Carta a São Paulo


Foto: Capa de álbum de 1967




Em comemoração ao aniversário de São Paulo, recuperamos nos arquivos de Julia Nogueira, filha do grande violonista e compositor brasileiro Paulinho Nogueira (falecido), uma crônica dele publicada no jornal Folha da Tarde em 1990.

Na sequência, um texto de Julia Nogueira contextualizando uma composição que Paulinho fez para o Parque da Água Branca em São Paulo, que quase virou um shopping center na administração do famigerado Paulo Maluf, aquele que argumentavam fazer, mas que invariavelmente nos bifava.

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Olá, São Paulo, como vai?

Bem, eu sei que você não vai responder, mas como nós temos convivido intimamente durante um longo tempo, creio que já posso falar um pouco por você.

Nós nos conhecemos melhor em 1952, lembra-se? Eu, deixando uma vidinha tranquila e prosaica em Campinas, vim morar com você na Av. Mercúrio, numa pensão ali perto do Gasômetro, que constantemente exalava um forte cheiro que, diziam, era muito bom para curar bronquite de criança.

Comecei a trabalhar em casas noturnas, tocando violão em boates e barzinhos, e posso dizer que a sua noite era uma grande curtição, proporcionando, principalmente pra quem veio do interior, uma experiência nova, emocionante pela convivência com músicos e os próprios habitués da noite, um pessoal liberal e descontraído, que me ensinou muita coisa.

Comecei na Boate Ytapoan, na rua Vieira de Carvalho, tocando, das 10 às 4 da madrugada. Nos intervalos a gente ia até a Praça da República, sentava-se tranquilamente num banco do jardim e ficava batendo papo, até com desconhecidos, que sempre tinham uma história interessante da cidade pra contar.

O Bar Michel também me traz muitas lembranças. Era o barzinho da moda, frequentado, entre outros, por Dorival Caymmi, Antônio Maria, Clóvis Graciano, além de políticos influentes da época, como Jânio Quadros e Carlos Lacerda, este devidamente acompanhado pelo staff do Estadão.

A rua Major Sertório ainda era a Boca do Luxo, e era frequente acontecerem shows de Silvio Caldas, Lamartine Babo, Isaurinha Garcia ou Nelson Gonçalves, que aliás, nunca precisava de microfone pra cantar. Não era raro, depois do ‘expediente’, a gente se reunir na escadaria de um edifício qualquer, ali na Vila Buarque, e ficava tocando, cantando e batendo papo até de manhã, muitas vezes, em companhia do saudoso Ciro Monteiro e do grande zagueiro Domingos da Guia, que não tocava nada, mas curtia muito.

Foram assim os meus primeiros tempos aqui, tempos, que, acredito, tiveram uma participação muito positiva na formação da minha carreira artística e da minha própria personalidade. Hoje, se eu pudesse bater um papo com essa incrível cidade, eu talvez perguntasse de novo: Olá, São Paulo, como vai?

Imagino que haveria um longo silêncio e a resposta viria meio sem jeito: “É, mais ou menos…”

Realmente, hoje eu não ando a pé à noite nem na minha própria rua, a Homem de Mello, em Perdizes, considerado um bairro nobre da Zona Oeste da cidade.

Mas de quem será a culpa? De você, São Paulo, ou de mim mesmo, de nós? Afinal, o que é uma cidade se não as pessoas que nela vivem? Bem, acho que a culpa também é do Brasil, é do mundo, sei lá…

O importante é que a gente continua curtindo muito esta cidade, apesar de tudo. Até mesmo quando estou voltando de um fim de semana em Jaguariúna, de uma casinha que tenho lá. Quando estou chegando, pela rodovia dos Bandeirantes, e avisto o Pico do Jaraguá, meu coração bate mais forte. Logo depois, a Vila Leopoldina, a Lapa, a Pompéia, e eu já me sinto feliz, pois estou de novo em São Paulo, que mesmo sem ser o que era antes, continua sendo a minha própria terra, a minha própria casa.

Paulinho Nogueira
15 de junho de 1990.

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Paulinho Nogueira no Parque da Água Branca

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Por Julia Nogueira

Todo dia 25 de janeiro, aniversário de São Paulo, me vem a cabeça uma grande conquista iniciada pelo Paulinho Nogueira, meu saudoso pai. Frequentador assíduo do Parque da Água Branca, respiro natural da zona oeste, espaço raro e gratuito de lazer onde muitas famílias que não tinham outra opção levavam seus filhos, caso também da minha família.

A cidade crescendo e os olhos voltados para os lucros que esse crescimento poderia gerar. Paulo Maluf, 1981, então governador do estado, não pensou duas vezes: criou um projeto de “modernização” desse parque visando a construção de um centro comercial com estacionamento subterrâneo, atualmente chamado de shopping center, e pouco se incomodou com destruição da farta vegetação e das inúmeras fontes de água natural que esse parque preservava.

