Diálogos pertinentes


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Affonso, você passou o seu período de formação em Belo Horizonte, MG. Conte-nos um pouco como foi esse período. O que aprendeu com os pais e professores que carrega sempre consigo? Aliás, quais foram seus “mestres” e como se deu a descoberta da Literatura?

R. Fui para BH em 1957 pensando em fazer carreira como  jornalista e estudar na Faculdade de Letras. Foi duro. Tive que trabalhar em banco para me sustentar. Morando, no princípio, em pensões – até com 4 pessoas no quarto e colaborando eventualmente pros jornais. Aí travei contato com uma nova geração. Era a época em que Klauss Viana reinventava a dança moderna, fazia-se lá um teatro de vanguarda (Beckett, Ionesco) e acabei indo cantar no Madrigal Renascentista, regido pelo Isaac  Karabitchevisky. A Faculdade me deu mestres invejáveis: naquele tempo no curso Neolatinas você estudava cinco literaturas e escrevia trabalhos nessas línguas. Comecei a desenvolver uma atividade política como diretor de cultura do Diretório da Faculdade de Filosofia e depois do DCE e na União Estadual de  Estudantes. Fundei o  Centro Popular de Cultura -CPC ( da UNE) em Belo Horizonte. Detalhe: fui um dos organizadores da Semana de Arte de Vanguarda (1963), quando apresentei um desconhecido jovem de Curitiba aos irmão Campos, chamava-se Leminski. Mas meu primeiro aprendizado foi em Juiz de Fora, onde, adolescente, escrevia diariamente para jornal  e fundei o Centro de Estudos Cinematográficos.

 

Vivemos em um mundo aparentemente sem rumo, um barco à deriva. A própria noção do que é ser humano parece que se perdeu. Em que a poesia poderia contribuir ao humano. Ou, para citar o título de um livro seu, qual é a “poesia possível” e necessária de ser feita hoje?

R. Também disse que “a vida é o impoemável poema”. Giramos com palavras em torno do mistério. E a poesia fala disto. É o jogo do pleno e do vazio. Como o mistério só aumenta, (com a partícula Bózon ou nåo,) aumenta o número de poetas, e os  cientistas se aproximam da poesia e vice-versa.  As  grandes obras são vertigens à beira  do mistério. Cada um faz  a  “poesia possível”, toda obra é incompleta, um work in progress. E a descoberta do nada é o momento da grande epifania.  Não à toa que acabei de publicar um livro com titulo de “Sísifo desce a montanha”.
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Você citou certa vez em um artigo o sociólogo Domenico de Masi que dizia: “Considero o otimismo a forma mais perfeita e generosa de inteligência.” Essa ideia, que nos parece muito perspicaz, é amplamente ridicularizada pelos intelectuais e racionalistas de plantão. Em que aspecto você a acha verdadeira?

R. Talvez o otimismo seja também uma resultante química, reação das glândulas. Minha tendência é lutar,  mesmo que não haja clareza ao redor, O primeiro poema do Sísifo, diz: “tenho pouco tempo para resolver três enigmas que me restam. Os demais, ou não os resolverei, ou resolveram me abandonar, exaustos de mim.”  E descobri que uma frase que gosto muito é de Mark Twain:: “Como não lhe contaram que era impossível, ele foi lá e fez o que tinha de ser feito”.

 

Pra você o mundo precisa ser reinventado, como sugeriu Jean Claude Guillebaud em seu livro “A reinvenção do mundo”? Em que medida?

R. Tento ferozmente entender o cotidiano: sou um semiólogo que não tira férias. Não e  à toa que publiquei um livro chamado LER O MUNDO.  Ao contrário dos que pensam que a poesia é inútil e a crônica é um simples blablablá, acho que são um instrumento do pensamento. Por isto falo tanto de “projeto poético pensante” (Heidegger). Uma chacina num cinema nos EUA é oportunidade para estudarmos os contrassensos da modernidade, que tem aquela enfermidade chamada “Double bind “: dá ordens contraditórIas às pessoas. Alguns se  atrapalham com isto, se desesperam e caem no precipício.

 

Em outro artigo seu você diz que “é preciso cuidado com os surtos racionalistas” e, comentando Dom Quixote, que a razão pode ser a véspera da morte. Você pode desenvolver um pouco mais essa ideia.

R. Os melhores cientistas são os que perceberam os limites da razão. Com  a arte acontece a mesma coisa. Os que acham que podem fazer obras mecânicas, de engenharia construtivista perdem o melhor de si mesmos e fazem uma arte menor.

 

Affonso, o poeta e filósofo budista japonês, dr. Daisaku Ikeda, ao proferir seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, em 1993, citou nosso querido Guimarães Rosa dizendo que a essência brasileira é o “grande universalismo”. O que você acha dessa afirmação?

