A explosão de contar histórias


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………………….Chuck Palahniuk e a explosão de contar histórias

 

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“Pela primeira vez na história, cinco fatores se alinharam para promover essa explosão de contar histórias. Sem ordem nenhuma, os fatores são:

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Tempo livre.

Tecnologia.

Material.

Educação.

E aversão.

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O primeiro parece bem simples. Mais gente tem mais tempo livre. As pessoas estão se aposentando e vivendo mais. Nosso padrão de vida e segurança social permitem que as pessoas trabalhem menos horas. Além disso, mais gente reconhece o valor de quem sabe contar histórias… mas estritamente como material de livro de de filme… Mais gente considera escrever, ler e pesquisar algo mais que apenas uma recreação elitista. Escrever não é só um pequeno hobby agradável. Está se tornando um empreendimento financeiro de boa-fé, que vale seu tempo e sua energia. Dizer a alguém que você escreve logo suscita a pergunta? “O que você já publicou?” Nossa expectativa é: escrever é igual a dinheiro. Ou escrever bem deveria. Mesmo assim, seria praticamente impossível conseguir expor sua obra, se não fosse o segundo fator.
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Tecnologia. Com um pequeno investimento, você pode ser publicado na internet, acessível a milhões de pessoas no mundo inteiro. Impressoras e pequenas gráficas podem oferecer qualquer quantidade de livros de capa dura, sob encomenda, a qualquer um que tenha dinheiro para pagar a própria publicação. Ou publicar com subsídios. Ou publicar por vaidade. Seja lá como você queira chamar. Qualquer um que saiba  usar uma copiadora e um grampeador pode publicar  um livro. Nunca foi tão fácil. Nunca, na história, tantos livros foram lançados no mercado a cada ano. Todos eles cheios do terceiro fator.
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Material. Com mais gente envelhecendo, com a experiência de uma vida inteira para lembrar, mais eles se preocupam em perder tudo isso. Todas aquelas lembranças. Suas melhores fórmulas, histórias, técnicas para fazer os comensais em uma mesa explodirem em gargalhadas. Seu legado. Suas vidas. Com um simples toque do mal de Alzheimer, tudo isso poderia desaparecer. Além do mais, todas as nossas melhores aventuras parecem estar sempre lá atrás. Então, é gostoso revivê-las, compartilhá-las no papel. Organizar e fazer com que todos aqueles destroços tenham sentido. Embalar com muito capricho e botar um belo laço de fita em cima. O primeiro volume da caixa com três volumes que será sua vida. A fita com os “melhores momentos” da Liga Nacional de Futebol da sua vida. Tudo num lugar só, seus motivos para fazer o que fez. Sua explicação do porquê, caso alguém queira saber. E graças a Deus que existe o fator número quatro.
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Educação. Porque, pelo menos, todos nós sabemos usar um teclado. Sabemos onde pôr as vírgulas… mais ou menos. Bastante bem. Temos revisão ortográfica automática. Não temos medo de sentar e experimentar esse negócio de escrever um livro. Stephen King faz tudo parecer tão fácil. Todos aqueles livros. E Irvine Welsh, ele faz parecer divertido, o último recanto onde você pode consumir drogas, cometer crimes e não ir preso, nem ficar gordo ou adoecer. Além de tudo, lemos livros a nossa vida inteira. Assistimos a milhões de filmes. Na verdade, isso é parte de nossa motivação, o quinto fator.
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Aversão. Com exceção de talvez uns seis filmes na videolocadora, o resto é porcaria. E com a maior parte dos livros acontece a mesma coisa. Lixo. Podíamos fazer melhor. conhecemos todos os enredos básicos. Já foi tudo desvendado por Joseph Campbell. Por John Gardener. Por E. B. White. Em vez de desperdiçar tempo e dinheiro em mais  um livro ou filme porcaria, que tal fazer o serviço direito? Ora, por que não?
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E aí, com licença, mas seus sete minutos terminaram*. Tudo bem, tudo bem, então pode ser que estejamos enveredando por um caminho que leva a vidas insensatas e egocêntricas, em que cada acontecimento é reduzido a palavras e a ângulos de câmera. Cada momento é imaginado através das lentes de uma câmera de cinema. Todas as falas engraçadas ou tristes rabiscadas e postas à venda na primeira oportunidade.
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Um mundo que Sócrates não podia imaginar, em que as pessoas examinariam suas vidas, mas só em termos de potencial para cinema e brochuras. Em que uma história não surge mais como resultado de  uma experiência. Agora a experiência acontece para gerar uma história. Mais ou menos como quando você sugere: “Vamos apenas
dizer que fizemos.” A história — o produto que você pode vender — se torna mais importante que o acontecimento propriamente dito.
