Cartas a um velho poeta (parte 2)



4ª CARTA A UM VELHO POETA

O tolo não vê a mesma árvore que o sábio. (BLAKE, William. O casamento do céu e do inferno. Porto Alegre: L&PM, 2017, p. 19).

É óbvio que o olho ‘humano’ frui de modo diferente do olho grosseiro, inumano (…). Porque não somente os cinco sentidos, mas também os chamados sentidos espirituais (vontade, amor, etc.) – numa palavra, o sentido ‘humano’ – se constitui pela existência de seu objeto, pela existência da natureza ‘humanizada’ (…). (MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Manuscritos econômico-filosóficos de 1844. In Cultura, arte e literatura: textos escolhidos. São Paulo: Expressão Popular, 2012, p. 134-135).

 

  1. CARTADA FINAL

Prezado velho poeta, começo pelo fim da terceira carta, retomando aquele insólito post do velho velhaco, publicado no seu perfil do Facebook em 11 de junho de 2020: “É engraçado como racismo e antirracismo podem servir ao mesmo propósito: tomar o poder”. No dia anterior, aliás, ofereceu à sua pequena claque esta outra pérola da estupidez: “Não é curioso como as manifestações ‘do bem’ e do ‘mal’ são indistinguíveis?”. O hábil hermeneuta há de concordar que nem seria necessário contextualização dos enunciados – informando ao leitor que ambos se referem às recentes manifestações antifascistas e antirracistas contra o ex-capitão terrorista – para invalidá-los: não se trata, veja bem, sequer de refutar as proposições, porque não cumprem nem as “condições de validade” da lógica formal nem os pressupostos do raciocínio dialético. Contando com o notório saber do notável sábio (ou vice-versa), enfim, estou dispensado do dever de explicar o “xis” da equação conceitual: “A contradição dialética não é o absurdo lógico. Em outras palavras, se o pensamento dialético se baseia (ou se funda) naquilo que o lógico declara absurdo, até mesmo impossível, o dialético não concebe esse absurdo ou essa impossibilidade como tais; ao contrário, vê neles um ponto de partida e a inserção numa inteligibilidade que ele declara concreta” (Henri Lefebvre, “Lógica formal/Lógica dialética”, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1979, p.19).

Com o perdão do trocadilho “bíblico”, se no princípio era o princípio da “não contradição”, um enunciado não pode afirmar simultaneamente “A” e “Não A” – lição ignorada pelo reincidente velho mau aluno de lógica: primários no erro e estúpidos na repetição, seus impublicáveis posts são a prova proverbial de que o moribundo polemista morre pela bocarra sofismática. Tão prepotente quanto imprudente com “as palavras e as coisas” (ah, Foucault, quanta desordem no discurso!), confundindo “as ideias e as coisas” (ah, Marx, a “miséria da filosofia” está muito “abaixo do nível da crítica”), o incauto pré-póstumo desbocado acabou cavando a própria cova. O poço da profunda boçalidade – pleonástica e paradoxalmente, atesta o próprio óbvio óbito o coveiro de si mesmo – é bem mais raso do que a cega soberba do imprevidente poeta senil supôs: sendo “Racismo” igual a “A”, e “Antirracismo” igual a “Não A”, se “A” e “Não A” são diferentes, logo “Racismo” e “Antirracismo” não “podem servir ao mesmo propósito”. Aliás, a contradição já está marcada no prefixo latino “anti-“, implicando divergência de valores, conflito de interesses: não seria preciso grande esforço de raciocínio, pois, para ele – sobretudo ele, que se crê tão célebre cérebro – chegar à conclusão tão básica de que ter o mesmo propósito é estar do mesmo lado, somando forças contra o inimigo comum.

Infelizmente, como já vira Vieira, quando os que têm olhos de ver e ouvidos de ouvir não enxergam nem escutam, é melhor pregar aos peixes (ah, meu Santo Antônio de Armino, dai-nos paciência!): quem sabe os escamosos sejam mesmo mais sábios que o velho reacionário que não nada, patético poeta de pé de pato afogado no “buraco negro” da poça boçal de lama do falso “Messias” bolsonazi. Crendo-se além de Deus e o Diabo na Terra do “Algo de Sol” (ah, Nietzsche e Glauber, é o obtuso “dark side” da desrazão, sob o eclipse da autocrítica!), o cego ególatra igualou novamente – na pequenez da sua sórdida ótica da indiferença – as desproporcionais grandezas de valores no insólito segundo post, como se abstraísse (desdém e ignorância parindo preconceitos siameses) que, sendo o “Bem” igual a “A” e o “Mal” igual a “Não A”, como “A” e “Não A” são diferentes, não poderiam o “Bem” e o “Mal” – logicamente – ser “indistinguíveis”. Lembramos ao mau aluno de lógica, enfim, que a fórmula “A = A” (ou seja, “Bem = Bem” e “Racismo = Racismo”), conforme a dialética hegeliana, “não passa num primeiro momento da expressão de uma tautologia vazia”: “É essa a identidade vazia à qual se mantêm ligados os que a enxergam como uma verdade e não cessam de repetir que a identidade não é a diferença, mas que identidade e diferença são diferentes. Não percebem que, ao falar assim, dizem que a identidade é uma diferença”. (Henri Lefebvre, “Lógica formal/Lógica dialética”, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1979, p.139).

Não é necessário explicar ao hábil hermeneuta que, na estrutura básica do raciocínio tautológico, sujeito e predicado têm o mesmo referente: por exemplo, quando se afirma que o negro é negro e o branco é branco; quando se diz que o racismo é o racismo e o antirracismo é o antirracismo; quando se proclama que o fascismo é o fascismo e o antifascismo é o antifascismo; quando se preconiza que o bem é o bem e o mal é o mal. Na perversa circularidade hipnótica da tautologia, contudo, se pode parecer e mesmo ser verdade que o predicado não acrescenta informação alguma ao sujeito, não é verdade que “A = A” sempre traduza, apenas e tão somente, o “princípio da identidade”: na maquiavélica manobra argumentativa tautológica, afinal, sob a suposta inequívoca igualdade dos termos, tão explicitamente anunciada no enunciado, a indigesta diferença profunda fica ironicamente implícita na enunciação. Quando se diz que “o negro será sempre o negro”, por exemplo, simula-se na superfície a identidade que, no fundo, não dissimula a diferença: o sujeito não é igual ao predicado, uma vez que o primeiro “negro” se refere ao “grupo étnico” (marcado por traços genéticos distintivos, como a cor da pele), enquanto o segundo se reporta ao conjunto de atributos – historicamente adquiridos – sociais, culturais e ideológicos (marcados “a ferro e fogo” com traços de sentido pejorativos, como na recorrente criminosa analogia com os primitivos hominídeos, em que os “cara-queimadas” são igualados a simiescos ancestrais do “homo sapiens”).

Sem jamais subestimar a suprema sapiência do prezado decano das letras, gostaria apenas de acrescentar um providencial exemplo de José Luiz Fiorin, escolhido a dedo nas criteriosas páginas de seu erudito estudo dos recursos argumentativos. Abrindo um breve parêntese, aliás, só para situar a citação, vale registrar que a obra (consagrada na academia e celebrada no Jabuti de 2016) reivindica a matriz taxonômica da “Nova Retórica” de Chaïm Perelman, organizando-os primeiramente – a bem do rigor metodológico – em gêneros (“argumentos quase lógicos”, “argumentos fundamentados na estrutura da realidade” e “argumentos que fundamentam a estrutura do real”), para então classificar e descrever as suas respectivas espécies. A propósito, já que é disto que estamos tratando aqui (nos duplamente problemáticos posts do tão prepotente quanto imperito polemista passadista), os recursos argumentativos “quase lógicos” decorrem dos princípios da identidade (como é o caso, por exemplo, da “tautologia”, da “definição”, da “comparação”, do “argumentum a pari”, do “argumentum a contrario” e do “argumento dos inseparáveis”) e da não contradição (de que se originam a “autofagia”, a “retorsão”, o “reductio ad absurdum” e o “argumento probabilístico”).

