Como ser ninguém na cidade grande


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F
oi o último a desembarcar do ônibus. Fatigado, frágil como um esqueleto de vidro trincado. Em sua idade, qualquer viagem era um desconforto. Rebocando a mala com rodinhas, cruzou lentamente o terminal rodoviário. Desabou num táxi, mandou tocar para o mesmo hotel de sua última vez em São Paulo, doze anos atrás.
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No rádio, um pastor explicava como era fácil para o fiel depositar seu dízimo na conta corrente da igreja, enquanto o passageiro se dava conta da multiplicação das manadas de automóveis, motocicletas, ônibus, caminhões.

O cinza do céu se esfumava no fim da tarde. Painéis eletrônicos eufemizavam: QUALIDADE DO AR: REGULAR. E multidões no compasso da metrópole, em marcha acelerada nas calçadas. No entanto, o velocímetro do táxi mantinha-se abaixo de quarenta por hora, o motorista embalado pelo gospel do rádio, entregue sua cruz na mão de Jesus, o amor de Jesus vai curar sua dor. Atazanado pelo coro ululante, martelado por guitarras, buzinas, motores, sirenes, odores, o velho sentiu a dor de cabeça como um prego no crânio.

No hotel, deitou-se pouco depois das dez da noite. Tentou não pensar na operação do dia seguinte. Mas a ideia de que um fantástico canhão de raios indolores desintegraria os cálculos em seus rins o manteve acordado.

Então, uma britadeira começou a fraturar asfalto ou cimento nas proximidades do hotel. Chapas de metal foram atiradas ao chão com fragor. Em contraponto, uma serra elétrica somou-se ao concerto diabólico. Um compressor trepidava sem pausa, basso profondo, obturando mínimos interstícios de silêncio.

Agoniado, vedou os ouvidos com chumaços de algodão. Inútil. O pandemônio continuou até as três e meia da manhã, enquanto ele amaldiçoava o antropóide administrativo que lhe infligia aquele suplício, brutalizando o sono dos cidadãos contribuintes.

Pela manhã, atordoado e em jejum, apresentou-se no hospital. Teve que vestir uma camisola curta, que expunha suas pernas secas e peladas de ancião, encordoadas de veias grossas. Foi perscrutado por máquinas de última geração, como enfatizou o médico, e alojado num quarto onde havia outro paciente. Operado sabe-se lá de quê, esse homem, tão velho quanto ele mesmo, gemia sem descanso, “puta que pariu, Deus, como dói, caralho”.

Apesar do mau presságio, o ultrassom realizou seu ato de magia tecnológica. Um bombardeio cruzado de energia ondulatória volatilizou os cristais em seus rins.

O senhor está novo em folha, disse convencionalmente o médico.

Clichê de filme B, doutor, o velho disparou.

No dia seguinte, sentiu-se bem o bastante para tratar de outro assunto. Carregando um grande envelope pardo, desceu do táxi diante do edifício refulgente que abrigava a nova sede da HB Editorial. Um cubo de vidro de vinte andares, espelhando prédios distorcidos da outra margem do rio. O rio morto, gelatinoso, mingau negro estagnado entre duas avenidas. Viu uma estrutura em construção lá no fim da avenida, rente ao rio. Aparentemente, uma ponte monumental, cinematográfica, coisa de cartão-postal. Dava para perceber que aquele trambolhaço, quando erigido, estaria inteiramente fora da escala do entorno. Um brontossauro entre capivaras. O fedor do rio podre flutuava na avenida. Colocou os óculos escuros e avançou para o cubo de vidro.

No balcão da portaria, uma placa de metal polido o deteve: IDENTIFIQUE-SE: APRESENTE DOCUMENTO. Lembrando que as placas inglesas sempre pediam “por favor”, submeteu-se aos procedimentos de uma das recepcionistas. Fotografado por uma lente-botão no topo de um fino caule metálico, viu seu rosto, baixo-relevo, granulado na tela do computador.

A secretária da HB recebeu com estranheza aquela figura anacrônica. Destoava do design futurista da recepção. Um velhote de crespos cabelos brancos, a cabeça parecendo grande demais para o tronco franzino, o jaquetão que já devia ser peça de museu, a gravata-borboleta que, pelo aspecto, vinha passando de pai para filho há gerações.

O senhor deseja?, inquiriu em tom isento de amabilidade.

O velho repetiu sua fala, era “autor da casa”, sorriu com dentes de porcelana, em visita de cortesia, frisou a palavra, vinha apresentar um livro novo, ergueu o envelope.

O senhor devia ter marcado antes com o doutor Brazão. Não sei se ele poderá lhe atender, está muito ocupado com os preparativos para a Bienal do Livro. Queira me acompanhar.

Marchando à frente, conduziu o visitante ao interior da colmeia de vidro, indicou-lhe um sofá de couro negro e seguiu rumo à porta decorada com o logotipo da HB Editorial, no fundo do corredor.

