Digerindo Penas


A literatura que importa começa sempre por uma desestabilização das formas instituídas. Diante de um texto desta linhagem, inevitavelmente nos perguntamos: é isto um romance? um conto? um poema? Digerindo Penas, livro de estreia de Flávio Aquistapace, é um desses textos indefiníveis. Ele se furta às classificações. Encontramos aqui nove narrativas que assumem as mais variadas formas: conto, carta, poema, peça teatral. Cada uma dessas narrativas goza de uma existência autônoma – o que pode nos fazer pensar que seria este um livro de contos. Contudo, conforme avançamos na leitura, percebemos que as narrativas vão delineando, aos poucos, uma história mais ampla, para além daquela que cada uma delas contém – o que nos leva a supor que se trata, então, de um romance.

Porém, se romance, um romance em ruína, construído a partir de fragmentos de fala em primeira pessoa. A principal voz é a de Bruno Mantegão, rapaz que, aos 33 anos, se vê frente a uma doença grave e, em função disso, imagina um reencontro com a mãe, de quem se afastou há tempos. A estrutura ruinosa do livro replica a sensação de estar aos pedaços, que domina o protagonista. “Nunca imaginei encontrar depois de Santa Fé/Porto Alegre uma palavra que fosse minha”, diz Bruno. “Mas achei e ela é esboroada.” O que ele mais anseia é recuperar o que chama de “corpo íntegro”, cuja integridade será para sempre instável − como a da narrativa − porque sua unidade não está apenas dentro de si, mas implica a recomposição, ainda que imaginária, de uma história, de um passado, de uma origem. Nem que seja para enfim se libertar dessa origem − o que não deixa de ser uma definição do trabalho de toda a literatura, e especialmente daquela mais radical. Como escreve Bruno, ou Flávio, numa carta: “A escrita, sabemos, de um jeito ou outro, serve para desabrigar o autor”.

Verônica Stigger

 

 

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Do avesso. Uma carta.
São Paulo, 28 de junho, 2010

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Caro Gustavo,

A tentativa é de enredar, mergulhar fundo e sair do outro lado. Até os 20, torci para dar certo. Depois dos 30, minha expectativa é de que não seja tudo igual daqui até o fim. Escrever, no entanto, não vai resolver coisa alguma. A escrita, sabemos, de um jeito ou outro, serve para desabrigar o autor. No caso, eu, aqui, diante de você.

Diante de você, neste vento enregelado, inevitavelmente rememoro como começamos. É regressivo o húmus da saudade. Quando você morreu, eu quis ser enterrado junto, nem que fosse vivo, tamanha a minha infelicidade perante a dor. Hoje percebo que ser acolhido pelo canto duro da terra certamente não dissuadiria a repercussão da perda. Nada dissolve uma perda. Não há pedra dura que tampe a falta do amor. Constatei o que te conto ao topar com Gustaf, o michê de nome parecido com o seu.

Gustaf, o michê de nome parecido com o seu, tinha também seus olhos, seu sorriso, inclusive a sua alegria rebelde, aquela que me mirou de perto, lá dos aquosos enovelados de suas órbitas. Às vezes, penso que seria bom se, em vida, fossemos capazes de pular o que está primeiro e também o depois. Tudo um interminável durante.

Interminável durante era tudo o que eu almejava ali, mas, naquele momento, foi mesmo o inverso. A zoada começou quando contei para Nadinha. Quando contei a história para Nadinha, ela riu! Desdenhosa, repetia o que eu disse, a voz no último, às gargalhadas: “Sabe o que é uma desgraça, mãe!? Conhecer um michê bonitão, que cobra cem a trepada e parece-se com o grande amor da sua vida – que já morreu. Bem feito!” E ela prolongava o “e” do bem.

Bem foi aquela sua primeira fala comigo. A que estivemos a sós, não diante da sala toda. Meus colegas o apelidavam, e eu já o via com os olhos do meu tesão – ficava enciumado, eram epítetos como “Bonitão do Português”, ou “Sinônimo da Gostosura”. Segui minhas palavras para te alcançar: coloquei tudo no papel e entreguei como uma redação a mais para ser corrigida por você. Arrendei seus carinhos, conquistei o direito de ter o seu corpo, este mesmo que agora resta, este mesmo que agora me pergunta, este mesmo que conheci com a ponta dos meus dedos; era nas brechas do seu casamento que nos encontrávamos, e eu não ligava: viajamos juntos, estávamos juntos, gozamos juntos tudo o que tínhamos para gozar. Desde então, meu desejo final é ser palavra.

Ser palavra e estar na gênese de nosso encontro. Ser palavra e estar ao seu lado. Ser palavra, pensamento transpassado pelo olhar, pelo som, pela escrita. Virar gasto, à toa, determinar futuros, tangenciar realidades, a minha, a sua, mesmo neste local, onde se respira o silêncio. Disseram que neste mundo não tem mais Deus. Que Deus morreu. É mentira. Neste mundo, querido, o que não tem mais é amor. Não há lugar para o amor nas cercanias deste mundo.

Nas cercanias deste mundo estava você, e o amor foi novamente posto em xeque quando te executaram em praça pública, no Irã. Saiu em todos os jornais daqui e alhures, dia 28 de junho de 2000. Nem adiantou a briga boa que o país comprou: o mandado da sua extradição ficou preso na malha fina da burocracia venal do tempo. Chegou até mim por carta, depois. Eu sorri quando abri o envelope.

Quando abri o envelope, lembrei da sua pena. Lembrei mais ainda das suas mãos. Lembrei então da última foto, em que seus braços surgiram mortificados estendidos pendurados ao longo do seu corpo. Veio um contêiner com os seus pertences, todos ensacados: algumas roupas, material de toucador, seu bloco de notas. Livros. E a fita com o seu documentário inacabado, o título ainda provisório preso com durex em cima: “TRANSEXUALIDADE NO IRÔ. Tudo foi recolhido ao prédio do seu irmão, Anderson.

Anderson diz que o cemitério em que foi erigido o seu mausoléu já conheceu dias melhores. Agora, resta aqui um aspecto abandonado. É desolada a morada em sua homenagem. Anderson me emprestou o apartamento dele para meus encontros com Gustaf. Situado num condomínio de luxo, existe até uma pira e uma pequena capela para orações. Da janela, avista-se do alto o cemitério. Eu queria foder olhando para você. Aproveitei a viagem de Anderson, e ele topou. Eu estava disposto a verificar o quanto de amor falta neste mundo. Por cada encontro, ia-me embora cem: um dinheiro a me fazer falta, então combinei comigo mesmo que seria apenas uma única vez.

Uma única vez foi o que bastou. Quando desci para receber Gustaf, encontrei um pequeno cão, ganindo baixo, enroscado na própria guia, preso entre as ferragens da lixeira. Subimos com o cão no meu colo e nem fizemos nada neste dia. Tratei do bicho brevemente e procurei pelo dono, no telefone marcado no pingente, pendurado em seu pescoço. Fiquei constrangido, recusei peremptório e, mesmo assim, ganhei uma recompensa de mil reais do velhinho, dono do Billy. Imediatamente ampliei minhas perspectivas com Gustaf. Quem corrompe quem? Sou eu o cachorro?

Sou eu o cachorro? Hein?, era o que eu repetia para Gustaf, entre risadas e cusparadas na cara, virados do avesso.

Do avesso. Você ficaria feliz em me ver assim.

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Bruno Mantegão

 

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