Didática pelos quanta


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Todo esquecimento é fiel ao esquecido:

nos aproximamos de uma era sonhada desde o que supomos ser o principio dos tempos e possível somente após avançarmos sobre os limites do esquecimento – na mesma dimensão em que aquilo que nos fez recordar parece radicalizar-se na direção oposta. Se, por um lado, mostra-se evidente a busca por uma presença e conhecimento humano sem delimitações, por outro, nos afundamos, a fim de encontrá-los, cada vez mais e sem retorno, nas delimitações do corpo e das disciplinas. Uma mesma potência parece gerar energia em direções opostas.
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É pois que, nesta conferência sobre interdisciplinaridade, ouso propor a implosão do próprio conceito de interdisciplinaridade, visto que uma didática pelos quanta retrocede a um estado anterior a qualquer disciplina, inclusive à quântica. Em nossa história de segmentações, como tentativa de fundamentar a subserviência da obra ao ego, fomos obrigados a seccionar o mundo, sobretudo o do conhecimento e das artes, em “linguagens”, “áreas” e “gêneros” e acreditar que estas são coisas estanques com possíveis maneiras de se interrelacionar. Palavras como “interdisciplinaridade”, “transdisciplinaridade”, “multidisciplinaridade”, “pluridisciplinaridade” não fazem mais que reafirmar essa separação. Não devemos falar então de reaproximações, porém daquilo que, antes e agora e sempre, nunca foi qualquer outra coisa senão a mesma coisa. É somente nessa complexidade que se faz possível o vislumbre de uma tal didática pelos quanta.

Mas, antes de delinear as linhas básicas desta didática antididática, precisaria voltar a um assunto já debatido e comentar uma experiência quase mística que tive em 2007. Por conta de uma investigação sobre a poética das casas, acabei por fazer uma visita à Pripyat, a cidade fantasma onde em 1986 houve o famoso acidente de Chernobyl. A cidade, hoje um mausoléu radioativo, inabitável e impraticável por alguns milhares de anos, encerrava uma metáfora fundamental. Foi ali, isolado naquele deserto radioativo, em meio a um processo físico de contaminação com césio 137, iodo 131 e estrôncio 90, que tive uma iluminação: sonhei que todas as coisas se pertencem mutua e concomitantemente. Quando retornei ao Rio de Janeiro, logo depois dessa peregrinação, fui convidado a palestrar em um encontro literário, cujo tema, coincidentemente, era “Contaminações”. Por conta dessa deixa do acaso, proferi uma conferência que propunha a contaminação como princípio de indeterminação entre obra e homem. A contaminação, muito mais que sua moderna definição de “infectar”, “sujar”, “manchar”, encerra um sentido mais restrito, por consequência mais amplo. A palavra contaminação vem do latim “contaminatio”, que é, por sua vez, uma variação de “contamino”, que designava a prática da contaminação, isto é, o ato de fundir em um só, várias comédias ou contos. Por extensão, veio a sugerir o sentido de “entrar em contato”, e só posteriormente, o sentido negativo relacionado à infecção. A contaminação, portanto, (palavra originalmente do âmbito literário) não infere um princípio de troca hierárquica entre um contaminador e um contaminado. Nessa exposição mútua, ambos se contaminam mutuamente. E aqui some qualquer sentido de linearidade e hierarquia, seja substancial, local, qualitativa e quantitativa. Mesmo em termos físicos, só podemos ser contaminados por algo que já esteja dentro de nós, ainda que enquanto possibilidade. A radiação gama só pode alterar a composição molecular das células humanas porque são também elas compostas por átomos. É somente enquanto entes atômicos que temos o poder de sermos alterados atomicamente – se não tivéssemos esse poder (o de sermos alterados em nossa unidade fundamental), somente aí seríamos imunes ao mundo e àquilo que altera.

