística e vexatória “discurseira de arrastão”, seria “a turma de Ecdótica do curso de Editoração da ECA-USP” que subscreve o “analfabético” (Nelson Rodrigues não perdoaria os tolos bisnetos dos “idiotas da objetividade”) e-mail.
  • Para encerrar os comentários ao desconexo parágrafo, faço mais uma reparo a um problema de causa-efeito na progressão argumentativa. Ao apresentar os supostos prejuízos que o artigo lhes provocaria, invertem a ordem lógica dos fatores neste trecho: “com nossos futuros empregos em risco e a nossa credibilidade em dúvida”. Se a mão não fosse mais rápida que o pensamento, obedecendo ao fígado e não ao cérebro, diriam que a perda de credibilidade, como consequência imediata, por sua vez colocaria – agora como causa, em “efeito dominó” lógico – os “futuros empregos em risco”. Desenhando aos aluninhos, enfim, para ficar mais clara a sequência dos eventos: primeiro se perderia a credibilidade (que sequer têm); como decorrência, então, é que eles, eventualmente, poderiam vir a não ser contratados.

 

Esperamos que leia o nosso posicionamento e tente entender que não somos evangelistas, muito menos purificadores da literatura. Assim como que compreenda o que você pode ter provocado ao curso de Editoração da USP, já tão prejudicado, e que pode sofrer mais consequências por não parecermos dignos de credibilidade, a maior arma de um editor.

 

  • Vejam só com quanta confusão se faz um e-mail pueril: como os “rebeldes sem causa” podem esperar que alguém – não apenas o professor, é claro – “leia e tente entender” o seu “posicionamento”, tão superficial e confusamente exposto? Aliás, parece que levaram a sério mesmo os epítetos sarcásticos de “evangelistas” e “purificadores da literatura”, interpelando o professor como se o jornalista – que os rotulou jocosa e equivocadamente – fosse seu “alter ego”. Não é demais repetir, nestes tempos regressivos em que é preciso “desenhar” as ideias, que não foi o professor quem encomendou – tampouco quem assinou – a contundente crítica. Nem um nem outro, volto a dizer, poderiam provocar mal maior a um curso que já parece estar indo de mal a pior: do contrário, alunos de Editoração não haveriam de escrever um texto tão ruim, nem este precário libelo seria levado a sério por instâncias acadêmicas superiores. Em outros termos, se algo pode provocar mais efeitos danosos a um curso “já tão prejudicado”, certamente é um e-mail tão vergonhoso na forma e no conteúdo, acusando levianamente um dos mais competentes e dedicados professores da instituição, e que esse absurdo não só não seja denunciado – e não simplesmente ignorado – pelos pares, mas também que estes o ponham sob constrangedora suspeição.
  • Como nonsense pouco é bobagem, os pretensiosos pupilos, sem a mínima noção de sua insignificância, querem fazer crer que o curso de Editoração possa vir a sofrer “mais consequências por não parecermos dignos de credibilidade, a maior arma de um editor”. Sendo bem direto, depois de tantas asneiras lidas e relidas, eu lhes digo que não apenas não parecem, mas não são “dignos de credibilidade”: na dura guerra por um futuro lugar ao sol no mercado editorial, os obscuros subscritores do e-mail já irão entrar desarmados (não creio em milagre). Nessa perspectiva, para não lhes alimentar ainda mais a ilusão egoica já tão dilatada, pois, o corpo docente deveria aproveitar a deixa para mostrar aos prepotentes acusadores, no pedagógico espelho da crítica, a sua real estatura intelectual liliputiana raquítica. Em contrapartida, como se tolice pouca fosse mesmo bobagem, fui informado de que o conselho do departamento (que não merece as maiúsculas distintivas) nomeou uma comissão – precedente gravíssimo – para apreciar o caso. Independentemente da esperada sentença favorável ao acusado, não poderia deixar de registrar uma nota de protesto contra os demagógicos pusilânimes que dão foro de legitimidade a esta amadorística petição pós-adolescente eivada de vícios. Pelo visto, como se indigência pouca fosse bobagem, não são só os despreparados aluninhos, enfim, que não são “dignos de credibilidade”…

 

(…) Nós somos os editores do futuro, e no nosso futuro não aceitaremos qualquer forma de discriminação com a humanidade (…). Se o racismo, a misoginia e o preconceito religioso são intrínsecos à nossa realidade e matam milhões de pessoas, escolhemos não reforçar e naturalizar esses comportamentos, não teremos esse sangue nas nossas mãos.