Focalizando primeiro a operação retórica do raciocínio circular, vem bem a calhar a seguinte explicação e exemplificação de Fiorin: “quando se utiliza a tautologia na argumentação, ela, embora aparente assentar-se no princípio da identidade, é uma falsa tautologia, dado que sujeito e predicado têm significados diferentes e, portanto, remetem a referentes diversos. Por conseguinte, a tautologia é um argumento quase lógico. Assim, quando se diz ‘O Brasil será sempre o Brasil’, o primeiro Brasil significa ‘nação brasileira’, enquanto o segundo Brasil tem a acepção de ‘conjunto de características (em geral, negativas) que dão identidade à nação brasileira’. Trata-se, portanto, de uma crítica feroz a certas características dos brasileiros”. (FIORIN, José Luiz. “Argumentação”. São Paulo: Contexto, 2015, p. 117). Posto isso, enfim, se alguém recorresse a tal recurso para replicar os pueris posts do pré-póstumo poeta, arguindo que eles podem servir para corroborar, infelizmente, a cética conclusão definitiva de que “o Brasil será sempre o Brasil”, o enunciador estaria dizendo que a posição ideológica do reacionário senil se coaduna com o ponto de vista dominante na inglória história pátria. Ou seja, faria ver que seu indigesto discurso reflete os mesmos vis valores preconceituosos e intolerantes tão enraizados no Brasil (ah, Sérgio Buarque, o “homem cordial” é um perverso mito que dissimula a exploração e oculta a opressão), operando na mesma ordem hedionda da histórica exclusão dos “diferentes” indesejados (sejam índios, homossexuais ou negros).

É importante ressalvar, contudo, que a imperícia retórica do irascível polemista é menos fruto da tautologia do que produto da contradição, uma vez que o deletério direitoso, desprezando pretensiosamente as premissas do raciocínio lógico, recriou às avessas a regra de que “A” é igual a “Não A”, para então concluir – descarada e despropositadamente – que inexiste diferença entre fascismo e antifascismo, que não há distinção entre racismo e antirracismo, que o “bem” e o “mal” são idênticos. Lendo com lépida lupa as tão execráveis quanto frágeis proposições tão despudoradamente postadas, prezado velho poeta, parece mesmo indubitável que o desprezível velho poeta – tão prepotente quanto imprevidente – pulou o pré-requisito lógico-formal da gramática retórica básica, caindo no previsível precipício da falácia fatal, já desde o princípio – “pecado originário” ordinário – pondo à mostra a monstruosa falta de princípios (em duplo sentido). Produzindo prova contra si mesmo, o incorrigível mau aluno – reprovado em lógica, história, política, ética e retórica – escreveu (“e não leu, o pau comeu”) que o objetivo comum dos racistas e dos antirracistas seria “tomar o poder”, o que implica que o poder não estaria nas mãos de uns nem de outros, mas de representantes “neutros” da sociedade civil, de servidores públicos “imparciais”, de sujeitos institucionais “desinteressados”: como se o poder – despersonalizado, impessoal – pairasse sobre os conflitos de interesses, acima dos antagonismos, indiferente às diferenças – desiguais e combinadas – de credo, gênero, cor e classe.

Por falar nisso, visto que o delirante desafeto – distorcendo os fatos do alto de seu arrogante panteão reacionário narcísico, imoral morada sintomática das recalcadas “divindades” despóticas – também se “Ascher” procurador privilegiado de Minerva, proclamando-se onividente sábio supremo (parvo poeta posando pleonasticamente de patético pavão, armado de inócuos olhos de Argos na cômica cauda incauta), bem “além do bem e do mal” (ah, Nietzsche, essa nanica caricatura exibicionista está bem aquém da mínima crítica, mesmo de alguém bem menor ainda que um mero pequeníssimo epígono de “Zaratustra”), a rigorosa prudência reivindica que se abra aqui um breve parêntese, fechando antecipadamente o cerco retórico a eventuais réplicas disparatadas do impertinente inimigo. Sugiro que o mau aluno estude um pouco o clássico de Engels, para poupar-nos de ler asneiras: “A força da coesão da sociedade civilizada é o Estado, que, em todos os períodos típicos, é exclusivamente o Estado da classe dominante e, de qualquer modo, essencialmente uma máquina destinada a reprimir a classe oprimida e explorada”. (ENGELS, Friedrich. “A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado “. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978, p. 199). Este outro trecho vem bem a calhar: “Com a escravidão, que atingiu o seu mais alto grau de desenvolvimento sob a civilização, veio a primeira grande cisão da sociedade em uma classe que explorava e outra que era explorada (…). A escravidão é a primeira forma de exploração, a forma típica da Antiguidade; sucedem-na a servidão na Idade Média e o trabalho assalariado nos tempos modernos: são as três formas de avassalamento que caracterizam as três grandes épocas da civilização. A civilização faz-se sempre acompanhar da escravidão – a princípio franca, depois mais ou menos disfarçada” (idem, p. 198).

Na perspectiva equivocada do post, sob as perversas lentes da ignorância e da má-fé, o pobre polemista acredita que o poder estaria mesmo “acima de tudo e de todos” – exatamente como faz crer aos néscios neofascistas o farsesco slogan patriotário do autoritário “mito” mitômano canastrão. A propósito do despropósito, se é inegável que estamos diante de um governo misógino, homofóbico e racista, como é que os seus partidários poderiam estar lutando para tomar o poder? Se o incauto reacionário tivesse dito que os supremacistas brancos estariam lutam para “sustentar o poder”, teria ao menos se livrado do pueril equívoco, incoerência inconcebível – convenhamos – de quem há séculos faz do verbo seu ofício. Mesmo aquele que não se destaca propriamente pela inteligência não teria grande dificuldade para concluir que, sendo de fato os racistas – historicamente – os “donos do poder”, eles não poderiam tomar o que já lhes pertence. Bastaria raciocinar um pouco, há de convir o experiente homem das letras, para não desconsiderar a premissa lógica básica da cartilha argumentativa: “O princípio da não contradição diz que alguma coisa não pode ser e não ser ao mesmo tempo”. (FIORIN, José Luiz. “Argumentação”. São Paulo: Contexto, 2015, p. 139). Com base nele, enfim, o notório mau aluno – mau caráter incorrigível – é indefensavelmente reprovado por “autofagia” (aquilo “que se devora a si mesmo”), uma vez “que ela [a proposição] se autodestrói, porque faz surgir uma incoerência num argumento” (idem, p. 141).

