Do pássaro voando ao contrário


 

O princípio é o verbo, que se desata em canto e dança, e o livro-torvelinho do poeta/cantor/escritor/compositor/professor Reynaldo Bessa se espraia em dois movimentos: Pequenos Infinitos, com seu turbilhão imagético, e Grandes Labirintos, com percepções precisas, muitas vezes deflagradas por um resiliente espírito lúdico. A cada passo da travessia, o aedo telúrico recolhe estilhaços do mundo pós-utópico. Seja sob a garoa paulistana ou numa Porto Alegre invernal, a metrópole é percebida como uma “desumanidade verticalizada”, em cujas “poças deixadas pela chuva (…) bêbados mijam no céu”, e onde vamos “envelhecendo modernos e jovens”.

É nessa agoridade recorrente que o poeta voyant singra e sangra, com “o olhar rouco, a voz cega”, em meio ao moto-perpétuo de imagens, “sem saber se inexisto ou existo em demasia”, enquanto a vida parte como um táxi que leva embora algum “eu” esquecido.

Em fuga perene, em dimensão sinestésica, “a lua é uma grande lágrima no rosto enferrujado do tempo”, um tempo circular, em que antepassados nos vigiam desde seus retratos, o fantasma fugitivo da infância ainda assombra, e o futuro se resume apenas a “uma história contada antes de acontecer”.

Nessa linguaviagem, o humano sempre agarra seu quinhão de beleza, apreende que “o amor é um assalto”, e se deleita porque “o beijo de língua fala todas as línguas”. Apesar do corvo de Poe. Ou do demônio de Descartes. Deixe-se levar por esse turbilhão. Esse tempo também é o seu.                                                        

 

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Luiz Roberto Guedes é poeta, escritor, publicitário e compositor. Publicou, entre outros, O mamaluco voador (2006), e Alguém para amar no fim de semana (2010).

 

 

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Confira uma seleta do livro Do pássaro voando ao contrário, Editora Penalux .

 

…………………………………[Foto by Marcos Santos]

 

 

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Este sorriso não é meu.
Não o reconheço.
Está na minha cara como uma
visita indevida em minha casa.
Pertence ao meu genitor que o esqueceu em mim,
como quem esquece um guarda-chuva
quando passa o temporal.
Este sorriso tem prazo vencido.
É como um empréstimo forçado,
além das minhas possibilidades.

 

***

 

Os ruídos monótonos da cidade,
o discurso furado das verdades,
as orações decoradas e inócuas
E se os deuses forem surdos?
E se estiverem embriagados,
e jogando dados, e gargalhando,
enquanto minha alma toca esta harpa de cordas estropiadas?
Saímos mesmo da caverna, então… e aquelas sombras?
Não tenho mais medo ou isso é medo em demasia?
Agora estão batendo à porta.
Em dias assim, só pode ser o corvo de Poe ou
o demônio de Descartes.

 

***

 

Sempre que faz este frio,
e escuto o tilintar de taças,
e principalmente sinto o cheiro bom
de massa vindo do forno,
lembro-me do dia em que cheguei em Marseille:
o pôr do sol feito uma imensa coroa de ouro afundando no mar,
a igrejinha lá em cima, encolhida,
feito um gato preguiçoso,
O recepcionista do albergue do Chateaux de Bois Luzy.
que mais parecia um personagem saído
de um dos livros de Victor Hugo.
Ah, o hospital onde Rimbaud amputou a perna…
Os restaurantes caríssimos,
e as famílias, como em todo lugar, tentando remendar, no domingo,
os deslizes da semana…
Dia frio como as mãos de uma morta
A cerveja Leffe molhando o meu francês na ponta da língua…
o famoso Tarot trazendo-me a lembrança
de um dos romances de Balzac…
A história turva em minha cabeça algures…
A dança mística da menina dentro dos meus olhos cansados…
– e Ela? – então, sinto a adaga – um fantasma puxando
o colarinho do meu passado
Depois só meus passos soando no asfalto
naquela tarde solitária, fria, com sabor de pain au chocolat
E depois minha partida com meu coração inflado do ir-se sempre.
A manhã ventando muito com um solzinho pelo meio feito o riso de uma menininha feliz.
Marseille, Ô Marseille…
Sempre que faz frio, este frio na minha cara deslavada, e
sinto o cheiro bom de massa vindo do forno,
sinto-me longe, muito longe e bem pertinho de mim…
assim, feito Ela.