Conceito anticonceitualizável, a “contaminação” propõe uma estância de interação poética onde tudo se confunde com tudo, pois tudo é parte de tudo. Não estamos falando do intersectìo das coisas, mas de uma indeterminação de tal radicalidade que seria mais próprio dizer que as coisas compõem ou pertencem a um único corpo, manifestando-se coisas a partir da potencialidade desse corpo em dar-se enquanto singularidades. O nosso corpo, e agora falo propriamente desse que vestimos enquanto homens e mulheres, é uma usina de possibilidades e é somente por já estar-com e ser-com as coisas desde sempre, em sua profunda indefinição e articulação de outro e mesmo, que pode, este corpo, vir a ser nas coisas e vice versa, sendo passíveis, nós e as coisas, de sermos transformados uns pelos outros. Esse princípio não é, nem se pretende ser, uma proposta nova, mas lida, de fato, com um aspecto muito pouco explorado pelo Ocidente, pois vai contra o sentido de linearidade ao qual estamos habituados – o Ocidente é incapaz de pensar fora das delimitações. Delimitar é a forma mais eficaz de articulação do poder.

Em 1937, Niels Bohr anunciava: “qualquer tentativa de analisar, à maneira habitual da física clássica, a individualidade dos processos atômicos, condicionados pelo quantum de ação, é frustrada pela inevitável interação dos objetos atômicos em exame com os instrumentos de medida indispensáveis para esse fim”. Em outras palavras do próprio físico, é “justamente a impossibilidade de distinguir com clareza o sujeito e o objeto, na introspecção, que proporciona o espaço necessário à manifestação da volição”. Com isso, consolidava-se, no próprio habitat da ciência, o fim da “ciência” como ainda hoje tendemos a compreender. Bohr, atuante de uma área convencionalmente aceita como (e até então, de fato) distante das artes, foi grande em sua poesia das partículas, tornando-se um dos pais da física quântica. Foi discordando dele e de teorias que subjazem às mais recentes descobertas da física, que Einstein pronunciou sua famosa frase: Deus não joga dados. Aqui contextualizada, essa frase é central no confronto ideológico que que tento expor. Deus, entendido como o paradigma hegeliano da razão universal, como o espírito absoluto dando conta da problemática filosófica da permanência nos séculos precedentes, é posto em xeque bem no seio do pensamento científico. Mesmo para Einstein, semeador do processo, era difícil se abrir para todas as possibilidades que se apresentavam. Era um momento de ruptura tão radical que exigia uma nova ergometria em prol das novas abordagens filosóficas e científicas que surgiam no Ocidente. Para compreendê-la completamente, a própria estrutura do entendimento exigia uma mudança igualmente radical. A filosofia tradicional trabalhava com categorias como tese e antítese; na nova filosofia das partículas, tese e antítese mostravam-se simultaneamente autênticas e mesmo complementares, já que uma mesma entidade podia ser, concomitantemente, contínua e descontínua, verdadeira e falsa, real e irreal. Uma mesma partícula podia apresentar-se em dois lugares ao mesmo tempo, podia sumir e reaparecer em outro lugar antes mesmo que houvesse sumido. A física já não podia ser usada como parâmetro delimitador ou condenador do possível – e o impossível começava a tomar forma.

A história, como o universo, recusava-se a permanecer linear em sua causalidade e se lançava na periculosidade do desconhecido. Deixava de correr numa linha cronológica sucessiva, perdendo-se na abertura infindável do que Bachelard chamou pedagogia da ambigüidade, fruto desse novo real que se inscrevia num inconstante devir-ser. Mas, apesar dessas revoluções bacanas, tão radicais e plenas de poesia, avançamos realmente muito pouco em nossa possibilidade de sonhá-las – o delírio possível de tais descobertas manteve-se no cinema e na banda desenhada. Pois, ainda que seus conceitos façam parte de certo senso comum, sobretudo na área de humanas, parece ter resultado num real ainda mais “clássico”. Mesmo os físicos parecem completamente alienados das possibilidades de suas descobertas. De forma que viemos testemunhando, desde a época dos nossos pré-socráticos quânticos, a possibilidade total de extinção das disciplinas – na mesma dimensão em que, institucionalmente, elas se radicalizam cada vez mais. Um aparelho eletrônico é produzido com os conhecimentos mais imediatamente agregados pela física das partículas, mas é consumido segundo os ditames mais rudimentares do sistema de bens de consumo. O potencial altamente libertário da filosofia dos quanta não reverteu os princípios mais opressores da sociedade maquinal.