Meu pai, quando tomou conhecimento, também não pensou duas vezes, juntou os muitos amigos que agregou dentro e fora do parque e fundou a Associação Amigos do Parque da Água Branca. Enfrentando todos os tipos de obstáculos e ainda criando uma segunda fase dessa luta, o movimento SOS Parque da Água Branca, o grupo não desistiu e, em 1995, teve início o processo de revitalização e tombamento do parque. Mas a grande homenagem que o Paulinho prestou a esse espaço de convivência se deu no começo desse processo no ano de 1981: compôs e gravou a música Parque da Água Branca. E não precisa de mais nada, basta ouvir a canção que está todo esse amor lá declarado.


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Biografia

Paulo Arthur Mendes Pupo Nogueira (Campinas SP 1929 – São Paulo SP 2003). Compositor e violonista. Paulinho Nogueira nasce e cresce na cidade de Campinas. Seu contato com a música se inicia em casa. Aos 11 anos aprende a tocar violão com o pai e o irmão mais velho e logo em seguida começa a ter aulas com o concertista professor Alfredo Scupinari. Ainda menino, participa do conjunto vocal de seus irmãos, o grupo Cacique, em que toca violão. Já adolescente, participa do conjunto Príncipes Vocalistas, apresentando-se na região de Campinas. Interessa-se pela obra de Garoto, que escuta na Rádio Nacional do Rio de Janeiro. Ao concluir o ensino médio, em 1949, muda-se para São Paulo com o objetivo de trabalhar como artista gráfico, mas não é bem-sucedido. Em contrapartida é contratado como instrumentista na boate Itapuã. A carreira profissional segue nas emissoras de rádio Bandeirantes e Gazeta, além de permanecer tocando em boates e bares da capital paulista acompanhando artistas como Ângela Maria, Johnny Alf e Dorival Caymmi. Na época é convidado pelo jornalista Roberto Corte Real a gravar seu primeiro disco,Voz do Violão, em 1959. O interesse da indústria fonográfica é evidente, pois lança um disco por ano nas duas décadas seguintes, fato raro para um instrumentista. Sua primeira composição gravada é Menino, Desce Daí, de 1961, no disco Sambas de Ontem e de Hoje, pela RGE.

Na década de 1960 começa a dar aulas de violão e forma uma série de jovens violonistas, como Toquinho. Em 1964, organiza e publica um método de ensino de violão que é um dos mais utilizados no Brasil, no qual introduz as cifras harmônicas como referência de aprendizagem. Nos anos de 1965 e 1967, é o violonista do programa O Fino da Bossa, da TV Record, apresentado por Elis Regina. Nogueira compõe nesse período Bachianinha nº 1, que logo se torna repertório dos violonistas. Em 1969 inventa um instrumento de doze cordas em que procura combinar a sonoridade do cravo e da viola: a craviola, que motiva o disco Moda de Craviola, de 1975. O instrumento torna-se conhecido e é adotado por vários instrumentistas, entre eles Jimmy Page, guitarrista do Led Zeppelin.

Sua composição Menina, de 1970, faz nesse ano muito sucesso, ganha interpretações de Jongo Trio, Milton Banana, Benito di Paula e integra a trilha sonora da novela Irmãos Coragem. Na década de 1980, Nogueira desenvolve o projeto do LP Tons e Semitons, que vem acompanhado da partitura das canções. Nos anos 1990 o projeto tem continuidade com a gravação dos vídeos de Violão em Harmonia. Participa de vários festivais, destacando-se o Carifesta, Festival Internacional de Países do Caribe, em Havana, em 1979; o Festival Internacional do Violão, Nápoles, Itália, em 1991, e o Guitars in Concert, em 1992, também na Itália, quando toca com Joe Pass e Jorge Morel. Lança Chico Buarque – Primeiras Composições, pela gravadora Trama, em 2002.

No ano seguinte, é produzido o disco em sua homenagem De Coração pra Coração, gravado ao vivo na casa de espetáculos Tom Brasil, em São Paulo, com participação de Toquinho, Nando Reis, Jair Rodrigues, Jane Duboc, Yvette, Jane Moraes, Lula Barbosa, Renato Braz, Badi Assad, Yamandu Costa, Ulisses Rocha, Eduardo Gudin, Théo de Barros, Natan Marques, Paulo Bellinati, Marco Pereira, Zezo Ribeiro, Arismar do Espírito Santo, Paulinho Grassmann, Stenio Mendes, Nelson Ayres, Amilson Godoy, Laércio de Freitas, Silvia Góes, Toninho Ferragutti, Teco Cardoso, Ivani Sabino, Maguinho, Pepa D’Elia, João Parahyba e Luca Bulgarini.


[biografia retirada da Enciclopédia Itaú Cultural]



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