Confesso-lhe que não haveria de não me sentir constrangido, neste vexatório quadro de indigência intelectual, por precisar comentar tantos erros tão primários, sendo obrigado a recorrer a pressupostos teóricos tão elementares para comprovar o que indisfarçavelmente salta aos olhos – tão fatigados, é claro, de tão recorrente e reluzente estupidez. Seria muita tolice se tentasse esclarecer ao néscio cego senil – que não consegue sequer separar a luz das trevas – a diferença evidente entre o preto e o branco: ninguém, em sã consciência, confiaria que seria possível fazê-lo ver a face do oprimido e enxergar a fuça do opressor, para que não repetisse o deplorável despautério de que “as manifestações do bem e do mal são indistinguíveis”. Na advertência irônica de Álvares de Azevedo (na peça teatral “Macário”), esperar um lampejo de lucidez do esclerosado versejador com catarata seria tão inútil quanto pedir “luz a uma lâmpada queimada”, “som a uma harpa sem corda”. Leon Trotsky engrossa o coro crítico com seu característico sarcasmo demolidor: “Uma escala compreende sete notas. A pergunta ‘qual dessas notas é melhor, dó, ré ou sol?’ é uma pergunta desprovida de sentido. O músico, porém, deve saber quando e em que tecla bater. Compreenderam? (…). Na verdade, se há inconveniente em explicar este ABC, é mau, muito mau (…) quando músicos (…), em lugar de distinguir as notas, batem no teclado com as pastas.” (TROTSKY, Leon, “Carta ao operário comunista alemão do PCA”, in Revolução e Contrarrevolução na Alemanha. Lisboa: CLB, s.d, p. 128).

Paulo César de Carvalho

(Como diria Mário de Andrade, “a cólera dos passadistas é um dos prazeres mais sensuais que tenho”. Estou ávido por destruir o velho poeta reacionário Nelson Ascher).

PS: Esta quarta carta ainda está inconclusa. Farei uma análise sistemática das inconsistências retóricas do senil homem das letras. Quero provar que ele está muito aquém do que críticos escreveram na orelha de seu livro “Algo de Sol”. Rabisquei um parágrafo que incorporarei à carta. Só reproduzo aqui para que vocês possam confrontar minhas duras críticas com os elogios ao néscio…

“Ele é um grande mestre da logopeia, ou poema como jogo de pensamento”: este é o retrato do poeta quando poeta sob a perspectiva de Arthur Nestrovski. “Polêmico (…), manipula suas referências sem ser subjugado por elas; possui uma potência imaginativa própria, capaz de transfigurar aquilo sobre o que fala”: este é o retrato do poeta quando poeta sob o ponto de vista de Carlos Graieb. “O que de pronto se assinala no autor é que, além de fazer poesia – o que muitos supõem que fazem -, ele também sabe ‘escrever versos’, optando sempre por soluções mais complexas, mas nem por isso inacessíveis ou restritas a meia dúzia de iniciados”: este é o retrato do poeta quando poeta sob o ângulo de Antonio Carlos Secchin. “Resultado de um paciente exame das possibilidades expressivas (…) como objetos de prazer com a linguagem, como exploração inteligente de significados”: este é o retrato do poeta quando poeta sob o foco de Ivan Teixeira. “A crítica, a autocrítica, o humor (…) e, especialmente, a continuação da tradição que tem na linguagem a chave da vida (…) recomendam esse autor do ‘menos’, da economia e da antirretórica”: este é retrato do poeta quando poeta sob a lente de Beth Brait.

PS2: Prezado

Felipe Fortuna,

aguardo ansioso o debate com Nelson Ascheroso. Sigo afiando a faca! Nenhuma tolerância com os intolerantes! Obrigado. Abração.

 

***

 

5ª CARTA A UM VELHO POETA

Para combater o racismo, é preciso conhecer bem o que significa preconceito e intolerância. O sórdido poeta Nelson Ascher afirmou que o bem e o mal são indistinguíveis, e que o racismo e o antirracismo têm o mesmo propósito (?), “tomar o poder”. Por estupidez e má-fé, parece ignorar que são os racistas, historicamente, que estão no poder. Se alguém conhece essa abjeta criatura, peço a gentileza de lhe avisar que estou ávido por destruí-lo publicamente: se esse merda honra as calças, diga-lhe que não fuja, que me encare. O texto a seguir não é para ser lido no facebook: é muito longo, extensão incompatível com esse meio digital. Em todo o caso, posto-o aqui para que os interessados possam salvá-lo e estudá-lo oportunamente. Esta é a quinta carta sobre este tema fundamental tão vulgarizado pelo poeta senil Nelson Ascher: sendo judeu, deveria saber muito bem o significado do racismo, que vitimou seis milhões de judeus na barbárie nazista. Estou louco para encontrar esse escroque de extrema direita. Segue o texto:

 

CARTA A UM VELHO POETA

“Se em toda ideologia os homens e as suas relações aparecem de cabeça para baixo como numa câmara escura, é porque esse fenômeno do seu processo histórico de vida, da mesma maneira que a inversão dos objetos na retina, deriva do seu processo diretamente físico da vida”. (MARX, Karl. “A ideologia alemã”. São Paulo: Expressão Popular, 2012, p. 31).

“As palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de trama a todas as relações sociais em todos os domínios (…). O ser, refletido no signo, não apenas nele se reflete, mas também se refrata. O que é que determina essa refração do ser no signo ideológico? O confronto de interesses sociais (…), em todo signo ideológico confrontam-se índices de valor contraditórios. O signo se torna a arena onde se desenvolve a luta de classes”. (BAKHTIN, Mikhail. “Marxismo e Filosofia da Linguagem”. São Paulo: Hucitec, 1992, p. 41-46).

 

  1. Retrato do artista quando senil

Prezado polemista, na quarta carta, conforme havia prometido, fui direto ao ponto crítico, reproduzindo de cara aqueles dois insólitos posts que o descarado reacionário publicou no facebook (em 10 e 11 de junho), ridicularizando as três recentes manifestações antifascistas e antirracistas contra o governo Bolsonazi (realizadas nos dias 31 de maio, 7 e 14 de junho). Procedi, então, a uma sistemática análise do seu discurso delirante, recorrendo à matriz conceitual da “nova retórica” para apontar – com o lastro de incontestes autoridades linguísticas – as pueris falhas de raciocínio do imprudente poeta prepotente. Atento ao rigor metodológico, apresentei inicialmente a grade taxonômica dos gêneros e espécies de recursos argumentativos (conforme o modelo consagrado de Chaïm Perelman), destacando os “argumentos quase lógicos” e explicando os dois princípios de que decorrem: o da “identidade” – como a “tautologia” – e o da “não contradição” – como a “autofagia” e a “retorsão”. Com as “armas da crítica” na mão (para não dizer que não falei de Marx, retomo a epígrafe da primeira epístola) e a indignação na cabeça, disparei certeiro para destruir o pérfido e precário palavrório preconceituoso do parvo passadista pretensioso (com o perdão das aliterações e reiterações, mas são tantas pedras lascadas neste primitivo descaminho do irraciocínio pré-retórico, não é mesmo, prezado poeta poliglota polígrafo?).

Abrindo um breve parêntese, não precisaria confessar-lhe, a esta altura do combate, que já poderia ter acertado a testa do néscio senil no primeiro tiro: se não o fiz, certamente não foi por piedade (não sou partidário do “humanismo devoto” cristão), tampouco pelo sádico prazer de assistir à queda patética do pobre presunçoso em câmera lenta (apesar da simpatia pelo célebre Marquês). O fato é que, expondo progressivamente a ridícula nudez da ratazana ruiva aos olhos perplexo dos pares na plateia, desnudo também seus obtusos cúmplices, para que não se atrevam a me tomar tempo com intrépidas tréplicas, recolhendo-se resignados às tétricas trevas de sua hiperbólica estupidez roedora. Encerro este parágrafo, enfim, fazendo minhas as palavras do jovem literato Karl, redigidas bem antes de se tornar o impiedoso polemista Marx (que os beócios apologistas do tal “marxismo cultural”, obviamente, jamais leram): “Embora não possamos partilhar de sua opinião, ela merece uma apreciação crítica, pois emana do espírito de um homem que juntou sua enorme erudição a uma grande proficiência na produção de fumaça (…). Ao ler esses comentários, fiquei vertiginosamente perplexo (…), e surgiram os argumentos contrários (…), concluindo-se então que o citado autor, a despeito de sua infalibilidade, errou (…). Após essa vitória, estou exausto para prosseguir (…), momento em que (…) há mais valor do que em toda glória póstuma” (MARX, Karl. “Escorpião e Félix”, in “Escritos ficcionais”. São Paulo: 2018, p. 23-24).