E não somente isso. Curioso é que mesmo a percepção dessa tal ambiguidade em nosso presente acentuou-se ao ponto de constituir uma das características da própria realidade contemporânea, deixando-se entrever uma espécie de realidade metaepistemológica, i.é.: uma realidade que faz, a todo instante, a sua própria epistemologia, como se o próprio processo pudesse ser domado. Não é difícil ilustrar isso: se, há algum tempo, inventávamos maneiras de classificar o passado, encerrando-o em conceitos estético-históricos como, por exemplo, barroco, romantismo, modernismo, hoje nos aprimoramos a tal ponto na prospecção virtual da história, revelada nas tentativas estapafúrdias de definição do próprio presente, que é possivel encontrar artistas cujas obras se prestam, declaradamente, a tentar comprovar a tal pós-modernidade.

É nesta realidade, a um só tempo, promissora e desesperançosa, que permite conceber um apocalíptico fim da história, na mesma dimensão em que com isso articula outras possíveis histórias, que me lanço ao desafio de sonhar uma didática pelos quanta, segundo a qual essa dicotomia se veria tão ridícula que não haveria alternativa que não a de deixar de fazer sentido. Pois, apegando-se ao fato de não haver, nos termos dessa nossa filosofia infinitesimal, um paradigma que permeie as bases de uma verdade, o próprio conceito de história parece discutível. E se, no comportamento interno das partículas, percebemos não haver diferença efetiva entre futuro e passado (o tempo circula simultaneamente nos dois sentidos), se um corpúsculo só pode determinar-se ente enquanto possibilidade constante de não-ente, podemos nos perguntar muito seriamente sobre o princípio das coisas. Elas teriam uma criação num dado momento de uma linha cronológica de mão única, ligando o passado original e o futuro profético, ou estariam a todo o momento criando-se e recriando-se a si mesmas, a partir de suas permutações com outras coisas – “contaminações” –, numa constante tensão com as diferenças?

