Dedilhando o vazio nos bolsos


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Assim como um poema é sempre mais do que um poema, revelando uma determinada poética, um livro de poemas dialoga com as várias tradições poéticas que reverberam, sincronicamente e diacronicamente, no momento em que ele é concebido. Ora se distancia, ora se afirma em uma trajetória que lhe é própria. Com esse pano de fundo sempre presente, o poeta responde com seus poemas ao que viria ser a poesia no instante ao mesmo tempo único e histórico de sua trajetória existencial.

A poesia de Fernando Paixão se reafirma, com este delicado enfeixe de poemas do livro Porcelana Invisível, uma poesia de extração nitidamente lírica: por mais que nos fale dos eventos externos a si, do enigma do mundo, os objetos exteriores são apenas o esteio, o fundamento, o impulso de onde nascem as reflexões, as emoções, os sentimentos e as opiniões do poeta. A passagem do tempo, as perdas, as amizades, a ingenuidade que se esvai, o amor, o prosaísmo da vida, tudo é recomposto pela espessura da linguagem poética.

Na apresentação do livro, o mestre Alfredo Bosi pontifica que o perfil do poeta, já delineado em livros anteriores, se completa agora com uma “lírica da matéria e da memória”.

Se em seus livros anteriores, especialmente 25 Azulejos (1994) e Poeira (2001), já se pudera identificar uma voz poética que se firmava deitando raízes no solo de nossa melhor tradição lírica e modernista, com Drummond, João Cabral de Melo Neto, Clarice Lispector, Fernando Pessoa, Mário de Sá Carneiro (poeta que lhe inspirou uma dissertação de mestrado) e Herberto Helder (outro poeta de sua predileção), notamos que neste livro o barro de sua poesia ganha a consistência adequada de quem sabe que molda-se a argila para fazer vasos, / mas é do vazio interno / que depende o seu uso.

A poesia brasileira contemporânea teve que dialogar ou se tornar refratária a vários tipos de formalismo, ditos de vanguarda ou não. Fernando Paixão, como poeta, como leitor e como artífice participante do mercado editorial brasileiro (trabalhou por três décadas em grande editora brasileira) não pôde ficar alheio a isso e, sejamos justos, soube buscar sua voz diante da quantidade de espécimes e árvores na floresta.

Paixão escreve como quem descreve os movimentos do pincel de uma pintura dada. Uma observação plácida da natureza, da vida, do corpo amoroso, das coisas do mundo, matizada por uma solidão essencial que faz muito bem à poesia.

Com as belas imagens criadas (Um rio, quando abraça outro, multiplica-se nas águas; Cultivaremos juntos os envelopes de silêncio; a espuma de nossos entendimentos; um tempo que te contempla; rápido aproxima-se o navio da Noite; Dia em que se pisa descalço sobre a beleza) e as palavras que recorrem o seu repertório poético (rosto, navio, mar, silêncio, tempo, ar, fogo, barro, sal, peixe, escamas, frutas, azulejos, pele, corpo, febre, pedra) pode-se percorrer espaços e vivências iluminados por uma dimensão metafísica que só a mirada poética possibilita.

Sabemos, iniciados ou não na poesia, que a imagem poética nos revela muito mais da “realidade”, que a poesia possui um poder sensível de revelação ontológica. A poesia, na mão de um grande poeta, é uma forma de visão que nos ensina a melhor ver ou ‘guardar’ a essência do mundo.

O livro de Paixão é estruturado de forma ternária. Dois grupos de poemas (“Relva na Pele”, “Porcelana Invisível”) que se complementam e, ao mesmo tempo, geram um movimento que ligeiramente modificado deságua em uma fatura mais modernista, mais sintética: “Brevidades”.

“Porcelana Invisível” é a parte central do livro que se subdivide em outros dois grupos de poemas (“Por Dentro” e “Por Fora”). Porém, o poema de mesmo nome, e que também titula o livro, se antecipa à primeira parte (“Relva na Pele”), como um motivo-metáfora que permeará todo o livro.

Se a poesia é a ‘invisível porcelana’, aquela que pode ser encontrada na pedra, em todas as coisas, sem autoria e até sem versos, é ela que nos faz perceber (por dentro) que palavras não bastam / o olho não sabe dizer: / melhor ficar mudo, e (por fora) que não sabemos nada / nunca saberemos / a intimidade da luz / vencida. Sombra.

Ao fim e ao cabo, as considerações do poeta anseiam por uma poesia sociedade anônima, onde o capital poético não esteja atribuído a alguém ou algo específico, ou a poucos escolhidos, mas que os poemas estejam livres nas casas / entre os homens: / utensílio doméstico. E que a fatura poética não viole a própria poesia se tornando mais uma mercadoria no supermercado dos tempos.
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Trecho:

Poema como lição

Aos vinte anos o jovem poeta acreditava
ter encontrado a imagem perfeita
quando escreveu entusiasmado:

“A seta de um pássaro
não tem extremos
só repousos”.

Passado o tempo aqueles versos
mais se parecem a um triângulo
de pontas severas.
Algo do barro lhes falta.

Em verdade a seta dos pássaros
curva-se ao apelo
das flores e das aves.

 

 

 

Porcelana Invisível
Fernando Paixão
Cosac Naify
128 pp.
2015

 

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Fernando Augusto Magalhães Paixão (Beselga, Portugal 1955) é poeta, editor e ensaísta. Muda-se com a família para o Brasil em 1961. Publica seu livro de estreia, Rosa dos Tempos, em 1980 – renegado posteriormente pelo autor. Considera seu primeiro livro Fogo dos Rios, de 1989, seguido depois de 25 Azulejos, de 1994; Poeira, de 2001; A Parte da Tarde, de 2005; e de Palavra e rosto, de 2010. Por conta de sua origem, teve forte influência de autores como Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro, tendo realizado sobre este último uma dissertação de mestrado, na Universidade Estadual de Campinas – Unicamp, em 1990, publicada em Narciso em Sacrifício, de 2003. Publicou dois livros de poemas para crianças. Em 2004, defendeu doutorado sobre o gênero do poema em prosa, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, no ano seguinte, foi visiting writer [escritor visitante] da Universidade de Berkeley, Estados Unidos. Exerceu a função de editor, tendo trabalhado por mais de três décadas na Editora Ática, da qual se desligou em 2007, na condição de diretor editorial. Em 2009, ingressou na carreira acadêmica como professor de literatura no Instituto de Estudos Brasileiros da USP. Em 2010, lançou Arte da pequena reflexão, em que discute os limites e possibilidades do poema em prosa contemporâneo. Tem poemas traduzidos para o catalão, inglês, espanhol e francês.

 

 

 

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[Resenha publicada na edição de junho do Jornal Rascunho]

 

 

 

 

 

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Edson Cruz é escritor e editor do portal MUSA RARA (www.musarara.com.br). Graduado em Letras pela USP, publicou três livros de poesia, uma adaptação em prosa do clássico indianoMahâbhârata e um livro de depoimentos sobre o que seria a Poesia. Seu poemário mais recente, Ilhéu (Editora Patuá), foi semifinalista do Prêmio Portugal Telecom 2014.

 




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