Posto isso, hábil hermeneuta, voltemos ao que de fato interessa, jogando outras luzes retóricas sobre o imenso breu argumentativo dos posts, expondo à execração pública a comédia intelectual do velho poeta pré-póstumo, irremediavelmente perdido na floresta infestada de falácias neofascistas. Para lhe dar mais uma prova (como se fosse de fato preciso atestar o óbvio óbito do defunto putrefato) de que a situação está mesmo muito abaixo do nível da crítica, recordando ao rato ruivo reaça que “escreveu e não leu, o pau comeu” (no princípio era o provérbio, já no primeiro parágrafo da primeira epístola), vejamos sob outra perspectiva a cegueira senil do sórdido desafeto, que disse que “as manifestações do bem e do mal são indistinguíveis”, igualando levianamente o “racismo” ao “antirracismo”. Redobrando a paciência para mostrar ao “mestre da logopeia” (risos) a evidente contradição do raciocínio (símio), recorro a mais um “argumento quase lógico” fundado no “princípio da identidade”: a “definição”, na retórica clássica aristotélica, consiste em “uma frase explicativa do que uma coisa é”. Por prudência, passo a palavra a uma das maiores autoridades em teoria do discurso, o linguista Fiorin: “Para os propósitos argumentativos, pode-se dizer que a definição é uma resposta à indagação ‘Que é uma coisa?’. Portanto, definir é estabelecer uma relação de equivalência que visa a dar sentido a dado termo”. (FIORIN, José Luiz. “Argumentação”. São Paulo: Contexto, 2015, p. 118).

Não careceria o caro camarada, é claro, que lhe esclarecesse o que já está tão claro (com o pleonástico perdão do trocadilho no gatilho, esta era da ignorância é o acúmulo da redundância): o argumento da “definição”, neste trágico quadro de indigência intelectual, implica traduzir o “cunho vernáculo do vocábulo” (ah, Manuel, que bandeira!) sobre o qual paira a improvável polêmica. Não fosse tão rasteiro o nível do debate, enfim, seria desnecessário pedir ajuda ao “pai dos burros” para definir o que é “racismo” e concluir, pois, que “antirracismo” não pode não ser senão a antípoda do termo (antônimo, afinal, não é o mesmo que sinônimo, não é mesmo?). Por vício do ofício (há três décadas, prezado velho poeta, leciono gramática, interpretação de texto e redação), abro o dicionário Houaiss a fim de que o velho poliglota polígrafo possa verificar com seus próprios olhos de Argos o indisfarçável imensurável descompasso entre o que diz o distinto lexicógrafo e o que desdisse o displicente disléxico. Para ser bem didático, transcrevo primeiro a definição da palavra “raça”, de que derivam, pelo processo morfológico da sufixação, tanto o substantivo abstrato “racismo” quanto o adjetivo “racista” – cujos conceitos reproduzo na sequência. Se os submeto ao exímio exame do insigne sábio – sublinho – é para que não pairem sórdidas sombras de sofismáticos sortilégios sobre os indefectíveis fatos “sub judice”. Sem mais, enfim, segue isto que – não haveríamos de não convir – certamente já deveria ser tão indubitável ao tão abominável homem das letras:

 

Raça (s.f.)

  1. Divisão tradicional e arbitrária dos grupos humanos, determinada pelo conjunto de caracteres físicos hereditários (cor da pele, formato da cabeça, tipo de cabelo etc.).
[Etnologicamente, a noção de raça é rejeitada por se considerar a proximidade cultural de maior relevância do que o fator racial (…)].

  1. Cada um dos grupos em que se subdividem algumas espécies animais, e cujos caracteres diferenciais se conservam através das gerações (cão da raça labrador).

 

Racismo (s.m.)

  1. Conjunto de teorias e crenças que estabelecem uma hierarquia entre as raças, entre as etnias.
  2. Doutrina ou sistema político fundado sobre o direito de uma raça (considerada pura e superior) de dominar outras.
  3. Preconceito extremado contra indivíduos pertencentes a uma raça ou etnia diferente, geralmente considerada inferior.
  4. Atitude de hostilidade em relação a determinada categoria de pessoas (xenofobia).

 

Racista (adj.)

  1. Relativo a racismo, que revela racismo (doutrina, atitude).
  2. Que ou aquele que professa o racismo.

Não fosse o ínclito interlocutor tão hábil hermeneuta, não seria redundante explicar-lhe, para então proceder com propriedade à análise dos verbetes, que o processo de construção de sentido de um termo sempre opera com as categorias – desiguais e combinadas – de “gênero” e “diferença”. Solicitando novamente a ajuda de um especialista, Fiorin esclarece que a definição “contém o gênero próximo, que é um predicado comum a coisas que diferem em espécie (por exemplo, o predicado ‘animal’ é comum a todas as espécies de animais) e a diferença específica, que é o que distingue uma espécie da outra (por exemplo, ‘racional’ é o que diferencia o homem das demais espécies animais). Assim, a definição do homem é animal racional”. A propósito, não seria demais precisar que a definição da “definição” (curioso espelhamento metalinguístico, não?) pode ser de natureza tanto “intensional” quanto “extensional”: “A primeira estabelece as propriedades caracterizadoras de um objeto (…). A segunda explicita os elementos que constituem um objeto, isto é, os indivíduos de um dado conjunto”. (FIORIN, José Luiz. “Argumentação”. São Paulo: Contexto, 2015, p. 118).

Retomando o primeiro “lexema-entrada” (com o rigor da terminologia lexicográfica, tão cara aos caros dicionaristas), a primeira e a quarta definição de “raça”, por exemplo, se distinguem pelo “gênero” (opondo “grupos humanos” a “grupos em que se subdividem algumas espécies animais”) e pela “diferença específica” (a subdivisão dos “grupos humanos” pelos traços distintivos de “cor da pele, formato da cabeça e tipo de cabelo”). Nas duas definições do dicionário Houaiss, portanto, não haveria de passar despercebido ao hábil hermeneuta – evidentemente – que a distinção básica de sentido se estabelece tanto por meio de traços característicos “intensionais” (gerais, comuns a cada grupo) quanto “extensionais” (particulares, explicitando os indivíduos de cada grupo). O arguto leitor certamente não precisaria desses exemplos para compreender que o processo de construção de sentido dos termos, através da definição, é uma operação taxonômica, isto é, de classificação dos objetos, de representação da realidade. Isso significa que, diferentemente do olhar religioso (orientado pelos valores paradigmáticos da consciência medieval, conforme a análise das “tipologias culturais” proposta pelo semioticista russo Iuri Lotman), não compartilhamos da ilusão de que haveria uma relação direta entre as palavras e as coisas.

Não poria em dúvida, é claro, que ambos partimos do mesmo pressuposto epistemológico de que “não existem ideias preestabelecidas, e nada é distinto antes do aparecimento da língua”, de que “nomear é categorizar a realidade, é organizar o mundo”, de que “cada língua pode ordenar diferentemente a realidade”. (FIORIN, José Luiz. “Linguística? Que é isso?”. São Paulo: Contexto, 2015, p. 59). No “gênesis” linguístico do patriarca genebrino Ferdinand de Saussure, sabemos bem que o aforismo bíblico inaugural – “No princípio era o Verbo” – é desautorizado: a realidade não é obra divina, mas fabricação cultural; é “o ponto de vista [que] cria o objeto”. Vacinados da ilusão adâmica do “grau zero da linguagem”, reiteramos com o sábio semiólogo Roland Barthes a premissa primordial do processo semiológico: “não se trata de reencontrar um pré-sentido, uma origem do mundo, da vida, dos fatos, anterior ao sentido (…), pois o sentido é produzido pela História, não pela Natureza”. (BARTHES, Roland. “Roland Barthes por Roland Barthes”. São Paulo: Estação Liberdade, 2003, p. 101).