No princípio contaminatório, cujos parâmetros são tão imprevisíveis quanto o estado do gato de Schrödinger antes de a caixa ser aberta, se perde todo e qualquer sentido tradicional de autoria e originalidade, de tempo e espaço. Toda obra – por exemplo, toda obra literária – origina-se a partir de si mesma, enquanto uma crosta contraplacada da memória de todos os textos já escritos e ainda não escritos. A memória, por sua vez, caminha tanto em direção ao passado quanto em direção ao futuro. Na verdade, a única diferença efetiva entre essas direções para a memória é que, voltada para o passado, ela se perfaz numa dinâmica constante de esquecimento e lembrança, cujo equilíbrio entre ambos vai sendo regulamentado segundo a configuração das possibilidades futuras. Voltada para o futuro, essa dinâmica da memória se perfaz esquecimento que, através das possibilidades passadas, dá lugar à lembrança, enquanto constante revelação do presente. É assim que, através da progressão temporal, lembramos enquanto realização o que ainda não havia acontecido. Desta feita, nem mesmo um texto “original” escaparia de ser ele mesmo a tradução de um texto jamais escrito. Um texto do repertório clássico, por sua vez, não deixa de ter influência do texto de um jovem escritor. Toda obra é uma permutação com tudo e, por isso mesmo, sempre uma obra original, pois como diria Heidegger, originária. É a íntima relação com o presente que pode originar sempre. Relação com o presente tem menos a ver com o momento da confecção da obra do que com o momento em que ela é acionada. Orlando Furioso, portanto, é uma obra original do século XXI à medida que alguém a leia, acionando-a (resignificando-a e atualizando-a) no instante de sua leitura. Nós mesmos somos sempre uma tradução do outro à medida que o resignificamos em nossas palavras e atos. Diante disso tudo, dicotomias rudimentares entre autores canônicos e não-canônicos, gênios e não-gênios, ou mesmo distinções entre prosa e poesia, ficção e realidade ou entre as linguagens artísticas nem seriam mais um problema, uma vez que se anulam como mero simulacro de nossa história recente. Para além da distinção entre qualidades externas à obra, é preciso perceber que toda obra é uma possibilidade em aberto – somente por isso ela pode ser adaptada ou traduzida, desdobrando-se em outras obras –, não permitindo, por isso mesmo, o estabelecimento de uma fixação objetiva, logo institucionalização. Nessa perspectiva, que desliza por vetores não-hierárquicos, a obra deixa de ser fruto da subjetividade de um autor ou de um leitor para instaurar-se como abertura amparada pela própria inquietação contida nela. Ou seja, é a própria obra, com sua plena possibilidade de contaminação que relê o leitor a partir de sua leitura e vice-versa. Ora, o poético (essa energia no interior de toda obra), nada mais é que a capacidade fundamental e anterior a todas as coisas de pensar através das coisas, e nela permanece tudo o que fazemos de forma não alienada – seja na literatura, na arquitetura, nas artes plásticas, na filosofia ou no simples ato de caminhar pelas ruas ou olhar uma paisagem – resguardando, portanto, a entropia desta indeterminação fundamental em ser-com o leitor. E assim é que essa didática pelos quanta propõe uma crítica feita não por críticos, mas por princípios dados ao leitor pela própria obra, esse a quem ela é dedicada e a quem mais interessa decidir o que será lido – sendo o leitor, portanto, seu único parâmetro. É uma didática libertária onde, sem a intervenção de um crítico ou cânone, todo leitor teria condições de escolher seu próprio “paideuma” e ser inteiro com a Obra.

É obvio que para isso (como em toda fundamentação de uma didática) comecemos pela educação. Ao afirmar que a literatura não precisa de um outro parâmetro além do leitor, me refiro a um leitor “integral”, i.é.: desde muito antes, não subserviente às institucionalizações e ao sistema de canonizações e, já de antemão, preparado e pleno de uma perspectiva poética do mundo. Nessa interação, que escolho chamar de inteiração, todo leitor já aprenderia a ser inteiro com a obra, mutando e sendo mutado a todo instante, na grande articulação de um uno fundamental que o plenifique em sua constância de possibilidades enquanto ente em constante trasformação-contaminação.

Obviamente, a percepção pré-socrática de que tudo é um (Heráclito), na qual encontramos um grande amparo para nossa didática, não infere a eliminação das diferenças, mas unicamente a radicalização do equilíbrio entre o que é um e outro. Pois que numa didática pelos quanta, as diferenças não são excludentes e as identidades não são niveladoras. As diversas realidades são concomitantes, realidades opostas e contraditórias cohabitam, cosubstanciam e determinam o real, não por eliminação ou assimilação (o que é próprio de nossa tradição), mas em suas diferenças radicais, tal como a complementariedade, para não enlouquecer diante das partículas, aceita que informações excludentes entre si sejam concomitantemente verdadeiras, sendo, o confronto dessas, a unica forma possível de descrever o “objeto” observado. Vale ressaltar, entretanto, que, no hâmbito da física, a dualidade onda/partícula determina que a luz se defina – onda ou partícula – a partir do instrumento que se escolhe pra observá-la, unicamente por uma questão narrativa contida na prórpria natureza de nossos clássicos  “instrumentos” e “instruções” de observação. Dificilmente a linguagem científica dá conta da concomitância dessas duas realidades impossíveis e absolutas em um só ente. Quem dá conta disso é a poesia.