R. Há uma corrente messiânica que acha que o Brasil é a grande síntese. Darcy Ribeiro e outros achavam isto. Não acredito que um povo seja “melhor” que outros, que detenha o futuro. As civilizações nascem  e morrem. Outro dia estive no  Irã, e vi o que era o império persa: Dario, Xerxes Atarcheches. Acabo de voltar da Grécia, da Alemanha e Peru.  Viajar é preciso. Como eu disse no poema feito para o YouTube (Obama venha comigo à Cartago): sou um colecionador de ruínas. O passado me trespassa.

 

Em um texto seu você diz que “sem o mito do amanhã não existiríamos”. Aprendemos com o budismo que o amanhã se constrói a partir das ações realizadas hoje. Como conciliar o desejo imaginário do amanhã com as ações possíveis (e muitas vezes equivocadas) do agora?

R. Os psicólogos dizem que o sentimento de ‘’expectação” é próprio do ser humano. Atestei  isto ao estudar a questão do tempo em Drummond, lendo por exemplo o que Cassirer e outros disseram sobre as formas simbólicas. O ser vivo necessita articular passado, presente e futuro. O indivíduo e a sociedade. Às vezes confesso que me canso um pouco de “expectar” (como dizia Neruda: “sucede que me canso de ser hombre) mas logo me recupero, sigo para frente, mesmo quando percebo que às vezes o fim está no princípio. Essa coisa de sair galopando na direção do futuro é uma síndrome modernista, ideia de progresso, de quem pensa que a história é retilínia (como Cristo e Marx queriam).

 

O historiador Eric Hobsbawn considera a queda do Muro de Berlim como a data símbolo do final do século XX, o século breve. O que você acha? Não seria mais adequado considerar o 11 de setembro de 2001 como o marco zero do século XXI?

R. Podemos dar o “corte epistemológico “dependendo da percepção teórica. A queda do muro foi equivalente à queda de Constantinopla. O século foi acabando aos poucos. Eu vi  o século se estrubuchando em Moscou quando o comunismo acabou -aos meus  olhos, ali na Praça  Vermelha, em 1991. Meninos, eu vi.

Teria o séc. 21 começado com a internet em 1992 ou com a Primavera Árabe de 2011?

 

Como foi pra você ser considerado o sucessor de Carlos Drummond de Andrade (pelo influente crítico Wilson Martins)? Não pesou um pouco nos ombros?

R. Foi um inferno.  Registrei isto num diário, que talvez publique um dia. A intenção do  W. Martins era a melhor possível, e  ele mesmo voltou ao assunto explicando que havia uma linhagem na poesia brasileira que vinha de Gonçalves Dias, passava por vários autores e ia dar na minha obra. Autores como Bandeira e Drummond. Ele estava falando de linhagem. Mas o ambiente literário é um serpentário. Eu não sabia que havia tantos candidatos à “sucessão” (que não existe). Não bastasse isso, pelo fato de ter assumido o lugar de Drummond no JB (Jornal do Brasil), seus leitores me tomaram por confidentes, fazendo ostensiva transferência. E a coisa foi se agravando: também as namoradas de Drummond acharam que podiam fazer essa transferência. Como disse no poema “Jogral” onde tratei disto:

 

Quando o rei morreu

começaram a derramar veneno em minha taça.

Adverti: não herdo nada,

A paz quero, das cavalariças.

Mas continuaram. Envenenaram a água do poço.

Porém, não tendo o mesmo sangue rei,

o veneno não me afetava,

antes, aos intrigantes olhos da corte

mais viçoso acordava.

Desde então

não tendo outro remédio,

abri prosaica farmácia

onde, aprendiz de alquimia,

converto veneno alheio

em poesia.

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Aliás, o crítico Wilson Martins faleceu recentemente e havia perdido nos últimos anos seu espaço de crítico literário no Jornal do Brasil. Parece que vivemos em uma crise das Ciências Humanas, ou das Humanidades. Por que será que os cadernos culturais dão cada vez menos importância para a literatura, para a cultura criativa e cada vez mais espaço para o “entretenimento”?

R. Andei como você, preocupado com esse assunto. Num  seminário organizado pelo competente Alberto Dines, no CCBB, apresentei uma conferência analisando os suplementos e comparando-os com os de outros países. Quando comecei, em BH havia 4 suplementos semanais e às vezes escrevia para os 4. Escrevia também para o Estadão, Correio da Manhã e até para o Jornal do Brasil.  Havia também a revista Senhor, com a qual, estudante ainda, colaborei. Fiz crítica literária na Veja, quando ela se interessava não por Best Sellers, mas pela literatura brasileira.  Hoje “entretenimento” virou palavra de ordem. E para entender isto é necessário considerar a sociedade do espetáculo, coisa que tentei fazer nos estudos sobre carnavalização e nos livros “Desconstruir Duchamp” e “O enigma vazio”.