Sob essa mesma perspectiva, enfim, é que o lexicógrafo Antonio Houaiss sublinhou que a “divisão tradicional” dos grupos humanos em raças é “arbitrária”, contrapondo-se à visão anticientífica dos messiânicos eugenistas que pregam a sua “naturalidade”. A propósito, nas duas primeiras definições do substantivo masculino “racismo” – formado por derivação sufixal do substantivo feminino “raça” – ele põe à mostra os andaimes da construção histórica do discurso opressor: por meio de “um conjunto de teorias e crenças que estabelecem uma hierarquia entre as raças”, a classe dominante (os homens brancos e ricos) legitima o “sistema político” através do qual “uma raça (considerada pura e superior)” explora e oprime outras. Nada de novo, vale dizer, já que esse processo ideológico de “naturalização” da superioridade de um determinado grupo humano, a quem caberia governar – domesticar – os “inferiores”, remonta à Grécia Antiga. Como recordei ao culto interlocutor na terceira epístola, não custa repetir que, já no introito do “gênesis” da literatura ocidental, o “pai dos bardos” distinguira os homens pela cor da pele, depreciando aqueles que teriam vindo ao mundo onde “Hipérion [divindade solar] nasce”, a quem se referira como “gente remotíssima de cara queimada”. (HOMERO. “Odisseia, v.1: Telemaquia”. Porto Alegre: L&PM, 2014, p. 13).

Lendo outra vez os altivos olhos épicos do “aedo”, o nobre velho poeta pode ver de novo o ponto de vista intolerante dos “civilizados” cidadãos gregos em relação aos “bárbaros” estrangeiros, revendo melhor a perspectiva onipotente dos “eupátridas” em relação aos “malnascidos” (sem hífen, depois do acordo ortográfico), para redimensionar o enorme abismo social entre os diferentes “grupos humanos”, a intransponível distância entre a superioridade dos senhores e a inferioridade dos escravos. Aliás, desde o princípio da exploração e da opressão (níveis desiguais e combinados na dialética da dominação de classe), os escravos não eram definidos pelo traço “intensional” da “humanidade”, mas da “animalidade”, transmudados discursivamente – reificados através do perverso ilusionismo dos “jogos de linguagem” (ah, Wittgenstein!) – em “seres inanimados”. Para ilustrar, lembro ao notável homem das letras que, mesmo sob o disfarce de mendigo no regresso a Ítaca, as “palavras aladas do herói” (na tradução do helenista Donaldo Schüler) entregaram a esnobe origem nobre – “real” – de Odisseu: “Eu morava numa casa que provocava inveja a gentes de posse. Muito vagabundo recebeu esmola de mim (…). Escravos? Eu tinha às pencas, além de outras coisinhas (…)”. (HOMERO. “Odisseia, v. 3: Ítaca”. Porto Alegre: L&PM, 2014, p. 151).

Por falar em “animais” e “coisinhas”, ponderando sobre a hierarquia arbitrária das raças nesta odisseia histórica epistolar, da “ordem do discurso” mitológico à “ordem do discurso” filosófico – sob distintos paradigmas epistemológicos, sob diferentes formas de saber e poder (sob as lentes de Foucault) – ficam mais nítidos os reflexos e refrações da exploração e da opressão do “mundo das coisas” no “mundo das ideias” do preconceito e da intolerância.  O caro herdeiro de Hermes pode conferir com seus próprios cem olhos argutos de que modo a filosofia de Platão traduziu conceitualmente – sistematizando-os – os valores aristocráticos “supremacistas” representados concretamente na epopeia primeva: “Lembras-te que falamos desta arte que concede um poder autodiretivo sobre os animais e que deles cuida não individual, mas coletivamente, e a qual, aliás, logo chamamos de arte de cuidar de rebanhos? (…) Quanto aos animais domésticos, à parte os escravos, poderemos incluí-los na arte de cuidar de rebanhos (…). Uma raça de tribos numerosas, ao que parece à primeira vista. São homens que em grande número se parecem com leões, centauros e outros monstros dessa espécie e que, em maior número ainda, se assemelham a sátiros e outros animais fracos (…)”. (PLATÃO. “Diálogos – Político”. In “Os Pensadores”. São Paulo: Abril Cultural, 1979, pp. 206, 237 e 239).

Não haveriam de ser mesmo meras coincidências, evidentemente, as semelhanças entre os etíopes de “cara queimada”, as “pencas de escravos” e “outras coisinhas” de Homero, e as “raças de tribos” de monstros mitológicos e “animais fracos” de Platão. Se Odisseu – vangloriando-se do infausto feito – confessou ao rei feáceo Alcínoo (depois de escapar de Calipso em Ogígia e chegar a Esquéria) que saqueou a cidade dos cícones (Ísmaro), matou seus habitantes e raptou mulheres (HOMERO. “Odisseia, v. 2: Regresso”. Porto Alegre: L&PM, 2014, p. 117), sob a perspectiva cúmplice do filósofo, essa violência seria tão lícita aos “eleitos” helenos quanto a escravização dos povos “bárbaros”, denominação depreciativa dos outros grupos: caracterizados como primitivos, sem discernimento, eles seriam julgados – consequentemente – incapazes de se governar. Na representação platônica do poder “legítimo” da minoria dirigente (a elite helena “proto-supremacista”), por força da lei – da lei da força – “aqueles que são comprados ou obtidos em forma semelhante, devemos incontestavelmente chamar-lhes de escravos”: posicionado de pleno direito no topo da pirâmide econômica, social, política e ideológica da “República”, pois, o prototípico cidadão grego – homem livre – se definia também – no olhar despótico de cima para baixo – como o indivíduo “educado perfeitamente [que] despreza seus escravos”.

Aproveitando a rápida parada filosófica nea breve viagem pela Grécia Antiga, visto que a “Retórica” do sucessor serviu de base para conceituar o recurso argumentativo da “definição”, o velho poeta não haveria de olvidar que o próprio ardiloso Aristóteles lançou mão da arma discursiva para fazer crer legítimo – naturalizando a farsa ideológica da “superioridade” da classe dominante – o modo de produção escravocrata. Retomando e superando a tese elitista da “República” de Platão, o avô do pensamento escolástico defendera que o instituto da escravidão não se fundava na força da lei nem na força física, mas na força apriorística da lei natural: “Há também, por obra da natureza e para a conservação das espécies, um ser que ordena e um ser que obedece. Porque aquele que possui inteligência capaz de previsão tem naturalmente autoridade e poder de chefe; o que nada mais possui além da força física para executar, deve, forçosamente, obedecer e servir (…). Há na espécie humana indivíduos tão inferiores a outros como o corpo em relação à alma, ou a fera ao homem; são os homens nos quais o emprego da força física é o melhor que deles se obtém (…), tais indivíduos são destinados à escravidão (…). (CARBONI, Florence e MAESTRI, Mário. “A linguagem escravizada: língua, história, poder e luta de classes”. São Paulo: Expressão Popular, 2012, p. 82-83).