Pois, muito mais que representar uma função específica da linguagem, a poesia somente revela o que a linguagem já é. É nesse desvelamento que a poesia se insere, trazendo novas e múltiplas definições para o real. A poesia – e aqui não estou falando de poemas, mas da poesia do poema (poesia da poesia) –, gesta, em seu estômago luminoso, a própria luz, em suas infinitas concomitâncias e espectros. Mais: a matéria luminosa da poesia ilumina a própria ficção da luz, fazendo-a luzir no real. E é no luzir real que a luz se ficcionaliza enquanto poesia, passível de ser sonhada pela física e enumerada pela matemática. Real e ficção sonham-se mutuamente na escala do mesmo.

Aliás, os limites impostos entre ficção e realidade talvez seja a maior fraude de nossa tradição filosófica, simulacro espistemológico da vontade de discernir o nós dos outros, amparado pelo julgamento clássico do que é falso e do que é verdadeiro. É pois que para a nossa didática não há sequer essa ideia. E não se trata de uma questão puramente retórica, mas concreta, que tem o poder de colocar o homem frente a questionamentos profundos quanto ao seu sistema ético. O desastre de Chernobyl, a desertificação do mar de Aral e o muro de Berlim servem bem como exemplos. Esses eventos teriam sido inacreditáveis se não tivessem ocorrido. A única diferença aceitável entre ficção e realidade é o fato de aquilo ter acontecido ou não e sabemos que qualquer história, qualquer passado, é prospectivo ao futuro que se queira chegar e, portanto, segue determinados parâmetros absolutamente ficcionais (a ciência na qual qualquer história se baseia é uma ficção dela mesma). Todo passado é uma invenção e todo futuro uma possibilidade, sendo a única realidade o presente, este tão moldável quanto o sonho. É a ficção (do latim fingere, moldar) que consuma a coisa (res, real). Portanto, toda ficção é real. Essa é a contaminação máxima, aquela em que nos contaminamos do sonho e da morte – esses enigmas.

Os próprios átomos não deixam de ser uma ficção. Em uma de suas aulas, José Ortega y Gasset diz: “Mas ainda que os físicos chegassem a um acordo e em unânime falange nos quisessem fazer crer na existência real de forças que não vemos, de átomos e elétrons invisíveis, nós lhes oporíamos a seguinte reflexão: os átomos são objetos cuja existência, ainda que seja efetiva, nos aparece somente ao cabo de todo uma teoria. Para que seja verdade a existência dos átomos é preciso antes que seja verdade a teoria física inteira. E a teoria física, ainda que seja verdade, é uma verdade problemática, que consiste e se funda numa ampla série de razões, que implica, pois, a necessidade de ser provada. (…) Os átomos são, a princípio, a quimera da física, e como os poetas imaginam a quimera com garras, lord Kelvin atribuía aos átomos ganchos e pinças. Os átomos tampouco são existências indubitáveis, não são dados do Universo”.

Ao fim e ao cabo, não nos interessa descobrir se os átomos de fato existem ou não – isso nem seria uma questão válida. São eles também ficções do real, e portanto realizações ficcionais. As partículas existem enquanto linguagem, sendo desde já uma das linguagens com a qual podemos falar o universo. E sendo a poesia a radical fundação de toda a linguagem, não deixa de ser a poesia, o próprio fundamento da matéria, realizando-a poeticamente, mundo e cotidiano. A esse respeito, lembro que o famoso físico Stephen Hawking, ao querer provar o fracasso dos filósofos, comete uma pequena gafe, demonstrando assim o seu próprio fracasso em filosofia. Na última página do bestseller Uma breve história do tempo, ele cita a frase na qual Wittgenstein afirma que a única tarefa que sobrou para a filosofia foi a análise da linguagem, ao que acrescenta um comentário pessoal: que decadência da grande tradição de filosofia de Aristóteles e Kant! Hawking aposta na decadência da filosofia, uma vez que ela não teria como acompanhar o refinado grau de aprofundamento e especialização das ciências no mundo moderno. Talvez sua maior tolice seja não perceber a ironia da frase e seu tangenciamento para uma questão mais profunda: a conclusão de que qualquer outro debate além daquele em torno da linguagem é desnecessário. Eis então a própria ciência indo ao encontro da frase de Wittgenstein, uma vez que a mecânica quântica ou a astrofísica se diferenciam das disciplinas clássicas justamente por serem naturalmente um constante diálogo com o próprio enunciado no qual se edificam, antes de se basearem em um pressuposto já dado e identificado à Verdade clássica. O importante não são as respostas que a ciência possa trazer, mas as dúvidas que a linguagem sempre tenha colocado. A física moderna nada mais é que fruto de um delírio das questões impostas pela linguagem, um deixar-se entrever pela linguagem o próprio mundo, um delírio tão absurdo e autêntico como o mais fragmentário dos sonhos. As disciplinas, frágeis construções sobre a sólida base da linguagem, entram em extinção a partir do momento em que a linguagem passa a olhar para si mesma. E é aí que pouco importa o refinado grau de especialização da ciência, mas a noção de que ela surge por este aspecto que é o poético, e que é uno.

