Contos de Alcova



LOUCURA CELESTIAL

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Quarenta e treze. Essa conta não fecha. É mais do que absurda, é monstruosa. No entanto ela pedia, suplicava… implorava para ir além. Não é possível, é um sonho… Em verdade, era um pesadelo sem sono e sem vigília. Contrito por antecipação, ameaçava arremessar para o fundo do oceano, com a violência de toda a energia que era capaz de reunir, o disco de chumbo daquela cena divinamente diabólica. Mas não havia discos, apenas sanguessugas viscosas cujas ventosas aderiam ao corpo com a mesma força de sucção dos seus lábios sequiosos que ela aplicava desde o alto da fronte ao calcanhar de Aquiles da sua fraqueza de macho. Para ela um brinquedo. O resultado, porém, era aquele encontro onírico e absurdamente assimétrico entre a inocência e a concupiscência.

– Olha! Tá saindo de dentro dele uma clarinha de ovo cru. Em mim também tá, só que é muito mais… vamos ver quem ganha?

Não suportava mais. Precisava acordar daquele sonho híbrido de prazer e de loucura. Ou morreria de frenesi… Acontecências em derredor desmentiam: não te ilude, é tudo real. Beira-mar de meio-dia de domingo. O sol envergonhado indo embora. Manadas de nuvens cor de chumbo nascendo no nascente crescendo e se espraiando no horizonte imitavam vertiginosas preamares e traziam no dorso uma noite artificial carregada de negrume e cumplicidade.

– Ai…

– Dói?

– Não!

– Então por que disse Ai?

Usava a calcinha do biquíni, mas nada cobria os seios. Nem havia seios. Em seu lugar, brotavam duas minúsculas saliências firmes, lisas e convexas como as campânulas das inflorescências de tenras magnólias, de cujos ápices ameaçavam saltar dois mamilos túmidos de inculposa luxúria. Num rosto de criança um semblante de mulher. Há sonhos onde o sonhador tem consci ência de estar sonhando e não consegue interromper… Urgia despertar, ou enlouqueceria de vez. De novo, a realidade se impunha. Quem dorme não sente. E ele sentia a areia fina, cuja natureza parecia mais humana que mineral, a deslizar-lhe sob o dorso a cada vaivém das pequenas vagas, acariciando-lhe a pele, provocando cócegas e suaves formigamentos numa intermitência de sensualidade infinita.

– Quero ver que gosto tem!

– Quê?

– A clarinha de ovo cru – quero provar.

– Você enlouqueceu…

– Nossa! É salgadinho! Tem cheiro de camembert… e é tão macia… a cabecinha…

Daí em diante era impossível saber se era sonho ou verdade. Havia perdido o senso da realidade e passou a perceber somente o que não existia: murmúrios de cascatas, chilrear de passarinhos; olores exóticos das flores do Oriente, dos sândalos de Calcutá e dos incensos da antiguidade; superfícies e mucosas umedecidas acetinadas sedosas aveludadas. Então, brotou-lhe bruscamente das entranhas o néctar ainda morno do fruto proibido que ela, sôfrega, sorvia com prazer…
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(Capítulo do livro “Contos de Alcova”)

 

 

 

 

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Raymundo Silveira é médico e escritor. É membro da SOBRAMES (Sociedade Brasileira de Médicos Escritores). Em 2010 ganhou o Prêmio Literário Para Autores Cearenses, com o livro de contos e crônicas: “Louca Uma Ova”. Em 2011 recebeu o Prêmio Nacional de Conto e Poesia “Correio das Artes 60 Anos”, promovido pelo governo da Paraíba, com o livro de contos “Lagartas-de-Vidro”. Foi um dos vencedores da Bolsa Funarte de Criação Literária – 2010, com o livro “Medicina Crônica”. E-mail: raysilveira@uol.com.br




Comentários (1 comentário)

  1. Raymundo Silveira, “Escrever imoral, é escrever mal”! (José Alcides Pinto)
    16 abril, 2012 as 13:02

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