Demolidor de máquinas e corpos


…..ALEXANDRE GUARNIERI É DEMOLIDOR DE MÁQUINAS E CORPOS

……….. [ para mostrar a poesia que pode ter dentro de tudo ]

 

 

1.

O multi Torquato Neto alerta que ser poeta “é estar sempre recriando dificuldades pelo menos maiores”. Essa ideia pode ser uma lente, uma pele, para olharmos e sentirmos a dinâmica do texto de um artista com o passar do tempo. Quem escreve é sempre atraído pela invenção de um universo diferente em cada livro, ou em cada novo suporte – é viciado no próximo impulso para, continuamente, testar seus limites de expressão.

Nesse contexto da necessária inquietude, e de se impor mais desafios, o carioca Alexandre Guarnieri surge com sua poesia corajosa, especial, das melhores atualmente. Em seu primeiro livro, Casa das Máquinas (Editora da Palavra – 2011), há um mundo resignificado de engrenagens, lâmpadas, motores, válvulas, discos rígidos, rebites, bitolas, cilindros – parece que tudo que é aparelho foi implodido, desmontado, pedaço por pedaço, para ter revelado o interior, para ser mostrado o seu funcionamento. Assim, os poemas apresentam o interior e o funcionamento das máquinas. E, claro, de quem usa as máquinas.

A construção da escrita é meticulosa, já que essas páginas, mesmo encadernadas, vão deixando de ser livro, querem mesmo é ser uma linha de montagem. Logo, a poesia de Guarnieri pode se localizar entre o dicionário e o manual de instruções. O poema uma máquina datilográfica começa assim:


algo neogutenberg, relíquia de uma era: non-eletric black deck, olympia repleta de teclas, de um écran madre-pérola o escritor a opera…”

Com os versos embutidos no texto corrido, escrito em blocos, as linhas justificadas camuflam a sofisticada musicalidade do poeta. Note como é bem usado o recurso da assonância, repetindo o som da vogal “e” aberta. Esse som dá unidade melódica ao trecho, a divisão dos versos é marcada, cria-se um ritmo interessante e ainda surgem rimas dissonantes, rimando nas vogais. Podemos até dividir e destacar o trecho desta maneira, para ficar mais claro:


algo neogutenberg,

relíquia de uma era:

non-eletric black deck,

olympia repleta de teclas,

de um écran madre-pérola

o escritor a opera…”

 

– numa sequência de versos de 6 sílabas poéticas, com exceção de apenas um, o antepenúltimo.

O formato de prosa dos poemas é recurso para se aproximar da maneira como são escritos os textos técnicos, e reaproveitá-los criativamente, como outro suporte para a poesia, outra maneira de fazer. O poeta domina, excelentemente, recursos formais e faz o parágrafo virar quase um jogo para o leitor participar, ir achando a poesia, que não está explícita na página.

 

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2.

Três anos depois, Guarnieri lança seu segundo livro, Corpo de Festim (Confraria do Vento – 2014), demolindo agora o corpo, nossa máquina mais misteriosa, para, fragmentada, ficar em evidência por todos os ângulos possíveis. O baço, os rins, o fígado, o pus, a lágrima, os dois ouvidos, a urina, os dois olhos, o sangue, a pele, o suor, o ânus são considerados e reconstruídos pela escrita.

O vocábulo festim, como metáfora para o corpo, é bastante abrangente, mas, sobretudo, irônico – porque, nesse contexto, seus sentidos são afirmados e negados concomitantemente. Ao mesmo tempo em que poderia significar “uma pequena festa” (a alegria da língua?), ou “uma reunião animada entre pessoas” (autor e leitores?), temos poemas sobre o glaucoma, a falência múltipla dos órgãos, ou uma autópsia! Precisamos reconhecer que não há muitas notícias de baladas, ou comemorações, inspiradas por esses assuntos.

