Coisa-feita: Purificando a palavra


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Lucas é um poeta. Lucas acredita que os poetas abençoam as palavras e que elas lavam as dores do mundo, purificam as dores da alma. Por isso os poemas de Coisa-Feita desejam, caminham, respiram, bebem e brincam de bandido e mocinho com Bento. Lucas escreve para as pessoas, para o mar, o sol e as árvores. Sua realidade é palpável como os nomes de coisas (feitas e desfeitas), as noites, os dias e as promessas que o poeta amarra com fita, laço e versos, escritos em seus papéis de seda.

A linha da página dobra-se diante do rigor que se disfarça no aparente jogo de desleixo e diversão quando Lucas escreve seus sonetos pós-pop, como quem anda de bicicleta na contramão de uma cidade plena de invenções e de contradições. Como um bruxo-poeta vai construindo um mundo de encomendações entre amores e rimas, onde Deus entra e sai pela porta de seus poemas, e ele, poeta, abre portas encantadas, faz chover e ama a musa como um menino diante do altar-mor de sua cidade-poesia e de seu ritual-poema: lanceiro do retrato, herói mulato/ ferradura na porta, chão vermelho/ bato palma na entrada e me ajoelho/ galinha e vela azul firma o contrato.

Os rituais, sendo o nosso modo de conhecimento ancestral, evocam o tempo mítico quando espaço e tempo moldavam-se, o corpo e a alma dançavam juntos, homens e deuses, folhas e rios, o sol e o beija-flor, o céu e a terra eram feitos de uma só matéria. A letra wang, que na China designa o rei, é formada por três traços horizontais paralelos, o Céu, o Homem e a Terra, ligados ao meio por um traço vertical. Como na tradição antiga, ao centro dos poemas de Lucas figura a essência humana e seu Reino de sentimentos, matéria e divindades, um centro gravitacional que nos recorda que o tempo é finito e a vida é infinita.

Nesse centro está sempre sua poesia como um personagem-rei que é o próprio poeta e sua memória mítica e ancestral, ou simplesmente a lembrança cotidiana para advertir que estamos aqui no mundo para viver pura e simplesmente essa vida: meu pai tinha dezenas de cadernos/mapas de um atlas da experiência humana/ saúde caos paixão lar tédio inferno. Viver, apesar do inferno, do monstro, das bruxas e do tédio, porque para além há a salvação, há o tempo dos heróis, das princesas, do Zé Ruela, do Caboclo ou da moça bonita: estou aqui pra ouvir atentamente/ invente sua farsa cá pra nós/ conte uma fábula, estou a sós/ fica à vontade, senta, fala, mente. E a poesia toca a zabumba, toca o ganzá, zomba, gira, se veste pra festa e brinda com lírio, a taça de Oxum, fala da vida e da morte.

Que o tempo então cumpra seu ritual de Rei, ritual de Pai, atento e observador, que o poeta, sábio, sonha para si: quando eu for velho e ficar lá sentado/na cadeira da gente sem memória/quero lembrar de alguma boa história/que me faça sorrir, sábio, calado. No outro extremo, há a infância, tema recorrente em Coisa-Feita – o poeta funde seu tempo de homem a um tempo criança, automitificação que Lucas rememora e rumina ao longo do livro. No poema “De ninar” desenrola sua cantiga através da voz-menina que vem com o vento, sopra o poema como uma canção antiga, a vida como fruta, folha de relva e benção: nasci menina assim, vim lá da mina/pedrinha miudinha preciosa/ pele veludo, pluma cor-de-rosa/pérola de um mistério na retina.

O leitor de Coisa-Feita, em sua jornada, recolherá anéis mágicos, cartas de tarô, búzios, receitas, ervas, histórias, mezinhas e rezas, quebrantos e uma infinitude de pequenos sentimentos que falam da vida como viagem (talvez recorra aqui à infinita graça das viagens haroldianas), ou do leitor viajante da vida que reúne as quinquilharias que encontra pelo caminho e segue abrindo portas e mais portas em seu eterno e curioso desejo. Afinal o segredo, quem sabe seja apenas a viagem em si, o riso e o choro do teatro do improviso como no poema “Catatau esperando Godot”: nada a fazer, ninguém nunca. Nonada/ergo sum, cá perdido, aqui presente/e se a gente, sei lá, se arrependesse?/Didi, não me faz rir. Não dá. Dá ou desce!

Uma música, um céu, uma amante descabelada, um passarinho tupi-nagô, um coração de príncipe ou de palhaço, um rapaz que espera, flor na mão, o dia em que a poesia será, e nenhum mistério aqui, posto que tudo é isso mesmo: a minha poesia é do banal/imperfeição demão de cal/que deixa aproximar/tijolos de uma ponte sobre o mar. Lucas escreve e “abraça Gaia, aplaude a flora, segue viagem e desembarca no suspiro da calma”. Evoé!
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SELETA DE POEMAS:

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abre as pernas, que o mundo quer sair
rodar peão na praça com Rudá
riscar na rua giz de colorir
furar dedo no bolo de fubá

faz força, minha filha, ele quer vir
aperta bem a folha de taiá
pus cebola cortada no seu chá
depois tem banho com bacupari

7 dedo… a bardana desinflama
chora, pode chorar, é bom sinal
mais de mil já nasceu da minha mão

