Cinderela


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Casou menina ainda. Naquele buraco em que vivia não tinha muita escolha. Ou casava ou caía na vida.  E Cinderela era moça tímida, sem eira nem beira ou qualquer outra coisa que chamasse a atenção. Então casou. O marido era o velho, dono da venda. Ele gostava delas assim, novinhas, e logo percebeu que aquela prometia. A menina tinha quinze anos e cheirava a leite, mas os olhos argutos do velho viram que a flor ainda ia desabrochar. E não deu outra. Dois ou três anos depois a menina era um viço só. Tímida ela continuava, mas os atributos, sim, os atributos faziam qualquer um perder a cabeça. Não que fosse bonita, não era bem isso. Nada de rosto perfeito, pele de alabastro, grandes olhos negros de graúna, cabelos de azeviche ou coisa parecida. Nada de veleidades de poeta, muito pelo contrário. Na verdade ela era dona de uma bela bunda, redondinha, perfeitinha, do tamanho certo ou talvez um pouquinho maior do que reza o figurino. Bunda com B maiúsculo. E essa Bunda passeando pela cidade era como uma bandeira desfraldada. Cantava alvíssaras. Quase se podia ouvir o rufar dos tambores e os vivas quando ela passava. Quando surgia lá, no começo da rua, a homarada saía para ver. Que gostosura! Os botecos se esvaziavam, a praça ficava em festa, a alegria gargalhava. E lá ia a Bunda abrindo alas, soando as fanfarras pelo caminho abaixo. Cinderela nem desconfiava. Carregava o atributo sem qualquer atenção, ia tímida, de olhos baixos, mas ninguém se apercebia dela. Todos os olhos estavam voltados para a Bunda. Ele ia malemolente, uma balançadinha a cada passo, um vai e vem que lhe acentuava as redonduras e as maciezas. Maciezas adivinhadas, pois só quem conhecia era o marido que a moça ainda não havia descoberto outros prazeres. Quando Cinderela passava o dia na venda, ajudando aqui e ali, o velho faturava dobrado. Não havia homem na vila que não se lembrasse de ir comprar alguma coisinha, um fumo, meio quilo de arroz, qualquer desculpa servia. Era olhar e babar.

A Bunda ficou famosa e o velho se regalava.

Um dia apareceu um homem rico e louro, vinha montado em cavalo branco e quando viu aquilo lhe caiu o queixo e estacou embasbacado. Tiro e queda. O rapaz não conseguia pensar em outra coisa. Caiu em febres, suava frio, tremelicava.  Queria porque queria. Nem via direito Cinderela porque a Bunda estava na frente e lhe enchia os olhos. E quando homem rico quer é igual príncipe. Não tem meio termo. Fez e desfez. Foi até o velho e ofereceu mundos e fundos. Ele era muito rico, tinha uma fábrica de sapatos na cidade vizinha. Coisa fina mesmo. O velho titubeou. A vida já lhe ensinara que bundas vem e vão, além de que aquela começava a amadurecer. E ele já conhecia e coisa conhecida é igual bilhete corrido. Perde a serventia. Depois de muito regateio, acerta daqui e dali, eles concluíram o negócio.

O velho recebeu uma enorme carga de sapatinhos de cristal com os quais esperava fazer muito dinheiro. E Cinderela pegou sua trouxa e montou na garupa do cavalo branco.

E lá se foram pelo mundo o homem rico e a Bunda. Foram felizes para sempre porque nessa vida mais vale uma boa bunda que um milhar de sapatinhos de cristal.

 

 

 

 

 

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Vera do Val, natural de São Paulo, graduada pela USP – Ribeirão Preto. Foi para o Amazonas em 2002, quando começou a escrever. Com doze livros publicados, entre infanto – juvenis e adultos, recebeu, em 2008, o Prêmio Jabuti – Categoria Contos, com “Histórias do rio Negro”. Sua obra literária é calcada na Amazônia, seus rios e florestas. E-mail: veragrobe@hotmail.com

 




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