 

  • Depois da nota derradeira denunciando o indecente pacto de mediocridade entre docentes e discentes do curso de Editoração da ECA-USP (antes os “ecos” e “colisões” fossem só “vícios de linguagem”), expondo o professor – já tão penalizado por calúnias, difamações e injúrias – ao julgamento da comissão do conselho de departamento (tudo tão minúsculo, diante de tão maiúsculas ofensas), nada mais haveria a ser dito. Entretanto, relendo esses excertos dos dois parágrafos finais do e-mail, que havia reunido em um único para os últimos comentários, notei que não poderia abstraí-los, porque providencialmente permitem fazer a ponte entre o título, o subtítulo e a epígrafe deste artigo. Ainda que tudo isso já soe tão óbvio, não sendo prudente subestimar a falta de competência interpretativa da maioria dos leitores, os paratextos ajudam-nos a “desenhar” as entrelinhas, pondo legenda nas alusões intertextuais e esclarecendo os pressupostos argumentativos.
  • Sejamos, pois, bem didáticos: em primeiro lugar, o título faz alusão ao ensaio As ideias fora do lugar, de Roberto Schwarz, para lembrar a “comédia ideológica” na qual a “impropriedade de nosso pensamento” abstrai a produção e reprodução cultural das relações econômicas e sociais autoritárias – subdesenvolvidas, escravocratas e misóginas – em que se plasmou a história do país. Na paráfrase, substituindo “ideias” por “problemas”, o que quero dizer, na mesma linha, é que não adianta negar marchinhas de carnaval preconceituosas e romances racistas – ou queimar os arquivos da escravidão, por exemplo – para afirmar a igualdade entre brancos e negros: a memória do genocídio do “povo preto” é fundamental para que a tragédia não continue sendo reencenada como farsa. Por isso, também a alusão à máxima hamletiana, problematizando aos “futuros editores” a escolha conflitante entre o apagamento dos rastros discursivos da opressão e o resgate de obras estruturais do pensamento reacionário da intolerância étnica.  Não é exatamente porque “o racismo, a misoginia e o preconceito religioso são intrínsecos à nossa realidade e matam milhões de pessoas” que é preciso compreender as raízes profundas desses males atávicos para combatê-los com mais propriedade e eficiência? Não estaria correto Mário de Andrade ao dizer, no Prefácio Interessantíssimo (citando versos de um soldado alemão no front da Segunda Guerra), que a verdadeira canção de liberdade vem do cárcere?
  • Aproveito para fazer um reparo na formulação desta frase: “no nosso futuro não aceitaremos qualquer forma de discriminação com a humanidade”. A luta contra “qualquer forma de discriminação” não é compromisso póstero, mas tarefa presente: é lutando hoje que se pode construir um futuro melhor, mais tolerante e solidário. Nessa perspectiva, como bem disse o dialético revolucionário Leon Trotsky, “o passado só nos interessa [nas lutas presentes] como uma preparação para o futuro”. Se não fossem tão escolásticos, os alunos de Editoração não teriam dúvida, pois, que a publicação dessa obra “racista e misógina” – com a direcionalidade de leitura devidamente demarcada pelos paratextos – poderia contribuir para o armamento teórico dos combatentes de hoje e dos lutadores de amanhã, não para “reforçar e naturalizar esses comportamentos” criminosos. Além desse serviço de utilidade pública mais evidente, se envidassem esforços para reeditar o livro de Théo-Filho, facilitariam o trabalho de críticos literários, ensaístas e pesquisadores interessados em analisar as formas de representação do supremacismo branco – e do preconceito e da intolerância, portanto, contra o negro – na literatura brasileira.
  • O subtítulo deste artigo, nesse contexto, reiterando que os problemas apontados no e-mail estão “fora do lugar”, chama a atenção para o grande equívoco – muito sintomático – dos pueris alunos indignados, cujo discurso irremediavelmente se perdeu, entre protestos impotentes contra o jornalista que os ridicularizou e acusações inconsistentes contra o professor que teria sido cúmplice – ou mandante – dos ataques na grande imprensa, quando perdeu de vista o próprio objeto (a obra literária em si) e o curso de Ecdótica em que a polêmica teve início – onde o debate teria, de fato, toda a razão de ser. Nessa hipótese, ainda que a parte vitoriosa no pleito, no final das contas, continuasse não tendo razão em sua recusa de publicar o livro, propondo-se ao aprofundamento da discussão, a intrépida turma poderia ao menos dar a impressão de estar envolvida com alguns dos problemas específicos centrais – tanto estéticos quanto éticos – diretamente relacionados não só à imprescindível sólida formação acadêmica, mas também à necessária responsável atuação profissional como “futuros editores”. Em síntese, se os problemas não estivessem “fora do lugar”, e a questão problematizada fosse especificamente por que “editar ou não editar” Romance Tropical, o discurso divergente teria o mínimo de “credibilidade”, porque não teria se desviado – ao menos por essa premissa básica – do objeto particular de interesse do curso de Ecdótica. Infelizmente, a se depreender dos termos do infausto e-mail (tão insolitamente deletério quanto perversamente oportunístico), os estudantes parecem muito mais preocupados, entretanto, que o artigo da Folha tenha colocado em dúvida a suposta “credibilidade” que ainda não provaram ter, bem como obcecados com o risco de perder “futuros empregos” que ainda estão bem longe de disputar, do que propriamente em “apresentar as justificativas para a não publicação do livro”.
