Corpos sem pressa


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A vida moderna é a existência da brevidade. Nossos cotidianos são fragmentados em tantos pedaços e em diversos momentos que muitas vezes deixamos de ser completos: somos partes que se multiplicam. Lembro de certa vez ler que o conto acompanhava a história da humanidade, (como toda a arte, de fato a literária também reflete o pensamento dos homens do seu tempo), era breve, conciso, pungente, por que o individuo não queria muito tempo de leitura como lá, os românticos, atentos aos estados da alma e reclusos em suas leituras longas e repletas de detalhes faziam.

O conto então se tornou sinônimo de brevidade, de um tempo intenso de leitura em que o leitor imerso na ficção detinha-se em histórias que podiam contar em poucas páginas a vida de uma personagem ou o seu dia no escritório: recortes, focos, momentos precisos que eram retratados ao longo de parágrafos. De Edgar Alan Poe a Ernest Hemingway o conto se consolidou, foi estudado, a ele atribuídas características particulares e intransferíveis. Estudou-se como se constrói a personagem, o subtexto, os motivos, a extensão e todas as possibilidades que dele surgem.

Uma das possibilidades é o desdobramento do conto, também perspectivas de construção de efeito e de leitura. Dessas experiências, emerge o miniconto, o microconto ou ainda o nanoconto. Exíguos, limpos, sem excessos e repletos de novidades narrativas, de intensidades que são necessárias à construção de um texto tão breve. Longe do exotismo de novidades literárias, o miniconto está consolidado, é um gênero estudado e escolha de diversos escritores contemporâneos.

Contos sem pressa, de Leonardo Brasiliense, é exemplo por excelência do quanto a literatura breve é exigente em qualidade. O livro de contos publicado pela editora Casa Verde em 2014 apresenta sessenta e sete pequenas narrativas. São histórias compostas de diversas maneiras: seus narradores, pontos de vista, focos narrativos, personagens, tempo e ambientação não se repetem, mas chamam o leitor a perceber o processo de criação do autor, seu modo de perceber o mundo.

Assim, em minutos de leitura, passamos por narrativas que tratam de cotidiano, das fissuras cordiais do amor, do cansaço das relações amorosas, das amizades, do dias, das noites, da vida e da morte, do ilógico e ao mesmo tempo matemático conteúdo da existência. Dos fios que compõem cada ligação entre os indivíduos, até fatos midiáticos e históricos, tudo é matéria na escrita do autor. Leonardo Brasiliense tornou-se mestre na arte de escrever minicontos. Explico: é necessário saber exatamente o que se diz e a melhor maneira de fazê-lo. O autor que se dedica ao miniconto trabalha com apuro a palavra, a frase, seus incontáveis sentidos e propriedades, para ter um efeito que conquiste o leitor, que o faça permanecer “saboreando” a história, ainda que breve, ainda que enxuta.

Roland Barthes fala, em seu livro Incidentes, que as narrativas breves são como fotografias, nos colocam no momento das ações, quase vivendo junto com as personagens que existem nas histórias. É como se o momento fosse capturado por uma objetiva, e num trabalho de retoque, de adaptação, o autor nos deixa a imagem ainda mais nítida, mais interessante.

Podemos nos aproximar do primeiro amor de um menino como em “Batismo”; rir com os axiomas amorosos em “Se não entendeu pergunte outra vez”; emocionar-se com a mãe analfabeta que assim não soube da morte do filho nem do neto em “Terceira geração”. São imagens e histórias que nos são contadas e que perpassam nossos cotidianos. A literatura nutre-se da vida, tenta representá-la da melhor maneira possível, e cada conto da obra de Leonardo faz isso, mexe com a vida que vemos e com a vida em nós mesmos.

Os textos que compõem  Contos sem pressa contrariam o nome da obra, são textos pequenos, mas não queremos que acabem, nos envolvem com o mistério que existe no inusitado potencial narrativo do miniconto. É um conjunto histórias que em definitivo comprova a qualidade a que o texto breve está disposto a cumprir e que cumpre de maneira significativa.

 

 

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Corpos sem pressa. Casa Verde, 86p, 2014.
ISBN: 978-85-99063-25-5 (papel)
………978-85-99063-26-2 (e-book / e-pub)
………(casaverde@casaverde.art.br)

 

 

 

 

 

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Gabriela Silva nasceu em São Paulo e mora em Porto Alegre.  É doutora em Teoria da Literatura pela PUCRS, organizadora da Feira Além da Feira e autora de Ainda é céu (poemas, Patuá, 2015).

 




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