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Um dos perigos é que podemos passar correndo pela vida, encarando acontecimentos após acontecimento para montar nossa lista de experiências. Nosso acervo de histórias. E nossa sede de histórias é capaz de reduzir nossa consciência da experiência real. Assim como apagamos depois de assistir a muitos filmes de ação e aventura. A química do nosso corpo não tolera mais tanto estímulo. Ou nos defendemos inconscientemente, fingindo não estar presentes, agindo como uma “testemunha” isenta ou um repórter da nossa própria vida. E fazendo isso, jamais sentimos uma emoção ou participamos de fato. Estamos sempre avaliando quanto a história vai valer em moeda fria.
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Outro perigo é que essa correria pelos acontecimentos pode nos dar uma falsa ideia da nossa capacidade. Se os acontecimentos ocorrem como um desafio, para nos testar, e os vivenciamos apenas como uma história a ser registrada e vendida, então será que vivemos? Será que amadurecemos? Ou será que vamos morrer nos sentindo vagamente enrolados e enganados por nossa vocação de contadores de histórias?”
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Este é um trecho de “Você está aqui”, ensaio presente na coletânea de textos de não-ficção Mais estranho que a ficção (Rocco, 2011), do autor de Clube da Luta, Monstros Invisíveis, Cantiga de Ninar, entre outros, Chuck Palahniuk. Neste texto, ele parte de sua experiência na Conferência de Escritores do Meio-Oeste, evento que reúne, além de aulas de escrita, palestras sobre técnica e marketing e, por uma quantia que varia entre vinte e cinquenta dólares, a possibilidade de defender sua ideia de livro ou roteiro para um agente, durante *sete minutos. A coisa acontece em um cúbiculo com espaço suficiente para a mesa e duas cadeiras e uma multidão aguarda por sua vez.
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Tal qual uma série de outros textos da coletânea, aqui também Palahniuk desfila as entranhas de universos inusitados. Seu gosto por culturas  peculiares  vai ao encontro dos temas de seus livros. Não é por acaso que lutas clandestinas, travestis e prostitutas e um universo de sexo sórdido permeia seus escritos.
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Palahniuk criou métodos de pesquisa, passeando por lugares onde pudesse explorar a fundo estes assuntos. Desde festivais de sexo a derbys de destruição de tratores, passando por ligações a telessexo a procura da “história mais depravada” que pudesse ouvir. O autor demonstra um encanto natural por este universo. Neste texto não é diferente, uma vez que sempre norteia seu olhar desencantado para o que pode haver de mais decadente no universo da escrita, revelando salões de festas de hotéis decrépitos, com suas conferências de escrita caça-níqueis, repletas de velhos agarrados a manuscritos sebosos, bradando “Aqui! Leia minha história de incesto!”.
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Há humor negro ao mesmo tempo que um olhar solidário em muitas da histórias. Aqui, ele identifica a multidão de escritores querendo ter seus originais avaliados como “o fedor da catarse. Do melodrama e das memórias.” Um amigo seu escritor se refere àquela “escola” como a literatura de “o sol brilha, os pássaros cantam e meu pai está montado em mim de novo”. Cada um daqueles escritores, para ele, carregam suas histórias como os frequentadores de  antiquários, oferecendo-se para ver o quanto sua “cicatriz de um incêndia na casa” é avaliada pelo mercado.
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Muito distante do cenário brasileiro, é claro, é interessante ver nesta história os bastidores de um mercado sempre à procura de mais e mais material, afim de capitalizar constantemente sobre a geração de conteúdo. Cada um daqueles pretensos escritores está ali porque enxerga uma possibilidade de faturar em cima de sua história, tê-la adaptada para o cinema, transformá-la em algo que se possa “pôr numa embalagem, divulgar e vender”.
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Palahniuk vê aquilo tudo como um confessionário, também. Pessoas em busca de redenção: “Não é mais Deus que os aguarda para o julgamento. É o mercado. Talvez o contrato de um livro seja um novo halo. (…) Em vez do céu, recebemos dinheiro e a atenção da mídia. Quem sabe  um filme estrelado por Julia Roberts (…)” E, tal qual nos anos 60 e 70, os programas de culinária na televisão estimulavam uma categoria de gente a gastar seu tempo vago e dinheiro com comida e vinhos, a partir dos anos 80, com a liberdade dos vídeos e CDs players, o entretenimento passou a ser a nova obsessão. Mas, como não se pode fazer um filme em casa, se pode escrever um livro. Ou um roteiro de cinema.
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Tal qual ele escreve também “ninguém em Los Angeles jamais fica a mais de quinze metros de um roteiro de cinema. São guardados na mala dos carros. Nas gavetas das mesas de trabalho. Em computadores portáteis. Sempre prontos para serem mexidos. Um bilhete de loteria à procura do seu pote de ouro. Um cheque que não foi descontado.”

 

 

 

 

 

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Alessandro Garcia é escritor. Autor de “A sordidez das pequenas coisas” (Não Editora, 2010), finalista do Prêmio Jabuti e um dos vencedores do Prêmio Fundação Biblioteca Nacional. Atualmente está lendo Ruído Branco, do Don DeLillo e A visita cruel do tempo, de Jennifer Egan. Mais em blog.alessandrogarcia.com. E-mail: severogarcia@gmail.com




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