  • Como delírio pouco é bobagem, enfim, nessa inacreditável história sem pé nem cabeça, embarcando demagogicamente na “navilouca” desgovernada, até o conselho de departamento (em iniciais minúsculas) houve por bem – ou por mal, a essa altura de tal baixeza, né? – nomear uma comissão de “notáveis” tecnocratas graduados (a ordem dos termos altera o substantivo/ muda o sentido) para apreciar – ou depreciar o ofício? – o “(o)caso” do acusado. Sendo mais direto – menos poético – e reto, o fato é que ter instaurado inquérito para investigar se o professor é ou não culpado é ter levado a sério – fala sério! – um libelo cujo objeto nem é claro, nem – nem haveria de ser, é claro – bem fundamentado. A propósito do(s) despropósito(s), confesso que não sei – a comissão sabe? – sob que acusação o “herege” será julgado? Seria por ter defendido a publicação do tal livro “condenado” pelo “credo” que o jornalista – não o acusado, atenção! – rotulou como “censura do bem”, característica do discurso paradoxal do novo “evangelista identitário”? Creio que não: ao menos os professores do curso não cometeriam erro tão primário, confundindo a defesa do resgate de uma obra literária “racista” com a apologia do racismo por parte do professor (no próximo tópico tratarei melhor da questão). Tampouco me parece que teria sido porque o professor teria cantado uma marchinha carnavalesca “racista”, argumento de exemplificação descontextualizado, que não poderia servir de corroboração à tese esdrúxula do e-mail (com hífen, garotada!). Seria porque teria comentado com um velho amigo a polêmica desencadeada em sua aula, e o interlocutor, que por acaso é jornalista, considerou o tema de interesse público, levando-o às páginas da Folha de S. Paulo? Não me parece também razoável que seja esta a razão do insólito inquérito, não só porque não há provas de um conluio entre ambos para expor os alunos e o curso na grande imprensa, mas sobretudo porque – supondo que até fosse verdade – não haveria sequer um pacto contratual acadêmico que proibisse a publicização dos fatos.
  • Enfim, sigo aqui queimando as pestanas para tentar entender como um e-mail tão amadoristicamente inconsistente – demasiado confuso e deveras mal redigido – pode ter sido legitimado como peça acusatória por experientes membros do conselho de departamento (em iniciais minúsculas, em sintomática relação isomórfica entre os planos da expressão e do conteúdo). A propósito dos despropósitos, recordaria à comissão julgadora desse enredo carnavalesco estes dois trechos de parágrafos pregressos do pretensioso libelo discente: “Estamos em formação, mas já sabemos os deveres da nossa profissão.”; “Já estamos envolvidos com o livro há meses, ainda que sejamos apenas ‘alunos do segundo ano’.” Retomando a distinção entre o “éthos dito” (no enunciado) e o “éthos mostrado” (na enunciação), chamo-lhes a atenção para o uso dos conectivos: no primeiro caso, a conjunção coordenativa adversativa “mas”; no segundo, a locução conjuntiva subordinativa concessiva. Ambas, como bem sabem os mestres, estabelecem relações semânticas de oposição entre os termos do período composto: a diferença é que a ideia introduzida pelo “mas” tem maior peso argumentativo que a anterior (oração coordenada assindética); a introduzida pelo “ainda que” (oração subordinada adverbial concessiva), em contrapartida, desconsidera habilmente o “argumento de ressalva”, como se o fato não tivesse relevância para alterar o anterior (expresso pela oração principal). Sem a ousadia impertinente de querer ensinar a “oração” – com o perdão do trocadilho – ao vigário, a (i)moral da história é óbvia, professores: quem ainda está “em formação”, sem qualquer experiência profissional, acredita piamente “já saber os deveres da profissão”; o fato de serem “alunos do segundo ano” (as aspas colocadas por eles – em reveladora conotação autonímica – é mais um índice de que se creem mais do que são) é irrelevante para pôr em dúvida sua “competência” e “credibilidade”. Com a soberba hiperbólica – tipicamente (ainda que não exclusiva) de jovens que se creem autorizados a se pronunciar sobre obras literárias de igual para igual com veteranos leitores, tratam “meses” como se fossem décadas, convictos de que bastaria dizer “estamos envolvidos com o livro há meses” para se legitimarem como especialistas, sem necessidade de apresentar quaisquer provas objetivas desse tal propalado “envolvimento”.
  • Em todo o caso, o que gostaria de ratificar aos doutos docentes, nessa infausta narrativa farsesca, é que, se a inexperiência juvenil lhes poderia servir de atenuante, em se tratando dos velhos membros do conselho e da comissão, a imprudência – ou seria imperícia? – é agravante de culpabilidade. Sendo ainda mais direto, em síntese, se ambos têm responsabilidade por expor o acusado a tantos vexatórios constrangimentos, a dos professores é bem maior que a dos alunos. A essa altura de tanta baixeza, pois, tampouco lhes servirá de álibi que – com o mínimo de dignidade que ainda lhes restaria – o absolvam: só por se prestarem ao deplorável papel – atenção! – de dar foro de legitimidade a tamanho absurdo, os eminentes julgadores já estão moralmente condenados.