Outro sentido para festim é “vazio”, “mentira”, “simulação” – a bala de festim é bala de mentira, bala simulada, inclusive utilizada em cerimônias militares fúnebres. Logo, podemos ter no livro um corpo com todas essas acepções: corpo de festa, corpo de funeral, corpo de mentira, corpo real. Novamente, a ironia se faz presente – não importa se o corpo é de festim; na poesia, esse corpo será sempre verdadeiro porque é materializado pelo texto. E não importa se o corpo é verdadeiro; na poesia, esse corpo será sempre um fingimento devido à materialidade da poesia. “O poeta é um fingidor”, nos ensinou Fernando Pessoa.

O livro começa de onde começa a vida – mais básico, impossível – com o poema o átomo de carbono (elemento presente em qualquer ser vivo):


toda a vida contida numa exígua partícula…”

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O primeiro verso é representativo da poesia de Guarnieri no Corpo de Festim. Novamente, temos 2 versos hexassílabos, “disfarçados” de um só, e a exploração da musicalidade pela assonância, neste caso com a letra “i” (o que irá se repetir por quase todo o livro):


toda a vida contida

numa exígua partícula…”

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É preciso também demolir sua escrita para entendê-la, para apreendê-la melhor. Como no poema “( / no filtro: (o baço), (os rins), (o fígado) / )”, para destacar só mais um exemplo e não ficar cansativo:


o filtro imbrica baço, rins ( integrados )

no fígado definitivo ( todos, na íntegra, definidos ) /

discrimina impurezas ao limbo, metaboliza líquido

e película, nega, entrega e delega a certas partículas

e células os abismos da urina que instiga e destila…”.

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A letra “i” parece ser um tiro, ou um bisturi, que sai de festim e atravessa o livro. Como a vogal mais fina, aguda, guia nossos sentidos para uma percepção mais profunda. É claro que, nos textos, há repetição de consoantes (usando a aliteração) para dar maior sonoridade, porém o autor se aprofunda mesmo é com a lâmina das vogais.

Ao longo das páginas, os poemas se encadeiam, se somam e se transformam tal qual a evolução natural foi mudando e adaptando a vida. Até chegarmos, por exemplo, no poema “(( ( útero ~ incubadora ) ))”, um dos mais belos do livro, condensando imagens surpreendentes e a música das vogais. Guarnieri dá uma aula de como potencializar os sentidos da poesia. Usa desde os sinais gráficos (como os parêntesis) para simbolizar e materializar a própria placenta, ou membranas, até o sinal de til ~ mostrando o espermatozoide que fecundará. O poema vem desde a ejaculação do pai (“hábitos aquáticos no estágio embrionário”), passando pela fecundação e gestação de nove meses da mãe (“cujo único exercício preparatório é o respiro amniótico nesta antessala líquida do mundo”), até o nascimento.

Guarnieri assume o risco de apresentar temas bastante estranhos à poesia, com rigorosa construção, podendo causar desconforto, ou até mesmo nojo, ao leitor acostumado com uma visão estreita das possibilidades artísticas. Sabemos que a poesia ainda é vista pelo grande público sob um imaginário de senso comum “romântico”, no qual é feita de “sentimentos verdadeiros”, de “inspiração”, do que é “espontâneo” e “sai do coração”. Mas ele mostra que somos justamente aquilo que consideramos bizarro. E por isso somos fantásticos. Todo verso que existe no mundo só foi feito, e só é lido, porque temos glândulas, glóbulos, microorganismos, traqueia, órgãos embaixo da pele pulsando e movendo esse corpo que, quase sempre, somos educados para ignorar. E de onde vem a poesia? É simplesmente óbvio que a poesia vem do ventrículo esquerdo, da gordura, da artéria, da doença genética, da metabolização do alimento, de todos os nossos lugares ao mesmo tempo.

Na capa de Corpo de Festim, há a imagem do artista húngaro Harry Houdini, um dos maiores escapistas de que se teve notícia. Começou sua carreira no final do séc. XIX e ficou famosíssimo pelo talento de, em qualquer situação, se desvencilhar de correntes, cadeados e, num passe de mágica, livrar o corpo de todo tipo de prisão. Na capa, ele está completamente amarrado, olhando para o leitor, mas pronto para um novo desafio. Quando acabamos a leitura do volume, sua imagem passa a fazer muito mais sentido. A figura de Houdini é excelente metáfora para iniciar alguns questionamentos: quantas prisões constroem um corpo humano? Que fuga é possível para cada ser? “Nestes dias de cansaço e desastre” e “tamanha descrença”, quando queremos apenas sumir, é possível fazer como o escapista no espetáculo e, subitamente, desaparecer de vez com o nosso “eu”? Como não deixar vestígio?