Diante dessa série de supressões de relações lineares entre passado e futuro, um e outro, ficção e realidade, ou qualquer outra relação de exclusão do mesmo-outro, percebemos que é impossível qualquer realização fora da experiência da totalidade. Mesmo as realizações supostamente estanques de nosso mundo, não passam da parte visível de uma totalidade que a todo instante se oculta e se mostra. É nesse instante em que ela se evidencia que tencionamos radicar enquanto educadores quânticos, não o privando, obviamente, de seu ocultamento – pois aí, apenas inverteríamos a relação – mas nos levando ao amplexo de sua dinâmica. É esse estado absoluto em sua absoluta complexidade que gostaríamos de trazer para nosso leitor de coisas – nas coisas. E para isso basta, enquanto educadores, simplesmente mudar a nossa maneira de compreendermos o real e enxergarmos o quanto tudo já nos compreende a nós mesmos em sua realidade real. É sendo um leitor inteiro, em sua inteiração poética com o mundo, que podemos torná-lo o mundo que já é.

Somando-se a outras ações, futuros investimentos em termos de reflexão e novas dinâmicas em relação ao real e à literatura, o mundo retorna ainda outra vez para o ecoambiente fundamental de interação entre homem e natureza. O progressivo desaparecimento das disciplinas dará lugar às interações quânticas e suas maravilhosas realizações de mundo – como poesia máxima da linguagem: poesia da poesia. Eis o mundo ritualizando-se na palavra mais uma vez, pois todo esquecimento é fiel ao esquecido:

O que se oculta nunca desaparece e surge no instante preciso em que precisa ser lembrado.

 

 

 

 

 

 

 

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Márcio-André é escritor, tradutor, ensaísta, artista sonoro e visual. Autor de quatro livros de poesia e ensaios, colaborou com jornais e revistas brasileiras e internacionais, além de ter obras suas traduzidas para oito idiomas. Foi ganhador da Bolsa Fundação Biblioteca Nacional e poeta residente em Monsanto, Portugal. É também editor da Confraria do Vento e curador do Cidade aTravessa, encontro realizado nas cidades de Lisboa, Rio de Janeiro e São Paulo. Poeta experimental, com obras na área da poesia visual e sonora, da instalação e da performance, realizou trabalhos no Reino Unido, França, Espanha, Portugal, Ucrânia, Argentina, Peru e Brasil. Apresentou-se em eventos como o Festival Silêncio, Balada Literária, Encontros de Interrogação, Encontro Internacional de Poetas da Universidade de Coimbra, Fórum das Letras, Marché de la Poesie e A palavra toda. Ao lado de Maria Bethânia, Zeca Baleiro e Edu Lobo, leu poemas no documentário e na videoinstalação Há muitas noites na noite, de Silvio Tendler. Realizou uma Conferência Poético-Radioativa (2007) na cidade fantasma de Chernobyl, na Ucrânia, tornando-se “o primeiro poeta radioativo do mundo”. Site: www.marcioandre.com E-mail: marcio@confrariadovento.com




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