 

Não poderia concluir estas notas críticas, com a devida propriedade (e o necessário didatismo, logo), sem lembrar o que a intrépida turma/turba enfurecida esqueceu no meio do e-mail, deixando de dizer – perdida nas curvas obtusas de sua narcísica “discurseira de arrastão” – finalmente ao que veio. Lembremos, pois, que os jovens reclamantes são graduandos em Editoração e estudantes de Ecdótica, autoproclamando-se “dignos de credibilidade” e “envolvidos com o livro” que se negaram a editar, e cujas “justificativas” se comprometeram a expor no texto acusatório. Sem honrar o compromisso, contudo, não disseram nada além de que o motivo da recusa seria o teor “racista” da obra, justificando-se com o genérico argumento “ético” de que, como “os editores do futuro”, não poderiam jamais aceitar, consequentemente, “qualquer forma de discriminação com a humanidade” (aliás, só para não deixar passar nenhum detalhe, a regência nominal recomendaria o uso da preposição “contra” em lugar de “com”; e a precisão lexical sublinharia que o termo “humanidade”, subsumindo a todos os seres humanos, é claro, exigiria que se especificassem quais seriam propriamente – entre os “homo sapiens” opressores e oprimidos – os grupos-alvo de “discriminação”).

Posto isso, empenhando-me em colocar o problema em seu devido lugar, proporia ao grandiloquente coro dos descontentes (o “eco” é só para não haver olvido dos “vícios” – também “de linguagem”) um teste contrastivo como prova de seu efetivo “envolvimento” e “credibilidade” inconteste. Sendo mais objetivo, em termos comparativos equivalentes, seria bem conveniente – e mais produtivo – se os intempestivos discentes tentassem justificar seus “motivos”, sob o mesmo argumento do “racismo”, analisando um livro não muito menos desconhecido do que o do ignorado Théo-Filho, mas de um autor por demais conhecido – e considerado “sagrado”. Se é fato que Monteiro Lobato sempre é lembrado na história da literatura brasileira, e neste debate específico não só é sempre evocado mas também não raro demonizado, quase nunca o é por ter escrito o sintomático romance O presidente negro, que certamente seria ao menos um pouco mais lido e citado se o livro “negro” não tivesse demorado tanto tempo para ser reeditado. A se supor que tenha sido condenado ao ostracismo pelo mesmo motivo deste texto de 1944, enfim, não seria por isso que tenha permanecido menos explícito – ou que ainda siga tão dissimulado – o mais ilustrativo exemplo acusatório de “racismo” do quase “insuspeito” Lobato?

