Doukipudonktan


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Raymond Queneau, um dos meus autores mais queridos (ver aqui: http://tinyurl.com/lprpneb) escreveu de tudo e refletiu sobre tudo. Um dos seus assuntos preferidos era a diferença (para ele gigantesca) entre o francês escrito e o falado.  Francês é uma língua invocada, cheia de partículas enigmáticas, letras mudas, hífens e acentos e sinais diacríticos eriçados em todas as direções. Parece aqueles apartamentos de viúvas idosas e chiques, repletos de bibelôs, adereços, quinquilharias ornamentais preservadas a todo custo.

Queneau sugeriu a criação de um “neo-francês”, depilando o idioma de todas essas franjas descartáveis. Não colou, claro. É mais fácil a Vigilância Sanitária de lá proibir certos queijos. Queneau comentava a tendência do francês a uma “coagulação fonética” em que os sons tendem a se fundir e as letras a se multiplicar. No texto “Écrit em 1937” (em “Bâtons, Chiffres et Lettres”, 1965), ele faz longos comentários sobre este tema e conclui: “On népa zabitué, sétou. Unfoua kon sra zabitué, saira toussel.” (Estas palavras exóticas, ditas em voz alta, serão entendidas por quem as ouvir; é o neo-francês fonético, mandando a etimologia às favas.)

Seu romance mais famoso, “Zazie no Metrô” (1959) começa com uma palavra mágica: “Doukipudonktan?”. É a pergunta que se faz o personagem, incomodado pelo odor corporal das pessoas amontoadas na estação à espera do trem. A palavra é a coagulação de “D’où qu’il pue donc tant?”.  Virou um teste para os tradutores.  Em inglês (o romance foi traduzido por Barbara Wright) encontrei “Holyfart watastink?” e “Howcanaystinksotho?” (o segundo é citado num saite, sem atribuição).

Em português, a tradução lusitana de Alexandre Rodrigues (Círculo de Leitores, Lisboa, 1974) simplifica: “Donde parte este cheirete?”.  Em 1985 saiu pela Rocco a tradução de Irène Monique Harlek Cubic, que diz: “Pômakifedô!”. A versão mais recente (2009) é a de Paulo Werneck para a Cosac Naify: “Dondekevemtantofedô?”.

Só a análise dessas versões, das opções possíveis, das escolhas feitas, das pequenas infidelidades e dos volteios criativos, daria um artigo imenso. Mas é um bom exemplo daqueles momentos em que dificilmente, em cem traduções, teremos duas iguais. A aglutinação sonora e semântica duma palavrinha assim é de tal porte que ela vira um nó indeslindável. É preciso inventar outra palavra, e nesses momentos a tradução se torna meio psicografia. É preciso entender como Queneau pensava, imaginá-lo tendo nascido no Brasil e como ele inventaria em português essa palavra de abertura. Que equivale a um “provocativo movimento”, a uma declaração de princípios, a um manifesto estético e social.

 

 

 

 

 

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Braulio Tavares é escritor e compositor. Estudou cinema na Escola Superior de Cinema da Universidade Católica de Minas Gerais, é Pesquisador de literatura fantástica, compilou a primeira bibliografia do gênero na literatura brasileira, o Fantastic, Fantasy and Science Fiction Literature Catalog (Fundação Biblioteca Nacional, Rio, 1992). Publicou A máquina voadora, em 1994 e A espinha dorsal da memória, em 1996, entre outros. Escreve artigos diários no Jornal da Paraíba: http://jornaldaparaiba.globo.com/Blog: http://mundofantasmo.blogspot.com/ E-mail:btavares13@terra.com.br




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