Cidadães do mundo transfigurado


 

Acaba de ser publicado pela Editora Patuá A Face de Muitos Rostos, sexto livro de poemas do escritor e tradutor Ricardo Primo Portugal, ganhador (2º lugar), juntamente com Tan Xiao, do 56º Prêmio Jabuti em tradução, por “Antologia da Poesia Clássica Chinesa – Dinastia Tang”, e finalista do 54º com “Poesia Completa de Yu Xuanji”, ambos da editora UNESP. O livro conta com um poema-prefácio generoso do mestre Francisco Alvim e um posfácio iluminado de Ronald Augusto. É uma reunião de textos profundamente influenciados pela experiência de tradução de poesia chinesa clássica, escritos em mais de 10 anos de vida no exterior, principalmente na China e na Ásia Oriental. Destacam-se, na obra, poemas que trabalham temas como a experiência da migração e a vivência da estrangeiridade. A seguir, uma pequena amostra.

 

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Word 2010

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Outro dia levado lavado passado em hotel
Três semanas sozinho há livros e vinho
Há pensar em você esperar a manhã para ler
sua voz na internet, enternecem-me e-mails

Somente seu texto alcança-me à tela
somente você revela-se à escrita
além da grafia subsiste na neve
revive assinala-se rastro respira

Sua letra se inscreve escarlate se assina
ainda que ao cinza automático, à fonte
que jorra em silêncio, formate-se em word
sua letra é você precisa em meu dia

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Blues do quarto de hotel

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a noite leva minha mala
a mais um quarto de hotel
cada cidade ao caminho
é uma luz ou cem
ou dez milhões de almas
é uma cidade que passa
e fico aqui sozinho
a cada nova partida
comigo recomeço
um mesmo a cada chegada
levando a velha cara
a outro espelho de hotel
deitando minhas costas
à cama de aluguel
confio meus segredos
à parede e este cofre
fazendo minhas contas
neste bloco de hotel
e quase um verso escapa
e cai à última página

 

 

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Da série  A harpista

(II)

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Meus olhos enlaçam tuas mãos
enquanto entoas à harpa
as notas de antigos cânticos
De teus dedos longos rios
lagos replenos de carpas
rebrotam em harpejos vítreos

Ascendem claras nascentes
desde milênios repartem-se
aos ecos de cada tempo

que palpita à partitura
Ainda a música se engasta
na corrente que perdura

dos anseios que se estendem
desde as falas que te guardam
mesmo antes que nasceste

Rente o sonho que persiste
segue ao espelho desta água
como a escrita prende a sílaba

Gerações e dinastias
rios que desembocam ao mar
só por ti existiriam
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Fez-se a cidade

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Fez-se a cidade
a um lago do sul
e as coisas do mundo
a sua orla insistiram
em fazer-se sentido

Fez-se a cidade
para o filho inconspícuo
que estrangeiro viceja
e assíduo deixa-a ao ensejo
de qualquer nova flecha
vadia deste cupido

o sol sobe iça-se
ao cais e seu muro
senso de novo atiça-se
no olhar antigo interrupto

mas para ele a terra
é mar que se percorre
à vista de outras ilhas
é porto que se perde
um ponto no caminho

 

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De    Junto ao túmulo de Bai Juyi, em Luoyang

(I)

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no vale em torno as flores já se abriram
e aqui ao centro eleva-se o canteiro
a grama em desalinho ao pobre leito
é o último lençol de um eremita
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Da série    O emigrante

(I)

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Ao findarem as luzes
da pista do aeroporto
começaria um céu novo
inteiro aberto posposto
intenso à aberta ferida
das nuvens além do crepúsculo
escuro ao rubro retinto

O voo vasto ao oco
depois umidade limpeza
refeita ao ar talvez beleza
rarefeita ao céu cinzento
odor de bosque ao relento
sobre o tecido à camisa
feita frescor às narinas

Depois o corpo reteso
frio revel à intempérie
Aí a seguir claro dia
além do sonho e à vida
a dívida toda a viver
às noites tristes felizes
pois sim tinha que partir

Navigare necesse – vivere
non est necesse – mudo
deixar por fim para trás
sem piedade e nem
dó quebrar isso tudo
que vai por aí e a dor
maior de romper os laços
de golpe cortar as cordas
ao infindável nó górdio

 

 

 

[O livro pode ser encontrado no sítio da editora Patuá: http://www.editorapatua.com.br]

 

 

 

 

 

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Ricardo Primo Portugal, 53 anos, nasceu em Porto Alegre/RS e formou-se em Letras pela UFRGS. Escritor e diplomata, radicado em Brasília, viveu na China (Pequim, Xangai e Cantão), na Coreia do Norte (Pyongyang) e no Equador (Quito). Publicou: Antologia da Poesia Chinesa – Dinastia Tang (Unesp, 2013, com Tan Xiao, Prêmio Jabuti 2014, categoria tradução, 2o lugar); Dois outonos – haicais (Edições Castelinho, coleção Estante Instante, 2012); Zero a sem – haicais (7Letras, 2011); Poesia completa de Yu Xuanji (Unesp, 2011, com Tan Xiao, finalista, 54o Prêmio Jabuti, categoria tradução); DePassagens (Ameop, 2004); As aventuras do Barão do Rio Branco – obra de apresentação da carreira diplomática para crianças (Divulg-MRE/FUNAG, 2002); A Cidade Iluminada – poesia para crianças (Paulinas, 1998); Arte do risco (SMCPA, 1992); Antena Tensa (Coolírica, 1988); Antologia poética de Mário Quintana (EDIPUC/RS – Consulado Brasil, Xangai, 2007), primeiro livro de poeta brasileiro traduzido ao chinês: coorganização, supervisão da tradução. Também tem participações em antologias e em sítios de internet dedicados a poesia e literatura (Musa Rara, Escamandro, Cronopios, Modo de Usar, Tuda, Germina, Zunai, Sibila, entre outros). E-mail: ricardo.pportugal@yahoo.com

 




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