Posto isso, convém retomar a primeira definição de “raça” e as quatro de “racismo”, para ponderar sobre a relação desigual e combinada entre a taxonomia e a axiologia, isto é, entre a classificação “tradicional e arbitrária dos grupos humanos” e o estabelecimento de “uma hierarquia entre as raças”, perverso pressuposto ideológico que fundamenta o “direito de uma raça (considerada pura e superior) de dominar outras”, justificando o “preconceito extremado” e a “atitude de hostilidade” – a intolerância cultural naturalizada – “contra indivíduos pertencentes a uma raça ou etnia diferente, considerada inferior”. A propósito, não esquecendo que o imprudente poeta senil igualou racismo e antirracismo, julgando “indistinguíveis” as “manifestações do bem e do mal”, vem à memória outro trecho lapidar daquele discurso de Platão sobre o método de definição e os critérios de classificação. Para demonstrar a validade da premissa de que “o gênero e a parte não são idênticos, mas diferentes”, o engenhoso “Estrangeiro” – sob a ardilosa trama discursiva do diálogo filosófico – fez as seguintes perguntas retóricas a “Sócrates, o Jovem”:

“Não és da opinião de que o maior só é maior com relação ao menor, e o menor com relação ao maior, exclusivamente? (…) Mas, então, aquilo que ultrapassa o nível da medida, ou permanece inferior a ele, seja em nossa conversa, seja na realidade, não é exatamente, a nosso ver, o que melhor denuncia a diferença entre os bons e os maus? (…) Eis-nos, pois, forçados a admitir, para o grande e para o pequeno, dois modos de existência e dois padrões: não nos podemos ater, como fazíamos há pouco, à sua relação recíproca, mas sim distinguir (…), de um lado, sua relação recíproca e, de outro, a relação de ambos com a justa medida. Não nos seria interessante saber a razão disso? (…) Negar à natureza do maior qualquer relação que não seja com a natureza do menor, não será excluí-lo de toda relação com a justa medida?” (PLATÃO. “Diálogos – Político”. In “Os Pensadores”. São Paulo: Abril Cultural, 1979, p. 231).

Indo direto ao ponto, essa tal “razão disso”, obviamente, era fazer crer inquestionável a dominação do “maior” sobre o “menor”: não por outro motivo, o filósofo definira os nobres helenos como “grupo humano” superior, distinguindo-os dos bestiais “bárbaros” dos “grupos inferiores”. Com a evidente finalidade de diminuí-los – não careceria o caro camarada que lhe esclarecesse – é que ele recorreu ao argumento da comparação, caracterizando caricaturalmente os indivíduos das “tribos primitivas” como “centauros”, “sátiros”, “monstros” e “animais fracos”. Abrindo um breve parêntese, aliás, conforme bem explica Fiorin, “uma maneira de definir é aproximar ou diferençar um objeto de outros”: na comparação, pois, “não se toma o objeto em si, expondo suas características e suas funções, mas se escolhe outro objeto mais conhecido e se fazem aproximações entre eles (…). As comparações têm papel pedagógico forte, pois dão concretude àquilo que é uma abstração.” (Obra citada, pp. 122 e 124).

Como bem sabe o bem sábio polemista, é claro, o próprio astuto ideólogo grego já registrara (quatro séculos antes de Cristo) o papel didático estratégico desse recurso subsidiário da definição, tornando mais palpáveis – palatáveis – os conceitos correlatos de superioridade e inferioridade (afinal, diria Platão, “o maior só é maior com relação ao menor”). Na lição do velho mestre ao jovem pupilo, naquele célebre diálogo político que o ilustre decano da logopeia conhece de cor, seria preciso “comparar uns com os outros a fim de ver o que há de igual em ambos” e identificar suas diferenças: interpretando-os “com exatidão”, assim, seria revelada ao hábil hermeneuta, supremo sábio senhor do “mundo das ideias”, a luminosa face divina – eclipsada pelas nebulosas ilusões mundanas da cega ignorância – da “verdade”. (Obra citada, p. 225). Nessa perspectiva, enfim, não é redundante rever também que, na visão de Aristóteles (sem perder de vista o trocadilho, evidentemente, nesta obscura terra de rei caolho), só poderiam enxergá-la – com os olhos da “alma” – os argutos “eleitos” dotados de “inteligência”: disso decorre que às inferiorizadas “feras” – caracterizadas pela “força física” e ausência de razão, destinando-se apenas à obediência cega ao “onividente” ser prepotente “superior” – seria “naturalmente” vedada a via (a visão) da “verdade”.

Apesar de o culto cultor dos livros saber muito bem que a teoria aristotélica fez escola (no caso, no pior sentido), formando gerações e gerações de pensadores racistas de diversas áreas do conhecimento (de filósofos a antropólogos, de biólogos a médicos, de sociólogos a literatos…), vale reproduzir esta lapidar crítica da má influência do estagirita (fundador também da lógica formal): “Sua racionalização das visões dos escravizadores sobre o fenômeno teria grande impacto cultural, ao ser recuperada e reelaborada, séculos mais tarde, pelos escravizadores da Idade Média e dos Tempos Modernos. Sobre ela se apoiaram as visões ocidentais dominantes da escravidão (…). Aristóteles reforçou a ideologia escravocrata ao propor raízes naturais e, portanto, genético-raciais ao escravismo (…). Assim sendo, seres de essências diversas se complementariam, cada uma desempenhando a função para a qual foi criado, pela natureza, na consecução de fins que lhe eram comuns.” (CARBONI, Florence e MAESTRI, Mário. “A linguagem escravizada: língua, história, poder e luta de classes”. São Paulo: Expressão Popular, 2012, p. 80-81).

Partindo dessa breve síntese do problema da formação histórica do pensamento supremacista racial, fundamento do discurso antirracista dos dois pesquisadores da história da escravidão, proponho ao prezado polemista que pondere sobre as daninhas “raízes naturais” da árvore genealógica da epistemologia eugenista. Para que valha toda esta volta ao passado remoto, provando que não foi vã a breve viagem pós-homérica ao século IV a.C, convém chamar a atenção do atribulado tripulante desta nau epistolar para o impacto da premissa taxonômica dos “seres de essências diversas” nas teorias “genético-raciais” dos séculos XIX e XX, base ideológica da naturalização da opressão, historicamente combinada à exploração (trágica rima que segue sem solução, qualquer que seja o modo de produção). Recomeçando do início, então, no princípio era a origem “bárbara” daquela “gente remotíssima de cara queimada”, daquele hediondo herdeiro de “Canaã” (na origem etimológica, “queimado”) condenado biblicamente a ser “servo dos servos de seus irmãos”, daqueles “animais fracos” das “tribos primitivas”, daquela “fera” tão inferior ao homem quanto “o corpo em relação à alma”.

Para não ser mais “repepetitivo” (afinal, isso não é um “Catatau”), poupando o prezado destinatário da impertinência pleonástica provocada pela incontinência digressiva indignada, o renitente remetente pula a linha e passa a palavra a outro especialista com papel estratégico nesta nossa “frente única antirracista antifascista” (o fascismo é a face facínora sem máscara do racismo: sem disfarce, o “preconceito extremado contra indivíduos pertencentes a uma raça considerada inferior” mostra a cara monstruosa da intolerância genocida). O próximo parágrafo – indo direto ao ponto, para acertar o alvo “ruivo reaça” dos posts – fica a cargo do perito em psicologia social Otto Klineberg:

“A questão da origem ou das origens das raças humanas, bem como de suas subdivisões, tem importantes consequências tanto práticas quanto teóricas. Se os vários grupos humanos diferem em sua origem, há maior margem para conjecturas a favor de uma diferença fundamental quanto a seus estádios de desenvolvimento biológico e, portanto, também de seu nível mental. A história da colonização ilustra a maneira pela qual a teoria poligenista foi usada para justificar a exploração do nativo de pele escura pelos brancos conquistadores. Não raro se justificou a escravidão negra nos Estados Unidos pelas mesmas razões: os negros eram considerados uma espécie inferior e completamente diferente dos homens, e o tratamento humano ou humanitário se tornava mais ou menos dispensável no seu caso. Atualmente, quase não há opinião científica a favor da teoria poligenista (…), a maioria dos antropólogos e dos que se dedicam à pré-história têm se limitado a procurar um berço único para a humanidade. A teoria poligenista de Klaatsch é pouco mais que uma curiosidade científica: em sua opinião, o negro e o gorila são intimamente aparentados e descendem de um único grupo ancestral de macacos-homens (…).” (KLINEBERG, Otto. “As diferenças raciais”. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1966, p. 30-31).