O escritor sentou-se, passeou os olhos pela galeria de fotos emolduradas nas paredes: autores nacionais e estrangeiros, notáveis do catálogo da HB. Numa foto autografada, o canadense Thom Dykins exibia a edição brasileira de seu best-seller Chuva de fogo em Bagdá. Em outra, o editor HB posava ao lado de um rapaz branquelo, de rosto ossudo, com jaqueta de jeans e camiseta com os dizeres RAMONES Gabba Gabba Hey. Quem era mesmo aquele moço?

A secretária retornou com um arremedo de sorriso. Heraldo Brazão, editor, já o esperava à porta da sala, efusivo conforme o protocolo.

Salve, João Vitorino Cruz! O Faulkner do Brasil Central! Então, resolveu sair da toca? Você está ótimo, igualzinho da última vez, quando foi mesmo? Doze anos? Já? Sente aí.

João Vitorino reparou no novo look do editor — cabeça raspada, queixo duplo, um discreto brinco de brilhante no lóbulo da orelha esquerda. Mais pós-moderno do que doze anos antes. Por trás dele, além da parede de vidro, o horizonte denteado de edifícios cintilantes, aço e vidro refletindo nuvens.

Grande João Vitorino. Parece que você nos mandou alguns originais nos últimos anos, não foi? É lamentável, meu caro, mas este país não lê, não valoriza o autor nacional. O que você trouxe aí? Morto sem chão? Qual é o assunto? Hum. Interessante. É compreensível, você lida com a realidade que conhece. O tema é sempre o grande problema de um livro, meu caro. That’s the trouble. Atualmente, ninguém quer ouvir falar desse tipo de regionalismo tardio: massacre de sem-terra, tribo dizimada, grilagem de terras, assassinato de missionário, matador de aluguel etc. O Brasil urbano está de costas pra esse Brasil do fundão. É pena, mas that’s it. A missão de um editor hoje é uma verdadeira cruzada. It’s really hard, my dear. Temos que definir um produto que vá ao encontro do gosto, interesses e expectativas desse leitor moderno, sem tempo para uma literatura mais exigente. É muito difícil, o mercado do livro é muito competitivo. Hoje, o livro tem que ter um apelo forte, uma trama intrigante, um desfecho impactante.

Você tem acompanhado a nova geração de escritores ingleses? Veja esse rapaz, o Jake Lovejoy, que vamos lançar agora na Bienal do Livro. O romance dele, StarTrip, é a  história estúpida de um motorista de caminhão que resolve reunir novamente os membros de sua antiga banda de rock e, depois de várias peripécias, conseguem gravar um disco que acaba fazendo sucesso, tudo de modo acidental, porque ele se envolve com uma aristocrata, o caso vira assunto dos tablóides sensacionalistas, e aí, a cada reviravolta, o protagonista vai se dando bem: vira o instant darling da mídia e do povo, apesar de ser um pateta, de fazer tudo errado.

É um livro divertidíssimo, very british, com o típico humor inglês. Vai ser filmado. Esse autor, de trinta e poucos anos, tem punch, sabe armar um plot que realmente agarra o leitor. Já vendeu novecentos mil exemplares na Inglaterra. Vamos lançar aqui antes dos americanos.
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A parede de vidro vibrou agudamente ao som de um helicóptero. João Vitorino viu o engenho vermelho rumando para um edifício coroado com a marca de uma corporação global. Um raio amarelo logotipava a porta do aparelho. Teve a impressão de ver encenada uma ilustração de algum livro antigo sobre “o mundo de amanhã”. Visão déjà vu. O futuro havia chegado, mas não tinha lugar para ele. Nem para todos.

Well, deixe o seu livro com a gente, João, vamos ler com carinho. Daremos uma notícia em breve, fique sossegado. Então, quando é que volta pra Mato Grosso? Cedo assim? Pena. Você podia ficar pra Bienal do Livro, o Thom Dykins vem aí, o Jake Lovejoy também. É um puta cara bacana, muito divertido, very nice guy. Olha, leva este livro aqui: Como ser ninguém na cidade grande. É daquele humorista americano, Mel Feldman, daquela sitcom Suburbia, da tevê paga, você já viu? Um falso livro de auto-ajuda, não é genial? Leva também este outro, A mulher dentro de mim: é uma espécie de diário do escritor transexual Fiona Fox-Jones, que já foi prostituto.

Pois é, meu caro. Grande prazer rever você. Você tá ótimo. Tá com que idade? Setenta e sete? Maravilha. Queria eu chegar a essa idade em grande forma como você. Mas essa vida que a gente leva, essa pressão. Feliz é você que vive longe dessa loucura brava. Boa viagem, João. Dê notícias. Me mande alguma coisa ano que vem. Pode ser que o cenário mude, who knows?

 

 

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[Conto do livro  Alguém para amar no fim de semana, Annablume, 2010]

 

 

 

 

 

 

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Luiz Roberto Guedes é poeta, escritor, publicitário e compositor. Publicou, entre outros, O mamaluco voador (2006), e Alguém para amar no fim de semana (2010). E-mail: l.r.guedes@uol.com.br




Comentários (1 comentário)

  1. Nanete Neves, Muito bom! Adoro a ironia do Guedes.
    23 maio, 2016 as 14:22

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