E por falar em China…


por Guido Bilharinho

A CHINESA – Godard Continua Godard

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         Conquanto totalmente político, o filme A Chinesa (La Chinoise, França, 1967), de Godard, é muito bom.

         Não é, aliás, o tema que configura a arte. Muito pelo contrário. É o tratamento estético-filosófico que confere à obra nível artístico ou não. Deficiente que seja, ou inocorrente, o livro ou o filme não atinge categoria artística, não passando de frustração (se o autor tiver escopo artístico) ou de obra comercial destinada a faturar como qualquer outro produto indústrio-comercial.

         No caso, em A Chinesa, Godard imprime teor substancial ao conteúdo temático mediante linguagem e montagem adequadas, dinâmicas e de alto grau de concepção e efetivação.

         À época, estava tomado por preocupação política, elegendo o confronto entre as linhas ideológicas soviética e chinesa como núcleo da proposição fílmica.

         Em célula maoísta da capital francesa decorre a problemática e crítica do embate então contemporâneo e mundial.

         Suas personagens movimentam-se e discorrem com desenvoltura e são apresentadas polivalentemente em enquadramentos e angulações que não deixam a ação atenuar-se ou esmaecer.

         O fluxo verbal destilado incessantemente pelas personagens entrosa-se tão perfeitamente com o fluxo cinemático que se indissociam, compondo conjunto orgânico movido por acelerado dinamismo interno.

         No que tange ao conteúdo do oralizado, ao contrário das acusações de que Godard estava dominado pela ideologia maoísta, o que se têm no filme é exposição e posicionamento objetivos, independentes e críticos das momentâneas circunstâncias políticas.

         Momentâneas, porque a História é feita de momentos que se encadeiam ininterruptamente e, como elos de interminável (espera-se) corrente, cada um deles viabilizando-se e sendo impulsionado pelo anterior, mesmo que não seja por ele causado. Assim sucessivamente.

         No caso, como dito, está-se em Paris, 1967, no centro (até geográfico) do referido embate político.

         A isenção, independência e imparcialidade de Godard manifestam-se no brilhantismo incomum com que expõe a crítica maoísta ao posicionamento soviético, procedendo também, e em seguida, à arguta análise da postura chinesa, desmontando-a por força de implacável racionalidade.

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         A oposição dos protagonistas jovens revolucionários (que se julgam ou são tidos como tais) à orientação soviética é direta e contundente:

         “— Há duas espécies de comunismo. Um perigoso e um não perigoso. Um que Johnson [presidente dos EE.UU.] deve combater e outro que ele estende a mão.

         — Por que um deles não é perigoso?

         — Porque ele se modificou. Já os estadunidenses [eles dizem “americanos”, mas americanos somos todos nós das Américas] não mudaram. Eles ainda são potência imperialista. Como eles não mudaram, quem mudou foram os outros.

         — Os russos e seus amigos tornaram-se revisionistas. Tanto eles quanto os Estados Unidos [diz-se América, mas impropriamente] combatem o verdadeiro comunismo.

         — Três/quartos das teses do Partido Comunista [francês] são falsas, feitas para intelectuais, presas demais a Moscou.

         “— A culpa é do Partido?

         — Sim. Por isso temos de buscar nosso ideal em outro lugar, em Pequim.

         — É o livrinho vermelho que faz tudo mover.”

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         Ao final, uma das garotas revolucionárias maoístas dialoga com intelectual num trem, em cena que lembra outras semelhantes de Hitchcock, sendo-lhes, no entanto, esteticamente inferior.

         Contudo, o que se diz, aí e então, é que é importante, podendo ser sintetizado em duas ou três colocações do citado interlocutor:

         “— Você quer fazer a revolução pelos outros?

         — Ela [a revolucionária argelina citada pela protagonista como heroína e como tal proclamada] tinha um povo por trás. Você tem duas ou três pessoas.

         — Você pode participar de uma revolução, mas, não inventar uma.

         — Sua ação resultará em nada se não tiver apoiada numa classe.”

         A crítica, pois, aos maoístas é contundente, correta e certeira, visto não passarem, no Ocidente, de meros (e infrutíferos) terroristas ou, ao menos, sectários e radicais inócuos.

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         Além disso, num dos diálogos teóricos ocorridos na célula maoísta, diz-se sobre a arte:

         “— A arte não reproduz o visível. Ela inventa o visível.

         — Mas, o efeito estético é imaginário.

         — Porém, o imaginário não reflete a realidade. Ele é a realidade do reflexo.”

         Posição que desmonta a falácia da arte dita engajada, que pode ser engajada, mas dificilmente será arte, vindo corroborar ou sendo corroborada pela afirmativa de Fiedler de que “não há a expressão de um objeto, mas o objeto de uma expressão” e de que “a linguagem artística não é expressão do ser, mas forma do ser”.

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         Nesse filme, pois, Godard continua Godard.

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Guido Bilharinho é advogado em Uberaba e autor de livros de literatura, cinema, fotografia, estudos brasileiros, História do Brasil e regional editados em papel e, desde setembro/2017, um livro por mês no blog https://guidobilharinho.blogspot.com.br/. E-mail: guidobilharinho@yahoo.com.br




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