Confesso-lhes que só tomei conhecimento desse emblemático “livro proibido” da vasta bibliografia do consagrado autor por vias tortas (isto é, não literárias), pelas providenciais páginas de duas obras ensaísticas sobre a fabricação ideológica do imaginário racista. A primeira menção ao título, curiosamente, foi na tese de um brasilianista do Departamento de Estudos Latino-Americanos da Universidade de Bristol, analisando exatamente as representações da inferioridade do negro – e superioridade do branco – nas letras verde-amarelas. Em Raça & cor  na literatura brasileira, recordo que o professor David Brookshaw, no tópico sobre Lobato, primeiro apontou a sua “negrofobia” na descrição do ex-escravo Bocatorta, no conto homônimo: “Bocatorta excedeu a toda pintura. A hediondez personificara-se nele, avultando, sobretudo, na monstruosa deformação da boca (…), e as gengivas largas, com raros cotos de dentes bestiais fincados às tortas, mostravam-se cruas, como enorme chaga viva. E torta, posta de viés na cara, num esgar diabólico, resumindo o que o feio pode compor de horripilante.” A seguir, no breve comentário a O presidente negro, o autor cita estes comprometedores trechos racistas de uma carta do escritor ao amigo Godofredo Rangel: “Num desfile, à tarde, pela horrível rua Marechal Floriano, da gente que volta para os subúrbios, perpassam todas as degenerescências, todas as formas e má-formas humanas – todas menos a normal.” Poucas linhas após, para endossar a proposta estética nacionalista de uma “literatura autêntica” e a tese correlata da imperativa “pureza racial”, como supostos antídotos contra o atraso cultural do país, anuncia o romance em gestação: “O nosso livro será o contrário disso. Todo cheio de novidades, na forma e no entrecho (…). Será como os de Kipling, com paisagens, árvores, passarinhos, negros… Eu gosto muito dos negros, Rangel. Parecem-me tragédias biológicas. Ser pigmentado, como é tremendo!” (BROOKSHAW, David. Raça & cor na literatura brasileira. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1983, pp. 69 e 71).

Passados muitos anos, então, relembrei a tal obra indigesta lendo o ensaio Raça pura: uma história da eugenia no Brasil e no mundo – aliás, cuja leitura urgente também recomendo aos pretensiosamente tão sabidos signatários do e-mail. De imediato, chamaram-me a atenção estas observações da historiadora Pietra Diwan, que tão bem lhes servem – vale dizer – para desautorizar a insustentável tese,  desmontando a rasteira  argumentação:

Para muitos, afirmar que esse ou aquele pensador era eugenista poderá soar como ofensa. Mas é importante ressaltar que muitos intelectuais brasileiros foram adeptos do eugenismo, e há documentos que comprovam tal afirmação. Ser eugenista não é uma condenação, mas sim uma constatação de que muitos intelectuais do período compartilhavam e defendiam essas ideias. Omitir tais informações é preterir o passado. Portanto, esse capítulo tem por objetivo principal mostrar algumas dessas personalidades, traçando um panorama da eugenia no Brasil. Todas as biografias aqui citadas, de membros pertencentes às sociedades eugênicas, que em sua época publicaram artigos e travaram relações com Renato Kehl, não registraram em suas histórias oficiais a participação e o comprometimento com a causa eugênica, seja em conferências, trabalhos ou publicações. Não me refiro aqui às obras produzidas no interior das universidades, que se esforçam para recuperar parte desse passado. Era o caso de perguntar: trataram os participantes e simpatizantes do eugenismo de apagar os resquícios de sua participação e ‘limpar’ de sua biografia e da história essa passagem? Roquette-Pinto, Oliveira Vianna, Fernando Azevedo, Vieira de Carvalho, Monteiro Lobato. O que aconteceu com suas biografias? (…) Houve muito investimento e dedicação por parte da intelectualidade brasileira para a articulação desse campo de saber (…). Os trabalhos que analisam os textos de Lobato citam pouco O Choque [reeditado depois com o título de O presidente negro], como se o autor nunca tivesse se envolvido com a temática eugênica. (DIWAN, Pietra. Raça pura: uma história da eugenia no Brasil e no mundo. São Paulo: Contexto, 2018, pp. 92-93 e 126).