Há diversos aspectos em seu texto para serem explorados, posteriormente, com profundidade: o conceito de “lirismo”, a relação entre poesia e ciência (“de charles darwin a richard dawkins”), as relações entre moral e corpo, ou mesmo uma reavaliação do que entendemos por “natureza”. Sua escrita não é apreendida apressadamente. Não nasceu de forma “espontânea”. Os livros passam longe de ser uma reunião de poemas. São projetos bem claros, complexos, pensados prega por prega, mas transformam a beleza com conceitos extremamente desafiadores. Fazer isso é realmente difícil. São exercícios de rigor e amor com a língua.

Ao ler os poemas de Alexandre Guarnieri, tão repletos de referências pop (frankstein, oz, dorothy, asimov, einstein), acabei lembrando do cego Matt Murdock, o herói Demolidor, que daria tudo para olhar de novo o céu (substantivo manjado na poesia). Percebo que o poeta, inquietador de si próprio, pelo menos por enquanto, quer olhar mesmo é para baixo: uma máquina desmontada na mesa e recriá-la na linguagem; ou as partes de um corpo deitado, apresentando novos ligamentos da escrita e o prazer possível de algum desmantelo.

 

 

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3 poemas de Alexandre Guarnieri

 

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pílula

 

mergulha goela adentro a miniatura duma ogiva,

atravessada pela arcada dentária, o mínimo submarino

ingerível pela gelosia das gengivas, luta o ácido

dessa remessa medicinal contra o refluxo do esôfago,

porque administrado via oral, o único remédio necessário

é essa mínima bomba química cuja engenharia

da reação em cadeia buscaria atingir certos tecidos,

alvos de registros específicos ( um nódulo, pústula

ou o cancro n’algum recanto ) entretanto, enquanto

( exponencialmente ) progride esta ou aquela epidemia,

hordas de mamíferos humanos aportam às farmácias

como insanos, mas homo sapiens, são espécimes adultos,

cuja mais completa farmacopéia não acorre,

não há em todos os estoques ( que logo se esgotam

nas prateleiras da indústria farmacêutica ) algo que

resolva o medo a náusea o mal estar da civilização

à época da reprodutibilidade técnica de doenças genéticas,

vendidas conforme qualquer outro mercado se regula

( malogra o lucro se não há juro, já não há jura

quando a demanda se dana ) até que se descubra

que o veneno e o antídoto ( a fartura / a carestia ),

a doença e a cura, indissociáveis siamesas,

já são partes da mesma mistura.

 

 

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/ limitrofagia /

 

ainda que ande muito / não percorrerá o mundo

se atravessa a ponte / abdica de um dos lados

se cala / não declara a vontade

mesmo que fale / não esgota o assunto

que infrinja a lei / será posto entre muros

se espalma o punho / não há muito

explana os braços / não voará no vazio

 

vive, mas entre limites / se livre, não é para sempre

quando alcança a outra margem | retroage /

se realiza o máximo fica | e se reafirma

se não fixa ( desloca / reage ) abandona a cidade

ficar / fugir     falar / calar   ( ação ou ócio )

sobre poucas coisas se têm escolha

morrer / viver ( sempre ou nunca ) ontem / hoje

algumas outras | só dobram os homens

 

 

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(( ( útero ~ incubadora ) ))

 