10 dedo, vai coroar, chama ele, chama…
sai liso que nem peixe na minha mão
vem plantar a placenta no quintal

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Contratempo

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as pedras de xadrez no tabuleiro
dispostas pra disputa lado a lado
aguardam a invasão de seu reinado
se coçando, bunda no formigueiro

o baio sob a Torre sente o cheiro
da nobre covardia no telhado
o Rei faz roque, o Bispo é enforcado
e o Peão come a Rainha no banheiro

a esquiva autoridade em apuros
na Torre do castelo pede arrego
chacoalhando a cueca com três furos

na espada do inimigo o fio tá cego
é xeque-mate dentro desses muros
e a dama ganha fama e um novo emprego

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Catatau esperando Godot

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nada a fazer, ninguém nunca. Nonada
ergo sum, cá perdido, aqui presente
e se a gente, sei lá, se arrependesse?
Didi, não me faz rir. Não dá. Dá ou desce!

Gogô, lembra da Bíblia Sagrada?
em Provérbios se diz, 14:13
– tire as botas, de joelho, agora reze:
“até no riso dói o peito da gente”

e agora, o que fazer? Occam! Godot!
algum plano? Algum método? Oh, my God…
onde estamos? Estamos num platô

na boca de esperar, coço o bigode
Articzewski, é você? Cadê? Alô…
vamos embora? A gente não pode

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Soneto-dô

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o sapo do haicai vai ao soneto
ali se faz de mudo e não coaxa
rendido em redondilha na tarraxa
de versos decassílabos no espeto

conta nos dedos seu gesto discreto
a métrica da rima não encaixa
pro verso não ruir muda o trajeto
e a redondilha some na borracha

o sapo busca os cânones do oriente
– mistério, intuição ou transcendência
mas nada ajuda o sapo sem paciência

do lago salta ao tanque e essa cadência
lhe rende um chá-chá-chá cordel repente
e o sapo fica lá molhando a gente

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tem cheiro nessa flor de laranjeira
que se cultiva com tanto carinho
quanto mais tempo tem, melhor o vinho
é pelo tato a visão da cegueira

mais fácil é pedir pronto ali na feira
pega firme e desvia dos espinhos
que eu tô fazendo cara de mocinho
olho fechado evita arder poeira

é maior a distância ou o encanto
que se percorre pra chegar aqui?
pra ser feliz só basta estar ali

já pensou que o motivo do espanto
é que meu santo gosta do teu banto?
vem na fé, e traz bala pro Ibeji

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meio que abandonamos o cortiço
e deixamos pra lá a louça na pia
a fruteira faz tempo tá vazia
a gente anda mesmo ruim de serviço

nem um nem outro não ninguém omisso
o forro aqui não é de alvenaria
e atrai os ratos da periferia
eu já não tenho idade mais pra isso

por isso tô saindo de repente
conforme o combinado entre a gente
a feira baixa os preços mais pra frente

na mesa da cozinha comprei flor
agradecendo a estadia, o favor
vê se bota na fachada uma cor

 

 

 

 

Jussara Salazar é poeta. Nasceu no agreste de Pernambuco. Publicou os livros: Inscritos da casa de Alice (1999) Baobá, poemas de Leticia Volpi, (2002), Natália (2004) e Coraurissonoros (Buenos Aires, 2008). Tem sua poesia publicada em várias revistas: Tsé-Tsé (Argentina), Chain (EUA), Rattapallax (EUA), Suplemento literário de Minas (Brasil), Galerna (EUA/Espanha), Mandorla (México) Babel (Brasil), Sibila (Brasil), Revista Continente, Caderno Mais! (Folha de São Paulo), Poesia Sempre (Biblioteca Nacional), Mar com Soroche (Chile), entre outros. Faz parte das antologias Na virada do século (2002), Passagens- Poesia Contemporânea no Paraná (2002), Invenção Recife (2004) Poetry Wales, (2004, País de Gales), Relicário Latino, Antologia de poesia latina, (2004), Revista Continente, (Imprensa oficial de Pernambuco), Literatura Brasileira Hoje, (Publifolha 2004), Antologia Comentada da Poesia Brasileira do Século XXI (2006) e Geometry of Hope (2008, New York) entre outros. Atualmente edita a revista eletrônica de arte e literatura Lagioconda7: http://www.lagioconda.art.br/ e a coleção Livros da Casa 7, Poesia das Américas. E-mail: jussara_salazar@yahoo.com.br

 

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Lucas Puntel Carrasco nasceu no Natal de 1979 em Rio Claro (SP). Torcedor do Santos F.C, publicou Pindá, a menina do mar (prêmio ProAC em 2007) e o infantojuvenil Ingoma, o menino e o tambor. Tem poemas nos sites Germina Literatura e Sonetário Brasileiro. Editor e pesquisador do songbook PretoBrás, canções e histórias de Itamar Assumpção, colaborou também nas revistas Zum, Almanaque Brasil, Grumos e no portal Cronópios. Seus livros anteriores viraram peças teatrais e Coisa-feita foi finalista do ProAC em 2011. E-mail: lucaspuntelcarrasco@gmail.com




Comentários (1 comentário)

  1. NOVAS NA MUSA, […] Coisa-feita: Purificando a palavra […]
    16 maio, 2012 as 23:46

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