Vejam só a extrema relevância de um trabalho editorial que põe em circulação livros estrategicamente silenciados para não macular a imagem de grandes intelectuais e escritores – como Monteiro Lobato, um dos mais ativos apologistas do discurso de “pureza racial”. Se a pesquisadora estivesse debatendo com os “editores do futuro”, certamente repetiria aos defensores da não publicação de obras do gênero que “omitir tais informações é preterir o passado”, contribuindo, no final das contas, com o projeto reacionário de “apagar os resquícios de sua participação [na política eugenista] e ‘limpar’ de sua biografia e da história essa passagem”. Aliás, vale dizer que a reedição de O presidente negro pela Editora Globo, uma década antes de Petra publicar o criterioso e fundamental estudo pela Editora Contexto, certamente facilitou seu exaustivo trabalho de pesquisa das bases ideológicas do discurso racista no Brasil.

Como os signatários do e-mail se disseram autorizados a discorrer sobre o romance “censurado” de Théo-Filho também em razão dos paratextos que escreveram, recordo-lhes que os editores do único romance do pai do Jeca Tatu, no paratexto de apresentação, destacaram que o autor, através da Revista do Brasil, “adquirida em 1918, lançaria as bases da indústria editorial no país”. Interessa particularmente aos alunos do curso de Editoração, a propósito, a informação de que o escritor empresário, “aliando qualidade gráfica a uma agressiva rede de distribuição, com vendedores autônomos e consignatários, revoluciona o mercado livreiro”. Na nota biográfica, sublinharam ainda que Lobato, por contrariar “poderosos interesses multinacionais” (quando fundou empresas de prospecção de petróleo), foi preso em 1941 e, mesmo depois de indultado por Vargas, “continuou perseguido pela ditadura do Estado Novo, que mandou apreender e queimar seus livros infantis” (LOBATO, Monteiro. O presidente negro. São Paulo: Globo, 2009, p. 10). Como se lê nas linhas e entrelinhas, enfim, a questão é bem mais complexa do que supõe a sua “vã filosofia” (será que os “editores do futuro” leram de Shakespeare ao menos Hamlet?).

Depois de avaliarem dialeticamente essas complexas questões, proporia então que os tão “envolvidos” alunos de Ecdótica esclarecessem finalmente quais paratextos de fato produziram, e qual seria sua orientação argumentativa, explicando como avaliam, pois, a função desses “elementos paralinguísticos” acessórios (categoria do “interacionismo sociodiscursivo” do linguista Bronckart) na preparação editorial de obras literárias condenadas – por diferentes razões – ao ostracismo. Certo de que os mesmos “progressistas” que votaram pela não publicação de Romance Tropical também vociferariam contra a reedição de O presidente negro, sob os mesmíssimos protocolares argumentos “politicamente corretos”, gostaria muito de saber se teriam algo de novo a contrapor aos seguintes excertos deste outro paratexto da quase desconhecida obra “racista” do autor de Negrinha e Bocatorta:

Para arrepio dos críticos de plantão, aí reverberam as teses eugenistas que defendiam uma seleção nas coletividades humanas tendo como base leis genéticas. Controvertidas, estas teorias de purificação étnica foram difundidas entre a intelectualidade brasileira por Renato Kehl, que trocou cartas com Lobato de 1918 até 1946, e cujo livro Problema vital, lançado em 1919 pela Sociedade Eugênica de São Paulo, ele prefaciou. Ora, se por um lado tal enfoque induz a enxergar traços de racismo no criador do Sítio do Picapau Amarelo, tema que inflama as discussões entre os estudiosos da sua vida e obra, por outro ele aponta para as profundas contradições da sociedade norte-americana do período, distante da democracia racial conquistada a duras penas após uma longa luta pelos direitos civis (…).

