Coisalguma


 

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dia branco

dia branco. hoje é um. lúgubre e grave e grávido de possibilidades. pluvialvo. em dias assim o céu se torna uma tela em. branco. contra a cor imposta. contra a supremacia cerúlea. contra a complacência do índigo. branco. contra a imperativa consonância robertocárlica. branco. pausa e entendimento. a cor do descanso. a derradeira cor do objetivo. quando não há mais para onde ir. vá para a luz! vá para a luz! vá para a luz! e a luz é branca. e a folha de papel. e a tela. e a amnésia quando despe seu uniforme. e aqueles furos no lençol negro que o sol estende quando dorme.

 

 

o fio

assim. quando no breu. amarrar o nome nas cordas vocais. para não olvidar o caminho. embrasear o sangue ardendo as veias. acender a pele. essa que vela. constantemente. quando no breu. perder como se perde algo em um bolso. para encontrar após. perder como se perde um farelo no umbigo. um brinco no fundo de um sofá. um corpo na montanha. lembrar de esquecer. assim. quando no breu. lembrar da filha de minos.

 

 

descolo-me

tento separar com as pontas dos dedos a gravura colada sobre uma superfície específica. a gravura não se descola facilmente. resiste onde a cola existe. gravura e superfície são uma coisa só. agora e onde não há cola: uma possibilidade. o papel se rasga na medida em que é puxado. ressurge aos poucos o que dormia debaixo da gravura. entre fragmentos. o resultado nunca é o esperado. duas imagens sobrepostas apresentam-se como uma terceira. camadas amalgamadas. é assim quando desperto e busco extrair o sonho:

apeledosonhoseagarraàcarnedoreal. apeledorealseagarraàcarnedosonho.

não acordo. descolo-me.

 

 

bege

hoje não há sol. o que há é uma sombra arenosa. a loira luz do chá nas coisas do mundo. é como se uma espécie de ouro melancólico transbordasse. sente-se a penetrabilidade. sente-se cada um dos poros. maculados pelo sumo sujo de um sol que sofre. nesse filtro chamado pele. empalidece-se por dentro. o sangue singra insone. tudo se mescla. lá chove a bílis. aqui a chuva chora. todas as cores vão. em vão. embora.

 

 

coisalguma

nus na cálidaurora. ele senta sobre a cama e ela busca a melhor posição: de costas sobre suas pernas. compele os quadris em sua direção. a febre embrenha uma língua úmida entre os vincos. os vãos mais velados dela engolem seus dedos que ainda são cinco. mesclam-se no que mela. sua cauda roça-lhe o peito que degela. ronrona e sorri. algo chora. ele sente o afinco das garras e bica seus olhos. um chifre sem dono aflora. ela enterra a cabeça entre suas coxas e o suprime. ele inala a crina que o embala. ela zine. seus arrulhos embrulham a fala. a luz do dia irrompe a valva e eles quase coisalguma. mergulham na própria metástase e a pupa se consuma.

 

 

 

 

 

 

 

 

Marcello Sahea é poeta, performer, artista visual e sonoro. Publicou três livros: Carne Viva, Leve e Nada a Dizer, o álbum/cd virtual Pletórax, publicou em coletâneas, catálogos, livros didáticos, rádio, jornais e revistas de literatura e arte no Brasil e Estados Unidos. Realizou exposições de poesia visual e participou de exposições de arte digital, poesia sonora, visual e videopoesia no Brasil, Portugal, Londres e Eslovênia. Como performer, já se apresentou em palcos do Brasil e na Europa. | www.sahea.net

 




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