 

***

 

As badaladas dos sinos da Sé
caindo sobre minha cabeça feito imensos girassóis.
Por alguns segundos sinto o arrepio da vida.
Aquela dentada que nos tira da morte iminente.
E estou na superfície
Posso ver…
Posso ver…
Meu corpo morto tentando arrastar-se para o fundo…
E vejo os golpistas desdentados e loiros lambendo minha panturrilha.
E ouço suas vozes de tobogã e sinto suas línguas de mel e veneno – assim, para confundir -, e lembro daquelas que mentiram entre velas e garfadas de batom.
Joias brilhando serpentes.
Por um segundo, esqueço a perda de buracos negros da memória morna.
Lembro dos estilhaços de estrelas nos poros dos pesadelos,
O passado feito um coração queimado
Posso ver.…
Posso ver.…
Na superfície, imensa e brilhante, onde não há navios, nem horizontes, nem céu, nem dia e nem noite. Apenas um gigantesco girassol descendo lascivo feito uma aranha de ouro… e, ali, eu, sem medo, sem nada…
ouvindo as badaladas dos sinos da Sé.
Arrastando-me pelo asfalto feito uma sereia baleada,
morrendo sobre a faixa de pedestres.

 

***

 

Entre suas coxas e o ventre,
um Mapa Mundi.
A Ursa Maior bem ali:
um vira-lata fuçando
promessas e vazios.

 

***

 

Herdeiro de um império em ruínas.
Ainda sabe do hálito de cebola e aguardente
Aquela melancolia azeda,
mais azeda que a toalha da mesa:
um plástico com ares de tecido.
Poderia ter apertado o cinto e acelerado ainda mais
aquela viagem rumo à cidadela escura.
Flertou tanto com a outra margem,
aquela que não precisamos nem pôr os chinelos
É só assobiar da esquina.
Poderia, por que não?
Porque não era pra ser.
Preferiu pegar toda a realidade e suspendê-la,
como quem ergue um recém-nascido sob o primeiro sol,
e logo depois baixá-la, como quem tira um Cristo da cruz.

 

***

 

Ela cruzou as belas pernas e
meus olhos ficaram presos:
dois pequeninos navios entre os
pilares de Hércules.

 

***

 

A foto do meu pai ainda jovem:
seus olhos longe como navios encalhados,
e seus óculos com um durex em uma das pontas – como sempre –
e isso me prende feito alguém tentando fixar um ponto no escuro…
e vejo o corte de cabelo, sua camisa branquinha, e
eu, feito um motorista dirigindo sob a chuva, tentando entender a caligrafia da paisagem. Mas tudo é como num sonho espatifado, e por isso
também tento evitar um corte nos inúmeros cacos espalhados pelo chão… -Cortázar detestava as reticências -.
sua boca sutilmente puxada para o canto me faz pensar numa alfinetada do destino segundos antes do click – uma coisa como: xi, esqueci de pagar a última prestação – .
parece que não tinha ainda bebido nada, pois seus cabelos estavam sagradamente penteados, e sua pele não era como a de um índio pintado para a guerra.
Olho a foto e me vejo nela.
Meu rosto refletido num lago.
É como se a foto me olhasse de dentro do seu tempo feito um bichinho assustado espreitando-me da toca: talvez os olhos dele que também são meus,
talvez seus sonhos esquecidos pelo caminho que é onde estou agora…
E ele me olha
E eu o olho
E quem é quem?
Já não sei. Confesso.
Por um momento penso ter ouvido um ruído vindo da foto, e logo me concentro em seus navios encalhados…. na sua papada, sua camisa branquinha…
quantas palavras naqueles olhos nossos seus.

 

***

 

Gosto destas poças deixadas pela chuva:
espelhos vivos, tremulantes onde anjos narcisos e
vira-latas sedentos dividem o mesmo espaço.
Onde meninas de havaianas saltam as luzes dos postes, e os estudantes risonhos partem a lua em mil pedaços com suas cuspidas de cervejas e cigarros… Gosto destas poças deixadas pela chuva:
onde bêbados mijam sobre o céu e as senhorinhas apertam os seus vestidos.
Gosto mesmo destas poças deixadas pela chuva.
Onde mais poderíamos apontar uma estrela cadente
com o dedão do pé?

 

 

 

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Reynaldo Bessa é músico, escritor, poeta e professor. Já lançou cinco CDs. O mais recente com músicas suas sobre diversos poemas de autores poetas brasileiros. Em 2008 lançou seu primeiro livro “Outros Barulhos – Poemas” (Prêmio Jabuti 2009 – Poesia). Em 2011 lançou seu livro de contos “Algarobas Urbanas”. (editora Patuá). Pela Rubra Cartoneira Editorial (Londrina-PR), publicou o seu terceiro livro,“Não tenho pena do poema” (o segundo de poesia). Em 2013, lançou “Cisco no olho da memória – poemas” (Terracota editora/Selo Musa Rara),– Menção honrosa no Prêmio Internacional de Literatura da UBE-RJ em 2014. Ainda em 2014 lançou seu romance de estreia: Na última lona (Editora Penalux). O autor já foi júri de grandes prêmios literários, entre eles o Prêmio Portugal Telecom de Literatura. Também escreve para sites, blogues, jornais sobre literatura, música e poesia. Tem contos, crônicas, poemas publicados em revistas, jornais, antologias, suplementos literários pelo Brasil e exterior.

 




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