Mais do que um hino em prol da pureza racial, este romance constrói uma metáfora sobre segregação e aculturação. Ao longo do enredo vemos como a comunidade negra é impelida a assumir valores étnicos dos brancos. Em detrimento da sua ascendência africana, consideráveis parcelas de filhos e netos de ex-escravos submetem-se por vontade própria a um radical processo de despigmentação, tornando-se ‘horrivelmente’ esbranquiçadas. Combatente visceral da imitação dos hábitos e costumes alheios, Lobato defende a tese de que ignorar as raízes significa converter-se em cópia mal sucedida. A despigmentação os descaracterizava como povo, retirando deles um dos seus principais elementos de identidade (…). (Obra citada, pp. 16 e 18).

Ressalte-se que, conforme se lê no prefácio assinado por Marcia Camargo e Vladimir Sacchetta, são problematizadas na reedição desta obra “racista” – dialeticamente – várias questões desiguais e combinadas, tanto de ordem ética quanto estética. Na mesma linha, vale acrescentar, se pronunciou também o brasilianista David Brookshaw, conforme se atesta neste excerto da criteriosa tese Raça & cor  na literatura brasileira:

Em última análise, o nacionalismo de Monteiro Lobato tinha raízes em um profundo desejo de ser autêntico, e não confiar em valores impostos de fora. Foi seu racismo e ao mesmo tempo o respeito por aqueles a quem considerava autênticos o que o fez adotar oportunamente um estereótipo positivo para o negro. Sua aversão pelos traços físicos do negro e seu receio da miscigenação opunham-se ao respeito pelo negro quando entregue a si mesmo. Ele odiava o negro no que dizia respeito ao contato com o branco, mas admirava suas qualidades quando isolado. Em ambos os casos, pode-se afirmar que ele era um racista. Simpatizava com o negro contanto que fosse selvagem, pois somente deste modo era autêntico. (BROOKSHAW, David. Raça & cor na literatura brasileira. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1983, pp. 70 e 71).

Considerando, aliás, que Lobato, como apologista do discurso eugenista da “pureza racial”, era radicalmente avesso à miscigenação, e que foi contemporâneo de Théo-Filho e de Oliveira Vianna, um dos principais ideólogos do Estado Novo, também citado no ensaio da historiadora Pietra Diwan, vêm bem a calhar estes trechos de outro livro cuja leitura recomendo urgentemente aos tão presunçosos quanto desinformados “editores do futuro” da ECA-USP:

A forte miscigenação da população brasileira era considerada pela elite um obstáculo ao processo civilizador (…), a ideia de civilização está vinculada à raça branca (…), à sua hegemonia sobre outras raças (…). O pensamento autoritário no Brasil teve na questão racial papel importante para sua consolidação (…), era necessário sustentar outro caminho para reorganizar a sociedade brasileira: o do embranquecimento da raça feito por meio da entrada de imigrantes brancos europeus e a proibição da entrada de novos contingentes de negros (…). Oliveira Vianna, desde os seus primeiros trabalhos, defendeu a necessidade do branqueamento do povo para torná-lo capaz de construir a nação. (BARBOSA, Jefferson Rodrigues et al. Militares e política no Brasil. São Paulo: Expressão Popular, 2018, p. 320-321).

Levando todas essas ponderações em conta, e retomando a reedição do romance O presidente negro, será que os escolásticos estudantes repudiariam o paratexto de Camargo e Sacchetta com o mesmo clichê retórico de que, diferentemente da “cúmplice” dupla, “não aceitaremos qualquer forma de discriminação com a humanidade (sic)”, que “não teremos esse sangue nas nossas mãos”? Aproveitando a deixa para encaminhar a conclusão, enfim, como “desenhei” o título e o subtítulo deste artigo, mas não a epígrafe (aliás, todos cumprindo o papel semântico subsidiário de “paratextos”, partes fundamentais para a compreensão da totalidade de sentido da “tessitura textual  – como diria o “Estrangeiro” a “Sócrates, o Jovem”, no clássico diálogo de Platão), esclareço-lhes por que Roger Chartier – o célebre historiador que inaugurou no Collège de France uma cadeira dedicada às práticas de escrita – disse que os “autores não escrevem livros”. Não por outro motivo senão porque o objeto “livro” – em certa medida – é menos produto da “mão do autor” do que da “mente do editor” (para não esquecer o título da obra que reúne alguns dos ensaios sobre essas aulas magnas – mais um dos muitos livros fundamentais que os presunçosos pupilos precisam estudar): ou seja, segundo o eminente mestre, no final das contas, o livro é “sempre resultado de múltiplas operações que supõem uma ampla variedade de decisões, técnicas e habilidades”.