 

Quase todo mundo repete o chavão de que o brasileiro lê pouco, que o livro no Brasil é caro, ou até de que o brasileiro não gosta de ler. Você foi por muitos anos presidente da Biblioteca Nacional e, também, secretário-geral da Associação das Bibliotecas Nacionais Ibero-Americanas. A partir de sua experiência, o que poderia ser feito para efetivamente incentivar o gosto pela leitura no brasileiro médio?

R. O Proler é assunto de dezenas de teses universitárias, e o projeto do Sistema Nacional de Bibliotecas (uma biblioteca em cada município) está fazendo 20 anos.  Na Abinia (Associação das Bibliotecas Nacionais Iberoamericanas) no Ceralc (Centro Regional para o fomento do Livro e da Leitura na América e no Caribe) entrei em contato com o problema do livro leitura em nosso continente e, como presidente da BN, conheci as maiores bibliotecas dos mundo e pude participar de debates muito instrutivos. Lamento ter saído  da BN sem ter podido levar para Angola e Moçambique e os países africanos o projeto do Proler que já estava pronto.

Hoje, há mais de 10 mi projetos de leitura no Brasil, leitura em açougue, borracharia, até mesmo em bibliotecas.

 

Você já teve a oportunidade de conhecer pessoalmente e conversar com grandes personalidades culturais e criativas. Qual a característica em comum que você identificou e que poderia citar como a marca de um grande homem?

R. Há dois tipos de personalidades: os que agregam e os que dividem. Os que dividem são etimologicamente diabólicos: ”demônio = divisão”.  Dividem a história em duas, a deles (a certa, a única) e os demais (equivocados). Isto é equivoco autoritário pavoroso, que não resiste a uma análise formal, lógica e à uma analise  epistemológica e ética. Por  outro lado, uma das coisas que observo há muito é que o ambiente artístico repetindo o Butantã, repete a vida animal, a luta feroz. Evidentemente a vida artística não é uma reunião de arcanjos. A biologia, a antropologia tem mais a dizer sobre a vida literária que a própria literatura.

 

Certa vez você citou em entrevista que existem três tipos de analfabetismo: o analfabeto propriamente dito; o analfabetismo funcional (aquele que lê mas não entende completamente o que leu) e o analfabetismo tecnológico. Como você se relaciona com as novas tecnologias? Vivemos efetivamente na Cibercultura, como apregoa o filósofo Pierre Lévy? Qual é o futuro do suporte livro?

R. Botei isto, mais bem explicado, num ensaio que está em LER O MUNDO, e recentemente fiz um ensaio que está em vários sites e vai sair em livrinho intitulado O LEITOR, ONDE ESTÁ O LEITOR?  Nós não temos livros demais, temos leitores de menos. Dos 200 milhões, talvez não contemos nem com 20 milhões (ou 2 milhões?) de consumidores de livros (as estatísticas não são confiáveis). Mas o mais importante é atentar para o fato de que se não conseguimos construir bibliotecas suficientes em 500 anos podemos com a internet, o iPad, iPhone, etc., fazer com que o cidadão no interior tenha acesso aos livros. Quando Rondon colocou o último posto do telégrafo com fio na fronteira da Bolívia, Marconi descobriu o telégrafo sem fio. A internet pode nos ajudar a recuperar o tempo perdido.

 

Sua esposa, Marina Colasanti, também é escritora e poeta. Vocês formam, como ela mesmo já disse, um “casal tipográfico”. Isso ajuda no diálogo cotidiano e no trato com as questões comezinhas do dia a dia? Afinal, todos temos que pagar as contas, lidar com as recessões econômicas, comparecer em reuniões de condomínios etc.

R. Marina é uma das escritoras mais completas que conheço. Trabalha praticamente todos os gêneros literários, sempre com competência. Alem de tradutora, é uma conferencista magnífica. Tem um pensamento original e consistente sobre a literatura e  a criação literária. Está traduzida em várias línguas. E segue fazendo seu trabalho longe das políticas literárias.