Não seria preciso o menor esforço – de memória ou raciocínio – para o eminente hermeneuta fazer rápida conexão entre as referências teóricas daquele passado mais remoto, na Grécia do século IV a.C, e as do não tão distante, naquela França do século XIX: não seria novidade ao prezado pré-póstumo poeta, afinal, que o conceito originário aristotélico dos “seres de essências diversas” fora retomado e reformulado também por Gobineau, nos quatro volumes de seu paradigmático “Ensaio sobre a origem da desigualdade das raças humanas”. Na quarta epístola, aliás, ainda que não precisasse me prevenir do improvável esquecimento do velho destinatário, por excesso de zelo sublinhei que o “pai das modernas teorias racistas” defendera em sua inglória obra não só a superioridade da “raça branca”, mas também – sobretudo e sobre todas – a da inferioridade desta em relação à pressuposta “suprema pureza” da “raça ariana”. Com o perdão da redundância, como bem sabe o sábio ancião das letras, foi exatamente essa lenda científica o princípio da perversa propaganda ideológica do Terceiro Reich, contribuindo decisivamente para “naturalizar” a criminosa perseguição aos “grupos primitivos” (de judeus, ciganos, poloneses, homossexuais, deficientes físicos, doentes mentais…) e legitimar a barbárie genocida do Holocausto (escrito – em cinzas – em maiúsculo).

Retomando a definição de “raça” do Houaiss, à luz desse quadro teórico, vejamos melhor de que modo eram classificados os “grupos humanos” através de traços físicos hereditários distintivos. Quanto ao “formato da cabeça”, por exemplo, o alemão Otto Ammon – discípulo de Gobineau – dividira os homens em “dolicocéfalos” (os de “cabeça comprida”) e “braquicéfalos” (os de “cabeça redonda”), considerando estes inferiores àqueles, que seriam mais inclinados à vida urbana e “aptos ao sucesso”. Para provar a absurda tese da superioridade do primeiro grupo, o antropólogo francês Georges Vacher de Lapouge usara o argumento estatístico de que haveria mais crânios dolicocéfalos num cemitério das classes social e economicamente privilegiadas de Paris, em contraste com os braquicéfalos enterrados no das classes baixas. Destacando também a cor da pele como elemento determinante na taxonomia das raças, o acadêmico britânico Houston Stewart Chamberlain – membro emérito da “Sociedade Gobineau” – definira os representantes da “raça ariana” como indivíduos dolicocéfalos e de tez clara. Os “arianos” descritos pelo célebre “antropólogo do Kaiser” (casado com a filha do grande compositor antissemita Richard Wagner) corresponderiam ao chamado “tipo nórdico”, conforme apontou Klineberg: “O tipo nórdico, ou europeu do norte, se caracteriza pela estatura elevada, cabelos loiros, olhos azuis, pele clara e dolicocefalia.” (Obra citada, p. 23). Aliás, o “tipo de cabelo” da tal “raça superior” deveria ser liso.

Mais insólito – o ilustríssimo ínclito interlocutor não haveria de não convir – é ter que lembrar isso tudo exatamente a quem é filho das cinzas da inquisição nazi: sobretudo um herdeiro desta trágica memória histórica da intolerância genocida não poderia jamais ignorar que seis milhões de judeus foram condenados à pena de morte no inferno totalitário dos sádicos campos de concentração do Füher sociopata (sem vírgula, sem fôlego). Não por mera desrazão circunstancial, obviamente, o veredicto xenófobo germânico se fundamentou no perverso pressuposto supremacista de que seriam os semitas, entre todos os desclassificados subgrupos “não arianos”, frutos “degenerados” da daninha “raça inferior” que deveria ser exterminada, como condição para o progresso civilizatório. Aliás, não se pode esquecer – como de regra olvida a memória “oficial” do Holocausto – que não só os judeus foram perseguidos e arderam nos fornos inquisitoriais, exterminados como nocivos seres de “raças parasíticas”: na hierarquia racial nazista, em cujo topo estariam os “puros” representantes de “tipo nórdico” da “raça ariana”, foram também rotulados e igualmente chacinados pela lógica eugenista da elite (quando os “eleitos” eram alemães) como “Untermenschen” – “grupos sub-humanos” – os ciganos e os eslavos.

A propósito, parece bem plausível aqui – sintomática a hipótese etimológica – que este gentílico “bárbaro” seja a origem do termo “escravo”. O que parece implausível é o fato de ser judeu o desafeto velho poeta dos posts reacionários: afinal, quem traz na pele a memória da tétrica temporada de caça às “raças inferiores” não haveria de não lembrar – pesadelo para todo o sempre – que “Lebensunwertes Leben” significa (no “presente do passado” – para não dizer que não falei do “tríplice presente” das “Confissões” de Santo Agostinho) “vida indigna de viver”. Em outro contexto, provavelmente soaria insólito – senão pretensioso – um não judeu recordar a um judeu o rescaldo metonímico da intolerância genocida, exposto a todos os olhos do globo no Memorial de Auschwitz, para que a tragédia jamais seja reencenada como farsa (para não dizer que não falei de Marx). Nas ruínas daquela ruindade atroz, o intraduzível significado da insignificância da vida humana está condensado (para não dizer que não falei de Adorno, “depois de Auschwitz, a poesia é impossível”) em 7.7 toneladas de cabelos, 110.000 sapatos, 4.000 malas, 12.000 utensílios de cozinha, 400 próteses dentárias, 870.000 vestidos (a maioria deles – atenção! – de crianças), 250 trajes religiosos judaicos, etc.

Não imaginava ter de explicar ao desafeto velho poeta que igualou racismo e antirracismo nos posts, julgando “indistinguíveis” as “manifestações do bem e do mal”, que realmente existiram na Alemanha nazista as clínicas “Lebensborn”, nem que o objetivo dos cientistas e médicos era descobrir – inventar – a fórmula da “raça ariana”: partindo da premissa de que os nórdicos estariam no topo da pirâmide racial, como registra a história, os bandidos do Terceiro Reich sequestraram crianças norueguesas para usá-las como “matriz genética”. Ainda que isso sempre indigne aos homens de bem (sem aspas, para distinguir bem o grupo humano a que pertenço da horda desumana de que faz parte o velho poeta reacionário), só haveria de ser surpresa a estúpidos desinformados que todas as instituições do Estado totalitário (o adjetivo não haveria de ser mero detalhe, não é mesmo?) estivessem a serviço da exclusão de todas as “diferenças” (fossem étnicas ou de gênero, físicas ou psíquicas, sociais ou políticas). Enfim, para quem não tem a menor noção da intricada rede tentacular de legitimação do discurso supremacista, ignorando a diferença entre princípios éticos e falta de princípios, convém dar mais estes dois exemplos do que a história condenou como “manifestações do mal”: a “Lei para Prevenção de Descendência Hereditariamente Enferma” (de 1933), institucionalizando a esterilização das “raças parasitárias”; e o programa de eutanásia “Aktion T4”, criado para eliminar os “grupos inferiores” e superar o “perigo da degeneração”.