Para encerrar, finalmente, estas já tão extensas notas contestatórias aos amadores intransigentes “críticos de plantão” – que parecem tão alheios aos princípios básicos do curso de Ecdótica que perderam o fio do discurso, batendo cabeça entre tantos problemas que pouco têm a ver com o central -, proporia concluírem as imprescindíveis e inadiáveis “justificativas” explicando a função crítica (desestabilizadora de estereótipos reacionários) dos paratextos como instrumento editorial orientador de outras formas de leitura de obras “politicamente incorretas”, à luz desta certeira reflexão de Borges:

A literatura é algo inexaurível, pela simples e suficiente razão de que um único livro é inexaurível. O livro não é uma entidade fechada: é uma relação; é um centro de inúmeras relações. Uma literatura difere da outra, anterior ou posterior a ela, menos pelo texto do que pelo modo como é lida. (CHARTIER, Roger. A mão do autor e a mente do escritor. São Paulo: Editora Unesp, 2014, p. 42).

 

*Ocorreu-me uma ideia: não seria um “golpe de mestre” reeditar Romance Tropical com paratextos sob a responsabilidade de intelectuais feministas e negras, representativas das três grandes universidades estaduais? Pensando em Borges, creio que a orelha, o prefácio, as notas e o posfácio, confiados, por exemplo, a historiadoras, editoras ou professoras de Teoria Literária da USP, da UNICAMP e da UNESP, com a legitimidade do “lugar de fala”, cumpririam o papel estratégico de propor outros modos de leitura da obra “racista e misógina” de Théo-Filho, contribuindo efetivamente para a formação de leitores críticos dos discursos autoritários de plantão, não é mesmo? Espero que os “editores do futuro” reflitam profundamente sobre isso, compreendendo que os “deveres da nossa profissão”, enfim, como parte fundamental da encarniçada luta histórica contra todas as formas de preconceito e intolerância, implicam armar com livros incendiários os companheiros de trincheira.

 

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P.S.

“ESTRANGEIRO

– Lembremo-nos por que fizemos, a esse propósito, tão longas reflexões.

SÓCRATES, O JOVEM

– Por quê?

ESTRANGEIRO

– Exatamente devido ao tédio que experimentamos ao falar dos pormenores da tecedura, que realmente nos aborrecem (…), dessa discussão em torno do sofista (…). Sentimos que essas exposições foram demasiado extensas, censurando-nos por isso, e temendo que não passassem de digressões, e digressões excessivamente prolongadas. Foi, pois, com o propósito de evitar para o futuro semelhantes minúcias, que fizemos todas as observações precedentes (…). Creio, pois, que tu e eu devemos lembrar-nos das observações agora feitas, quando censurarmos ou aprovarmos a extensão ou brevidade de nossas conversações sobre qualquer assunto, a fim de não avaliar suas extensões por sua relação recíproca, mas antes por esta parte da arte de medir que recomendamos há pouco à nossa lembrança: a conveniência (…). Mas, agora, não sujeitemos todas as coisas a esta regra. Pois a necessidade de agradar nos imporá o cuidado das proporções, apenas acessoriamente; e quanto à solução do problema apresentado, encontrá-la da maneira mais fácil e pronta possível deve ser apenas uma preocupação secundária e não a finalidade primordial, se dermos crédito à razão, que nos aconselha a preferir e a colocar em primeiro lugar o método que prescreve a divisão por espécies; e, mesmo que um discurso seja demasiado longo, prosseguir resolutamente se isso torna mais hábil àquele que ouve, sem nos preocuparmos agora com sua extensão como antes com sua brevidade. Aliás, não podemos desprezar rápida e sumariamente o julgamento que censura a extensão do discurso em conversas como as nossas, e reprova as digressões que o acompanham com este simples comentário: ‘essas conversações são muito longas’; devemos antes demonstrar que se fossem mais breves tornariam os ouvintes mais aptos à dialética e mais hábeis em encontrar raciocínios que lançassem luz sobre a verdade; com relação às demais críticas ou elogios fingidos não compreender apreciações dessa natureza.” (PLATÃO, Diálogos. São Paulo: Abril Cultural, 1979, pp. 232 e 234).

 

 

 

 

 

 

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Paulo César de Carvalho, ex-professor e sempre estudante, hoje é leitor em tempo integral.




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