 

 

 

 

 

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Affonso Romano de Sant’Anna: Um dia dizendo seus poemas no Festival Internacional de Poesia Pela Paz, na Coréia (2005), ou fazendo uma série de leituras de poemas no Chile, por ocasião do centenário de Neruda ( 2004), ou na Irlanda, no Festival Gerald Hopkins(1996), ou na Casa de Bertold Brecht, em Berlim(1994), outro dia no Encontro de Poetas de Língua Latina(1987), no México, ou presente num encontro de escritores latino-americanos em Israel(1986), ou participando o International Writing Program, em Iowa(1968), Affonso Romano de Sant’Anna tem reunido através de sua vida e obra, a ação à palavra . Nos anos 90 foi escolhido pela revista “Imprensa” um dos dez jornalistas que mais influenciam a opinião pública. Em 1973 organizou na PUC/RJ a EXPOESIA, que congregou 600 poetas desafiando a ditadura e abrindo espaço para a poesia marginal; foi assim quando em 1963, no início  de sua vida literária, tornou-se um dos organizadores da Semana Nacional de Poesia de Vanguarda, em Belo Horizonte. Com esse mesmo espírito de aglutinar e promover seus pares criou, em1991, a revista “Poesia Sempre” que divulgou nossa poesia no exterior e foi lançada tanto na Dinamarca, quanto em Paris, tanto em São Francisco quanto New York, incluindo também as principais capitais latino-americanas. Atento à inserção da poesia no cotidiano, produz poemas para rádio, televisão e jornais. Tendo vários poemas musicados (Fagner, Martinho da Vila), foi por essa e outras razões convidado a desfilar na Comissão de Frente da Mangueira na homenagem a Carlos Drummond de Andrade, em 1987.  Apresentou-se falando seus poemas, em concerto, ao lado do violonista Turíbio Santos. Tem também quatro CDs de poemas: um gravado por Tônia Carrero, outro comparticipação especial de Paulo Autran, outro na sua voz editado pelo Instituto Moreira Salles e o mais recente outro pela Luzdacidade, com a participação de atrizes e escritoras. Seu CD de crônicas, tem participação especial de Paulo Autran. Escreveu dezenas de livros de ensaios e crônicas. Como cronista, aliás, substituiu Carlos Drummond de Andrade no “Jornal do Brasil” (1984). Blogue: http://affonsoromano.com.br/blog/index.php E-mail: santanna@novanet.com.br




Comentários (2 comentários)

  1. Daniel Lopes, E já que o homem cutucou o racionalismo e falou em Heidegger: “Todo o literatismo e estetismo são apenas uma consequência ulterior e uma degenerescência do espírito falsificado em inteligência. O mero engenho, o apenas espirituoso, é aparência de espírito e a tentativa de esconder sua ausência.” do Pastor Alemão, Introdução à metafísica.
    8 agosto, 2012 as 23:31
  2. Daniel Lopes, Algumas coisas que me vieram à mente durante a leitura da entrevista: “Giramos com palavras em torno do mistério. E a poesia fala disto. É o jogo do pleno e do vazio.” Affonso Romano Santana. “O nome que pode ser dito/não é o Nome eterno. No princípio está o que não tem nome.” Lao Tsé, no Tao té Ching. “A estética pensa de outra maneira. Ela é tão antiga como a lógica. Para ela, arte é a expressão do belo, entendido como aquilo que agrada por dar prazer. De fato, porém, a arte é a abertura do ser do ente”. (Heidegger). van Gogh só precisava a de um girassol, de um par de sapatos ou um quarto velho para revelar o sagrado humano. “No princípio, era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus” João 1 – 1:3 “A Arte é feita de mentira, mas não tolera falsidade” Juan Rulfo. Penso que quase tudo o que se escreve, insere-se no mero barulho. Antes de haver um autor, deve existir um homem ou uma mulher. Alguém capaz de ousar o fracasso e se manter firme mesmo com tantas modas e tanto barulho. O problema é que quase todo mundo só quer fazer parte da indústria cultural, que nada mais é que o braço cultural do podre historicamente instituído. “… quando tempo significar apenas rapidez, instantaneidade e simultaneidade e o tempo, como História, houver desaparecido da existência de todos os povos; quando o pugilista valer, como o grande homem de um povo, quando as cifras em milhões dos comícios de massa forem um triunfo, – então, justamente então, continua ainda a atravessar toda essa assombração, como um fantasma, a pergunta: pra que? para onde? e o que agora?” Martin Heidegger, Introdução à metafísica. A grande maioria dos que estão escrevendo e dos jovens que começam a escrever, já nascem vendidos, aparecer é o mais importante. Estão mais preocupados em se dar bem no mundo, o texto é só um detalhe. A fama pode ser desejável, mas que pelo menos seja fama com mérito e não simples celebridade. Executivos-marqueteiros-da-vanguarda. Mas “o mito é o nada que é tudo” (Pessoa). Édipo Rei está aí para mostrar qual o final daquele que aparenta e não é.
    8 agosto, 2012 as 23:57

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