A esta altura de tanta baixeza, diante de tantas provas de que o significado de racismo, no dicionário totalitário, é “vida indigna de viver”, é ainda mais grave que a plateia de judeus do Clube Hebraica do Rio de Janeiro não só tenha prestigiado o então candidato neofascista à Presidência da República, mas também gargalhado da grotesca piada racista do facínora Bolsonazi, que se referiu ao peso de um negro em “arrobas” (como se falasse de um bicho, como se negro não fosse ser humano), dizendo que o “ex-escravo” não servia mais “nem para procriador” e que os quilombolas reclamam direitos mas “não fazem nada” para merecê-los. É inacreditável, convenhamos, ter de lembrar àqueles judeus cúmplices do preconceito do beócio “Messias” – veja bem, por favor, para não repetir a aviltante bobagem de que “o bem e o mal são indistinguíveis” – que o “Museu da Higiene” de Dresden expusera, em 1934, um pôster com a imagem de um negro – na verdade, um cartaz de “procura-se” – e o seguinte alerta conclamatório àqueles bestiais patriotários “exterminadores do futuro”: “Se este homem houvesse sido esterilizado, 12 enfermos hereditários não teriam nascido”. Se, em vez da foto de um negro, fosse a de um judeu, os judeus do Hebraica dariam risada? Se Bolsonazi se dissesse que um judeu gordo pesa “sete arrobas” e “nem para procriador serve”, os judeus do Hebraica aplaudiriam o neofascista?

Não precisaria recordar ao erudito versejador, certamente, que bem antes das teorias racistas do Terceiro Reich – em 1869 – o vírus do pensamento eugenista havia chegado aos trópicos na bagagem do reacionário diplomata do golpista Napoleão III: condenando a “mistura racial” sob o argumento de que dela resultariam mestiços “estéreis”, o arrogante conde francês vaticinara ao imperador – em tom catastrofista intimidatório, para o último escravocrata pôr as barbas de molho e não perder a anacrônica coroa – que a “degenerada” miscigenação conduziria inexoravelmente o pobre país mestiço ao precipício. Na correspondência com o “cordial” velho monarca, conforme registrado em nossa epístola pregressa, o prepotente patrono racista deixara bem claro (sintomático trocadilho no gatilho) que a “solução” para reverter a suposta marcha degenerativa fatal seria adotar imediatas medidas de incentivo à imigração de “grupos humanos” europeus, sob o argumento de que os “autênticos” representantes das “raças superiores” progressivamente “purificariam” a pele parda da pátria, condenada pelo amálgama étnico. No diagnóstico do farsesco “déspota esclarecido” ao imperador subdesenvolvido, em síntese, eis o tal antídoto contra o mal mortal da mistura racial (a rima fatal seria a solução para o canastrão): “em vez de se reproduzir entre si, a população brasileira” deveria – inevitável e urgentemente – “subdividir ainda mais os elementos daninhos de sua atual constituição étnica”.

Meio século após a queda da monarquia – não haveria obviamente de olvidar este ouvinte tão atento – a tenebrosa tese do falso conde francês (o estelionatário Gobineau forjara sua origem “nobre”) seria parafraseada por patéticos pequeninos “pensadores” (aspas para destacar a diluidora estupidez copista endêmica da corja acadêmica tropicanalha) eugenistas do Estado Novo, como Azevedo Amaral e Oliveira Viana. Para não dar ao prezado paciente polemista o desgastante trabalho adicional de regressar às extensas epístolas para localizá-los, selecionei da terceira os trechos que melhor ilustram a linha de continuidade (abaixo da linha do Equador e da crítica) desse perverso discurso opressivo: “A forte miscigenação da população brasileira era considerada pela elite um obstáculo ao processo civilizador (…), a ideia de civilização está vinculada à raça branca (…), à sua hegemonia sobre outras raças (…). O pensamento autoritário no Brasil teve na questão racial papel importante para sua consolidação (…), era necessário sustentar outro caminho para reorganizar a sociedade brasileira: o do embranquecimento da raça feito por meio da entrada de imigrantes brancos europeus e a proibição da entrada de novos contingentes de negros (…). Oliveira Viana, desde os seus primeiros trabalhos, defendeu a necessidade do branqueamento do povo para torná-lo capaz de construir a nação”. (In “Militares e política no Brasil”. Jefferson Rodrigues Barbosa et al. São Paulo: Expressão Popular, 2018, p. 320-321).

O prezado velho polemista certamente recorda que o ex-ministro da Educação do governo neofascista, o colombiano canastrão Vélez Rodríguez, rendeu homenagem ao eugenista Oliveira Viana em tese de doutorado; que Bolsonazi disse a Preta Gil que os “zero” filhos dele foram “bem-educados”, por isso jamais se casariam com uma negra; que o general Mourão agradeceu à “política de embranquecimento da raça” o fato de seu neto ser supostamente um “cara bonito”; que o vice-presidente atribuiu as mazelas do Brasil à “indolência dos indígenas” e à “malandragem dos negros”. Não é preciso ser genial – basta não ser idiota – para concluir o óbvio: o governo é racista, logo os racistas não estão disputando o poder com os antirracistas, como afirmou em seu leviano post o poeta passadista senil. Seria por estupidez, má-fé ou ambas que o abjeto desafeto não consegue distinguir “as manifestações do bem e do mal”? Espero resposta desse judeu que não honra a memória daqueles seis milhões vitimados pela intolerância genocida do nazismo.

 

Paulo César de Carvalho

(Dedico este texto a três combativos camaradas: Ana Lucia Marchiori, Nelson Novaes Rodrigues e Serjão Pereira).

 

 

 

 

 

 

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Paulo César de Carvalho nasceu em São Paulo em 22 de abril de 1970. É bacharel em Direito e mestre em Lingüística pela USP, professor de Gramática, Interpretação de Texto e Redação do curso Anglo Vestibulares, co-autor do material de Língua Portuguesa do Sistema Anglo de Ensino, autor dos livros Tópicos de Gramática e Tópicos de Interpretação de Texto e Redação (Editora CPC – www.cpc.adv.br ou livraria@cpc.adv.br). Escreveu em co-autoria o material paradidático Arte e Cultura nos Anos 60 (Editora Anglo). Foi editor do boletim Texto & Cultura, colaborador das revistas Discutindo Língua Portuguesa, Discutindo LiteraturaArte & InformaçãoLivro Aberto e Libertárias e consultor da TV FUTURA no programa Tá Ligado? Foi curador da exposição Linguaviagem (organizada pelo Museu da Língua Portuguesa e Ministério das Relações Exteriores), que abriu em 2010, em Brasília, o Congresso dos Países Lusófonos. Sua dissertação de mestrado intitula-se Fragmentos epistolares de um discurso amoroso: elementos para uma análise semiótica do estatuto do gênero “carta de amor”. Tem poemas publicados no livro Na virada do século – poesia de invenção no Brasil (Landy Editora) e na antologia portuguesa Poezz (Almedina). Em 2010, lançou o livro Toque de Letra (editora nhambiquara). É vocalista e letrista da banda Os Babilaques. Tem parcerias com Tatá Aeroplano, Gustavo Galo e Cabelo (Trupe Chá de Boldo), Pélico, Juliano Gauche, Carlos Zimbher, Reynaldo Bessa e Wella Borges Costa. E-mail: carvalho70@gmail.com




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