( hábitos aquáticos no estágio embrionário – ( ~ mar ~  matre ~ mater ~ ) a placenta atravessada a nado por alguma criatura inicial – ( ~ girino ~ feto ~ enguia ~ ) cujo único exercício preparatório é o respiro amniótico nesta antessala líquida do mundo ( a câmara salina na bolha viva da barriga ) | o que da ova retida leva o solitário ovócito confortado, do óvulo revelado eva adentro, é toda fértil a terra materna | o filho, no início, bicho tão mínimo, indistinguível de qualquer outro seixo modelado sob o rio sanguíneo ( do íntimo nilo ao assomo do amazonas ), grão humano aguardando subir tantos degraus quanto necessário para tornar-se um corpo, na manjedoura dos ovários, do zigoto ao todo, gomo por gomo ( diagrama, fractal ), mandala gráfica o amálgama dos gametas | ( da nutrição pelo umbílico o bebê é dependente, umbrívago ), ossos desenvolvem-se, órgãos, cérebro, segue-se o desenvolvimento de todos os membros ) desde o sêmen [ do pai, macho da espécie, apenas o mero remetente de seus genes ] e dentro por nove meses [ da mãe, tenro invólucro amoroso, tendo sob sua guarda algo novo ] a cápsula carnal que alargará o canal vaginal, túnel extremo do músculo, porque se haverá de abandonar (a qualquer momento) essa hospedagem ( quando nascer começa a doer ) será outro o destinatário neste parto – o pai não pare –, a porta (exaurida na expulsão) serão duas pernas abertas ) ao espetáculo dá-se o nome: “nascimento” ( no clímax, destaca-se o ticket ) ansioso o silêncio ) o primeiro choro interrompe o suspense ) “não há defeito congênito!”, celebram os obstetras, aos berros ] ESTE É O LADO DE FORA! [ o ar arranha ] é áspero o primeiro oxigênio [ a partir de agora, sob uma sequência de choques, somente interrompida pela morte, serão muitas auroras de fuligem e pólvora! ] a menos que este neonato, acometido por estranhíssima epifania pré-natal, (o caso mais raro!) escolhesse enforcar-se no cordão umbilical | mas ao recém-nascido saudável restará, desde já, [ a verdade ainda indisponível ],   revoltar-se /

((   ,   )) <   <   <   <   <   <   <   <   <   <   <   <   <   <   <   <   <   <   <   < ou voltar!

 

 

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Alexandre Guarnieri (carioca de 1974) é poeta e historiador da arte. Integra (desde 2012), com o artista plástico, músico, ator e poeta, Alexandre Dacosta, o espetáculo mutante [versos alexandrinos]. Casa das Máquinas (Editora da Palavra, 2011) é seu livro de estreia e está disponível online (no issuu.com). Publicou poemas em revistas e jornais, dentre eles o Panorama da Palavra, Urbana, O Carioca, Suplemento Literário de Minas Gerais, dEsEnrEdoS, RelevO, Eutomia, Zunái, Musa Rara, Acrobata e Germina. Em 2014, participou das antologias Essas águas (Org. Vagner Muniz, 2014 [ebook]), Hiperconexões: realidade expandida, volume 2 (poemas sobre o pós-humano; Org. Luiz Bras, Patuá) e Outras ruminações (75 poetas e a poesia de Donizete Galvão; Org. Reynaldo Damazio, Ruy Proença e Tarso de Melo, Dobra). Seu mais recente livro é Corpo de Festim (Confraria do Vento, 2014). Pertence ao corpo editorial da revista eletrônica Mallarmargens http://www.mallarmargens.com/.

 

 

 

 

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Thiago E é poeta de testes. Relator de processo. Músico e compositor. Autor do livro Cabeça de Sol em Cima do Trem (2013), com imagens de Joniel Veras. Integra a banda Validuaté, com a qual lançou os discos Pelos Pátios Partidos em Festa (2007), Alegria Girar (2009) e o EP Este Lado Para Cima (2013). É coeditor da revista Acrobata : literatura audiovisual e outros desequ​ilíbri​os. Trabalha na Assessoria de Imprensa do Ministério Público do Estado do Piauí. Edita a coluna Intacta Retina, no Jornal O DIA, aos domingos, publicando poesia, prosa, artes plásticas, de diversos artistas. Em parceria com Jan Pablo, produziu o álbum Cabeça de Sol em Cima do Trem (2013). Mais informações no site http://thiagoe.com/.

 




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