Da leitura


         Neste tempo de cultura marginalizada, de leitura até demonizada, nada como ler sobre a leitura. E acabo exatamente de ler um belíssimo livro sobre o tema – O leitor como metáfora, de Alberto Manguel, publicado pelas Edições Sesc. O qual indico a todos que não prefiram se render à precariedade das tecnologias modernas, onde naufraga a profundidade da reflexão e a riqueza da língua. Questionando as novas tecnologias, diz Manguel, logo no início, que é melhor a nossa concentração “naquilo que define radicalmente o ato de ler, no vocabulário que usamos para tentar entender, como seres autoconscientes, essa habilidade única nascida da necessidade de sobreviver por meio da imaginação e da esperança.”

            Imaginação e esperança… A invenção da escrita foi algo que mudou inteiramente a história humana, criou mesmo outra humanidade. O mensageiro anterior tinha que decorar a sua fala, a sua mensagem, suplicando aos deuses que zelassem pela correção de sua memória – e então, a partir de determinado momento, precisava-se apenas levar um pedaço de barro com algumas marcas. Era uma coisa mágica – e desde então a magia sempre esteve ligada ao livro. Obra dos deuses e – claro – também dos demônios, a depender das mentalidades. Muita gente se salvou pelos livros, como muitos por ele perderam a própria vida.

            Trata-se, assim, de uma história tão luminosa quanto sombria. Durante todos os séculos da escrita, até os nossos dias, inúmeras foram as vidas sacrificadas por causa da leitura. Os fanáticos religiosos só querem mesmo a leitura dos seus livros sagrados – e os ditadores, religiosos ou não, sempre acusaram a leitura de ser fonte de corrupção. O motivo, claro: porque a leitura esclarece, orienta, enriquece a nossa imaginação e, evidentemente, fortalece a esperança. O que incomoda outros, sim, mas temos que ir sempre adiante.

            Acusaram a leitura de ser algo passivo, que afasta o homem das aventuras pelo mundo, pela vida. Bem, quem lê sabe que é o contrário: a leitura nos leva à vida, nos faz viajar pelo tempo e pelo espaço. Uma pessoa que lê tem horizontes muito mais vastos. Por isso parece estranha: por que não se conforma à vidinha comum de todos, ou quase todos? Por que não pensa como pensa a maioria? Por que quer ser diferente – ou pior: por que é diferente? Ah, sim, eis aí um tipo bem suspeito… Não, o leitor não é mesmo um ser passivo – porque a leitura lhe dá melhores motivos e condições para agir. Em dado momento Manguel cita Deus falando ao profeta Habacuque (ou Habacuc): “Escreve o que vês, e grava-o sobre tabuinhas, para que possa agir aquele que o ler.” Sim, para que saiba como agir aquele que é um leitor. Lendo, ele saberá o que fazer. Como agir. Repito: lendo.

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Ruy Espinheira Filho (Salvador, BA, 1942). Poeta, romancista, professor, cronista e jornalista. Desde 1994, trabalhou como professor do Departamento de Letras Vernáculas da UFBA, onde conclui o doutorado em letras e linguística e, depois, se aposentou. Recebe o título de doutor honoris causa, concedido pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – Uesb, em 1999. No ano 2000, torna-se membro da Academia de Letras da Bahia. Possui textos publicados em antologias estrangeiras editadas em Portugal, Estados Unidos, França e Itália. E-mail: refpoeta@terra.com.br




Comentários (1 comentário)

  1. Ruy Espinheira Filho, Assim vou acabar ficando famoso, Edson… Muito obrigado e um abraço grande, Ruy.
    13 setembro, 2019 as 14:21

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